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Sete reflexões sobre o que a democracia não é

1 – Democracia não é sobre governar. É sobre se auto-organizar. Como todo governo, stricto sensu, é oligárquico, democracia não é sobre comandar e controlar e sim sobre impedir que uma oligarquia comande e controle as pessoas a ponto de impossibilitar a auto-organização societária.

2 – Democracia não é sobre a implantação de alguma ordem social conhecida, que alguns achem melhor do que as outras, e sim sobre a liberdade de permitir que ordens inéditas emerjam da interação política dos cidadãos.

3 – Democracia não é adotar um modelo de regime político e sim permitir que o processo de democratização – ou de desconstituição de autocracia – continue fluindo. Quando esse fluxo é bloqueado não estamos mais numa democracia.

4 – Democracia não é sobre melhorar condições de vida, dando casa, comida e roupa lavada de graça para o povo. Isso o sultão Hassanal Bolkiah, ditador de Brunei, também faz. Democracia é sobre melhorar condições de convivência social, para que pessoas e comunidades possam abrir seus próprios caminhos, inclusive para melhorar suas condições de vida.

5 – Democracia não é o governo do povo e sim o governo de qualquer um (não de um, de poucos, de muitos, nem mesmo da maioria). A rigor é o poder distrital. É o poder do demos para quebrar o poder do genos. Os que se reuniam nos demos (depois designados como “povo”) impediam que os genos (da aristocracia fundiária) continuassem governando com base na ordem da filiação (1).

6 – Democracia não é a utopia da política e sim o contrário: a política é a utopia da democracia. Mas como a política propriamente dita é aquela que toma como sentido a liberdade e como a liberdade só existe aqui e agora, não em algum lugar imaginário no futuro, então a democracia é o regime sem utopia (2).

7 – Democracia não é sobre se libertar de alguma coisa e sim sobre se comprazer na livre convivência da polis (ou seja, da comunidade política): um ambiente social configurado de tal maneira que possibilite aos seres humanos permanecerem juntos (sem ser na família ou na guerra) por tempo suficiente para viverem a sua convivência, criando um mundo totalmente inédito (além do mundo natural) (3).

NOTAS

(1) O termo ‘demos’ (δῆμος) que aparece na palavra democracia, não significava ‘povo’ (nem no sentido romano – de ‘populus’ -, nem nos sentidos medieval, renascentista ou moderno). Ele designava a constituição de um sujeito político coletivo contra a ordem de filiação, o ‘genos’ (γένος) composto por grupos familiares da aristocracia (ἀριστοκρατία) fundiária. Clístenes (508 a.C.), um dos protagonistas das reformas que permitiram a invenção da democracia, organizou arbitrariamente cerca de 100 demos (distritos), depois expandidos, como espécies de micro-polis – e a ‘polis’ (πόλις) era a comunidade, a ‘koinonia’ (κοινωνία) política, o sujeito político coletivo, não a cidade-Estado – para quebrar a predominância oligárquica dos aristocratas (organizados em ‘genos’ para dominar as ‘fratrias’). É curioso que, nesse sentido, ‘democracia’ (δημοκρατία, palavra composta por δῆμος + κράτος = demos, comunidade política distrital + kratos, poder) significava mais poder (ou governo) distrital – ou do conjunto das micro-polis – do que governo do ‘povo’ (um conceito estranho aos atenienses que inventaram pela primeira vez a democracia).

(2) Liberdade, originalmente, para os democratas, é liberdade de interagir na polis, quer dizer, na koinonia (comunidade) política. Ao fazer isso, a nova “socialeza” modifica a velha “natureza” e surge o ser político que é o agente de um processo de auto-organização. O ser político é a pessoa-interagente (enquanto interagindo), não o animal-político aristotélico. Surge entre os seres humanos porque não estava presente no ser humano. Portanto, para a democracia (que é a fonte do liberalismo-político) ninguém pode ser livre sozinho (ao contrário do que imaginou certo pensamento liberal moderno, que tomou a liberdade como ausência de coerção). Se livrar da coerção (heterônoma) é libertação, não fruição da liberdade (que é sempre experimentação de autonomia).

(3) Processos de libertação não nos levam necessariamente à liberdade. Os hebreus (apirus, sem-reino numa Canaã coalhada de monarquias), depois de se libertarem do faraó, não acataram as advertências de Samuel e de Natan e desembocaram no Estado-Templo-Palácio faraônico de Salomão. Os sandinistas, depois de se libertarem da tirania de Somoza, caíram na ditadura de Ortega (justo um dos líderes dos libertadores). O PT, depois de lutar contra a ditadura militar no Brasil, entrou numa deriva de conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para nunca mais sair do governo (e ainda estaria no governo se não fosse o impeachment – ou melhor, a campanha do impeachment, com todas as gigantescas manifestações de rua, alinhamento da imprensa e pressão sobre o parlamento). Lutas pela libertação são impulsionadas por utopias de um reino da liberdade futura, mas não garantem (ou adiam) a fruição da liberdade presente (que é a única que existe). A libertação é pre-democrática. Ninguém se torna livre apenas se libertando de um poder opressor. É necessário, para tanto, viver como um ser político, quer dizer, viver a convivência numa comunidade política. Ou seja, é preciso criar novos mundos sociais onde a liberdade possa existir e os seres humanos, então, possam nela se comprazer.

Visões heterodoxas sobre educação

O Movimento Sofista de Kerferd com alguns comentários – Parte 1