Mesmo com as mortes resilientemente acima de mil por dia, muitas pessoas querem que as medidas sanitárias cautelares restrinjam apenas os outros. E apresentam mil argumentos para defender que seus negócios ou atividades devem continuar funcionando como se não houvesse pandemia. É o caso dos sistemas públicos e privados de ensino, que querem reabrir as escolas (ou melhor, que vão reabrir as escolas, pelo menos até o dia em que terão de fechá-las de novo).
Para tanto, contam com o apoio dos pais. É claro que muitos pais estão doidinhos para as escolas voltarem a funcionar. Antes de qualquer coisa porque estão preocupados, basicamente, em ter um lugar para depositar seus filhos com segurança (para poder trabalhar, cuidar da vida, se divertir, ter um minuto de sossego) e para mantê-los longe das ruas (das más companhias, das drogas, do crime).
Mas seria injusto dizer que os pais só estão preocupados com isso. Eles querem também terceirizar (com segurança) a educação dos filhos. Querem dar condições aos filhos de terem uma vida melhor do que as deles (ou, em alguns casos, para que eles sejam melhores do que os filhos dos outros). Querem capacitar seus filhos para que no futuro obtenham um diploma, por meio do qual consigam um bom emprego que lhes dê estabilidade financeira e condições de viver com tranquilidade, sobretudo com assistência de saúde para suas futuras famílias (ou, em alguns, poucos, casos, para que tenham condições de abrir um negócio inovador e lucrativo).
Alguns pais, que se dizem conservadores, querem ainda proporcionar uma sólida educação moral aos seus filhos (em alguns casos religiosa) para que eles sejam cidadãos respeitadores da ordem, obedientes às autoridades (ou tementes a Deus), disciplinados (em alguns casos, felizmente minoritários, evitando que eles sejam vítimas de doutrinação ideológica ou político-partidária na escola).
Isso é assim na maioria dos casos. Ou seja, os pais não estão preocupados com a aprendizagem (em tudo que se leu nos três parágrafos acima, nunca aparece a palavra aprendizagem). Quando falam em educação, em geral, pais (e também professores e outros burocratas do ensinamento) pensam na tríade escola-ensino-professor, não em aprendizagem.
Os pais raramente perguntam se o que a escola está pretendendo ensinar hoje será útil para o mundo em que as crianças de 2021 e os jovens de 2031 irão viver daqui a três ou quatro décadas? Ou seja, poucos questionam se a escola sabe realmente o que está fazendo (se ela sabe quais serão as habilidades e os conhecimentos que serão requeridos pelo mercado e pela sociedade em 2041 ou em 2051).
Mesmo assim, há uma crise de abstinência de cuspe e giz. No Brasil – grita-se – os alunos já passaram 40 semanas sem aulas presenciais (nas escolas).
“- Oh! Isso deixará uma buraco permanente nos seus cérebros, uma falha irremediável no seus sistemas cognitivos”.
É preciso ter a mente muito deformada (Illich diria: escolarizada) para achar que cuspe e giz faz tanta falta assim. Houve prejuízo para a ensinagem, é claro. Mas não necessariamente para a aprendizagem. Vejam a falta que faz a inovação! Imaginem um mundo onde, por quaisquer razões (inclusive uma pandemia crônica), não pudesse mais haver aglomerações. Por causa disso não haveria mais possibilidade de aprendizagem? Depois de ler tanta besteira que é dita nessa matéria qualquer pessoa inteligente conclui o que já se sabia: as pessoas (mas em especial os chamados educadores) não têm a menor noção do que é aprendizagem. Acham que aprender é apreender o mundo (todos engolindo ensinamentos para ficar cada vez mais gordos de conteúdos) e não mudar com o mundo.
É óbvio que abrir escolas aumenta a infecção. Salas de aula, recreios coletivos, filas para entrar e sair – todas essas situações são aglomerações. No caso da sala de aula presencial é mais grave: é aglomeração em recinto fechado (mesmo com janelas abertas) com permanência do vírus no ar por mais tempo (e separar as carteiras, distanciando-as um ou dois metros umas das outras, não resolve o problema).
Pois não há proteção eficaz contra aglomerações. Proteção contra aglomerações (sobretudo em recintos fechados) só se você levar seu próprio oxigênio (como Jude Law no filme Contágio: ver a imagem que ilustra este post).
Mas as pessoas foram tão infectadas por uma ideologia escolarizante que ficaram irracionais. E ficam inventando a cada hora um motivo diferente para dizer que aglomerações para fins de ensino não são vulneráveis ao novo coronavírus. Por algum motivo o vírus percebe que se trata de educação e resolve não infectar ninguém. E aí aparecem as estatísticas mais duvidosas e as hipóteses mais oblíquas para dizer que crianças e jovens não são infectados, que se infectados não adoecem e não transmitem o vírus. Como é que uma pessoa com três neurônios funcionando pode acreditar nisso?
Pois é… Um militante da escolarização se comporta como qualquer militante: fica protegido contra a verdade, cego para a realidade e pode representar um perigo para a sociedade.
Abram as escolas em Pripiat, cidade próxima a Chernobil, depois do acidente. Como se trata de educação (a mais nobre atividade do universo) os prótons da matéria radioativa vão dizer:
“- Êpa! Pera lá. Aqui é escola. Não vamos bombardear ninguém”.
Um tribunal ordenou a volta da abertura das escolas em São Paulo. Se um tribunal proibisse a evacuação da cidade de Pripiat logo depois do acidente nuclear, deveria ser obedecido? Neste caso continuaria válida a máxima de que decisão da justiça se cumpre, não se discute? Quanto vale a convicção dos juízes de que prótons de alta velocidade, emitidos pela matéria radioativa, não fazem tão mal assim?
Não é um bom momento para abrir escolas ou qualquer outra atividade que enseje aglomeração. Estamos correndo um risco de aumento descontrolado da pandemia.
O biólogo Fernando Reinach escreveu hoje (30/01/2021) no Estadão:
“É uma questão de tempo a disseminação dessas cepas [inglesa, sul-africana e manauara] pelo Brasil, mas muito provavelmente elas vão chegar antes de vacinarmos uma fração significativa da população. Nos EUA se acredita que elas serão dominantes nas próximas semanas”.
Ele avisa que isso pode ser um tsunami epidemiológico. E cita o recente trabalho Increased Resistance of SARS-CoV-2 Variants B.1.351 and B.1.1.7 to Antibody Neutralization.
Que grande diferença fará esperar mais um pouco? Para quem já perdeu 40 semanas de cuspe e giz, qual o mal irremediável que fará perder mais 20 ou 30 semanas (pelo menos até que professores, funcionários e parentes idosos estejam devidamente vacinados e, se dermos sorte, imunizados)?
Claro que essas perguntas são retóricas. Sabemos que não adianta tentar discutir racionalmente com fundamentalistas. Ainda que sejam fundamentalistas da escolarização.


