Uma coisa são os eleitores de Bolsonaro (que votaram nele porque não queriam a volta do PT, estavam com medo da escalada da insegurança ou revoltados com a corrupção) – estes representam pouco menos de 40% dos eleitores brasileiros. Outra coisa são os bolsonaristas (que tentam capturar o governo eleito intoxicados com os ensinamentos do meliante ideológico Olavo de Carvalho) – estes representam, talvez, cerca de 10% dos eleitores de Jair Bolsonaro, se tanto.
Sim, o que há de substância no bolsonarismo é puro olavismo. O olavismo é uma colagem tenebrosa de ideias antidemocráticas. É uma mistura grossa de tudo que não presta: populismo nacionalista, conspiracionismo antiglobalista e anticomunismo macarthista. É uma espécie de trumpismo caboclo, no que este tem de bannonismo (o populismo-autoritário, de extrema-direita, de Steve Bannon – outro malfeitor que pretende unir os antidemocratas em uma nova internacional para acelerar a recessão e a desconsolidação democrática).
É possível salvar o governo Bolsonaro do bolsonarismo? Possível é, porém muito difícil, na medida em que o próprio Bolsonaro e seus filhos são bolsonaristas.
Só um tolo pode achar que Paulo Guedes, o liberal-econômico não convertido ao liberalismo político (quer dizer, à democracia), que nunca – em toda a sua vida – se preocupou com o que se passava na esfera pública, vai agora nos salvar do bolsonarismo. Ou que os generais, que continuam apoiando o golpe de 1964 – e são, portanto, i-liberais que também não tomam a democracia como um valor universal – vão fazê-lo.
Não há quem seja capaz de domesticar Bolsonaro e conter o avanço das ideias e práticas autoritárias do bolsonarismo na sociedade a não ser a resistência pacífica dos cidadãos e o funcionamento independente das instituições do Estado de direito. Por isso é crucial neste momento defender a liberdade de opinião, a liberdade de imprensa, a independência do judiciário e do legislativo – que estão sendo vítimas dos ataques sórdidos e brutais do bolsonarismo.
Aqui, porém, começa o problema. Não temos oposição democrática no Brasil.
O PSDB, como se sabe, não tem (nunca teve) vocação para ser oposição. Durante mais de uma década não fez oposição ao PT; pelo contrário, foi vacilante, leniente e conivente com o governo petista e, em especial, com Lula. Como é uma agremiação que reduz a democracia às eleições (e disputa eleições como quem faz um concurso para conseguir um cargo público) e como teme desagradar o eleitor (apostando, via de regra, na loteria do calculismo eleitoreiro) sempre teve medo de criticar o grande líder popular. Deu no que deu.
O PT e seus satélites e forças auxiliares, ditos de esquerda, não têm vocação para a democracia. Também reduzem a democracia às eleições e vivem pendurados no prestígio (e nos votos) de um líder de massas. Tanto é assim que não conseguiram se desvencilhar do caudilho cadente até agora, adotando a tática suicida de se amarrar ao pescoço do ex-presidente para afundar junto com ele.
Nem mesmo os movimentos que atuam como correias de transmissão do PT e seus aliados estão fazendo oposição ou resistindo. O MST não invade mais terras, o MTST não ocupa mais prédios, a CUT não abre a boca e a UNE sumiu. Nenhum deles convoca mais passeatas, comícios, protestos de rua. Valentes para combater os que chamavam de “neoliberais” (os inofensivos políticos tucanos de centro), os petistas se esconderam debaixo da cama, tremendo de medo da extrema-direita populista. A única coisa que os petistas conseguem fazer é convocar manifestações Lula Livre, coisa que não mobiliza senão uma parte dos seus militantes.
Em suma, não há oposição formal ao governo Bolsonaro e nem há resistência de esquerda (dita democrática, mas na verdade, em grande parte, autocrática) ao avanço do bolsonarismo na sociedade.
Ora, se não temos oposição formal democrática, de natureza partidário-parlamentar, para valer, cabe aos democratas resistir em todos os lugares onde isso for possível.
A imprensa vem resistindo e por isso tem sido atacada duramente pelo bolsonarismo, que a chama de “extrema-imprensa” quando, na verdade, eles (os bolsonaristas seus acusadores), é que são a força reacionária extrema, de extrema-direita. Mas isso, conquanto muito importante, é insuficiente.
É necessário resistir ao avanço de ideias e práticas autoritárias na sociedade brasileira, nas famílias, nos grupos informais de amigos e colegas, nos locais de estudo e trabalho, nas escolas e universidades, nas igrejas, nas organizações da sociedade civil e, inclusive, nos órgãos de governo e de Estado de todos os níveis.
A resistência democrática é a resistência dos que tomam a democracia como um valor universal e como o principal valor da vida pública. É uma resistência pacífica, não guerreira (e por isso resiste ao avanço dos destacamentos militantes animados por culturas adversariais, quer dizer, resiste tanto ao bolsonarismo quanto ao lulopetismo).
Já se sabia que acabar com o comunismo é mais fácil do que com o anticomunismo. Agora vemos que o antipetismo é capaz de cegar mais do que o petismo. Ser contra o comunismo e ser contra o PT não é a mesma coisa que ser anticomunista e antipetista: esses últimos estão pedindo a volta da ditadura. Os democratas somos contra o comunismo e contra o petismo. Mas não somos loucos para entrar em aventuras autoritárias.
Só há uma razão aceitável para alguém ser contra o comunismo, a esquerda, o petismo. Ser um democrata. Qualquer outra razão leva ao anticomunismo, ao antiesquerdismo e ao antipetismo que são, visceralmente, antidemocráticos.
Como então a resistência democrática pode se exercer? Nada de tentar fundar novos partidos (isso serve para a oposição formal, a ser praticada no parlamento e nas demais instituições estatais, mas não para a oposição na sociedade). A resistência na sociedade não pode ser centralizada. Ela é fractal. Ou seja, a única maneira de exercê-la é em redes distribuídas de pessoas que se sintonizam entre si a partir de uma emoção cooperativa e se reconhecem na paixão pela liberdade.
Redes desse tipo, queiramos ou não, estão se articulando por toda parte. Não são organizações políticas. Não são entidades formais. São clusters de autodefesa da sociedade para a preservação de valores democráticos, não apenas no que tange à administração política do Estado e sim também às formas de convivência pacíficas, civis e humanizantes na sociedade, contra todo tipo de brutalidade, de boçalidade, de anticientificismo, de obscurantismo. São, afinal, pessoas que se conectam a outras pessoas formando e ampliando redemoinhos no fluxo interativo da convivência social.
Selecionamos – um conjunto de amigos e amigas que interagem em uma dessas redes – um conjunto de 34 indicadores e diretrizes que podem ser observados e adotados pela resistência democrática. Isso dará origem a um novo livro (cada item abaixo será um capítulo), que deve vir à luz em breve.
Nossa liberdade não tem preço
1. Não deixe que restrinjam as suas liberdades em nome de mais ordem (ou de segurança)
A democracia convive bem com conservadores e inovadores
2. Seja conservador (mas não queira voltar ao passado) ou inovador (mas não queira fugir para o futuro)
Os autoritários avançam aos pouquinhos
3. Preste toda a atenção não apenas às grandes, mas às pequenas medidas retrógradas (hoje os autoritários não dão mais um golpe de uma vez: eles vão avançando aos poucos, um milímetro de cada vez)
A compulsão de se limpar nos outros
4. Muito cuidado com as ideias de pureza e limpeza (e não queira se limpar nos outros)
A democracia não é o regime sem corrupção e sim o regime sem um senhor
5. Não fique chocado com notícias sobre corrupção (em qualquer lugar do mundo os jornais estão cheios dela: a democracia não é o regime sem corrupção e sim o regime sem um senhor)
Os parlamentos são as instituições características das democracias
6. Não demonize o bagunça, o fisiologismo e a demagogia que são inerentes à atividade parlamentar (governos e judiciário existem em ditaduras, mas parlamentos livres só nas democracias)
Sem culpa
7. Vomite a maçã (não crie situações de culpa ou atribuição de culpa)
Não há democracia sem oposição
8. Aceite as pessoas que se opõem a você (não há democracia sem oposição)
Não existem salvadores da pátria
9. Desconfie do discurso patrioteiro e não acredite em salvadores da pátria
Nas democracias o Estado é laico
10. Nunca misture religião com política
Obscurantismo não combina com democracia
11. Defenda sempre a ciência dos ataques dos malucos, impostores, charlatães e vigaristas (mesmo que se autoproclamem filósofos)
A verdade existe
12. Atenha-se à verdade (rejeite a pós-verdade, não troque a verdade pela narrativa e não se deixe contaminar pelo duplipensar)
A democracia é a esfera da opinião, não do saber
13. Não aceite a prevalência do saber sobre a opinião (todos têm direito a opinar, concordar, discordar, independentemente do seu grau de instrução ou escolaridade)
A política (democrática) não é a continuação da guerra por outros meios
14. Nunca entre no jogo do “nós” contra “eles” (não transforme a política numa espécie de guerra, qualquer guerra: quente, fria, de movimento, de posição, muito menos em guerra religiosa ou cultural)
Não existem pessoas de bem e pessoas do mal
15. Não separe os humanos em “pessoas de bem” e “pessoas do mal”
Inimigos são construção guerreiras
16. Não se torne o inimigo
Um erro não justifica outro erro
17. Não tente justificar um erro com outro erro
O espírito do torcedor não é democrático
18. Livre-se do espírito do torcedor
Armas não são instrumentos da democracia
19. Não se deixe contaminar pela emoção adversarial associada ao uso de armas
A democracia pressupõe a valorização da vida
20. Não replique mensagens preconceituosas (do tipo “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos só para os humanos direitos” etc.)
Democracia é diversidade, não uniformidade
21. Valorize a diversidade, não a uniformidade (respeite às opções de cada um e aceite o diferente no seu espaço de vida)
Toda milícia é antidemocrática
22. Denuncie as milícias (as ilegais e as legais)
A democracia é civil
23. Não aceite calado a tutela militar sobre a vida civil
Toda teoria da conspiração leva à autocracia
24. Questione todas as teorias da conspiração
Os populismos são hoje os principais adversários da democracia
25. Vacine-se contra os populismos
Democracia não é gritaria, nem linchamento
26. Não se impressione com o burburinho fabricado nas mídias sociais
Fake news destroem a democracia
27. Adote a princípio da precaução: nunca replique uma mensagem sem antes verificar sua autenticidade (na dúvida, não repasse)
A democracia não é o regime da maioria
28. Não tenha medo de ficar em minoria (a democracia não é o regime da maioria e sim o das múltiplas minorias). Além disso, a democracia é o governo de qualquer um, não o governo da maioria.
Não há solução sem política, nem saída fora da democracia
29. Tenha sempre em mente: não há solução sem política e não há saída fora da democracia
A democracia tem princípios
30. Não abra mão dos princípios democráticos
A democracia nasce da conversação no espaço público
31. Converse com as pessoas e faça novos amigos
A democracia aposta na possibilidade de conexão entre diferentes
32. Ofereça outra interface
Rir é a melhor forma de resistir
33. Curta o bom-humor: rir ainda é o melhor remédio contra o emocionar autoritário
A democracia também é um modo-de-vida
34. Pratique a democracia como modo-de-vida em todos os lugares onde você estiver (na família, na escola ou universidade, na igreja, na organização social, na universidade, nos grupos informais de convivência, no trabalho, nas organizações do Estado)
Este último item será o ponto alto e o tema inovador do epílogo do livro. Estamos falando de uma resistência ativa e criativa, inovadora mais do que conservadora, exercida na e a partir da sociedade. Nestas circunstâncias, experimentar a democracia em não-países é a melhor e a mais inovadora forma de resistir ao avanço de ideias e práticas autoritárias na sociedade (sejam ditas de direita ou de esquerda).
Se você quiser colaborar, deixe sua sugestão no campo de comentários abaixo.
Deixe seu comentário