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O que fazer diante do deficit de liberais-políticos? Uma proposta!

Não existe democracia sem democratas, quer dizer, sem liberais-políticos. Constata-se hoje, porém, um deficit de liberais-políticos (de agentes políticos que tenham como referencial a democracia, que tomem o sentido da política como a liberdade e a democracia como um valor universal e o principal valor da vida pública).

Mas liberais-políticos, assim definidos, não se formam espontaneamente em volume desejável porque a cultura predominante não é liberal e porque está um curso uma recessão e uma desconsolidação democráticas. Vivemos atualmente sob uma terceira onda de autocratização. Tudo isso dificulta o surgimento espontâneo de democratas. Assim, é necessário proporcionar processos de aprendizagem da democracia.

Ou seja, repetindo, as pessoas, em geral, não têm muitas oportunidades de aprender democracia nos ambientes onde vivem e convivem. Ademais, a democracia não é natural, não é normal, é contra-intuitiva e seus agentes nunca são maioria. Veja abaixo por que.

1 – A democracia não é natural. Se compararmos toda a história humana a um dia de 24 horas, só houve democracia em 96 minutos e, mesmo assim, na primeira metade desse tempo, em experiências localizadas e fugazes (Atenas e redondezas, nos séculos 5 e 4 a. C.) e, na segunda metade, em vários países (a partir do século 17), nos quais, porém, nunca viveu a maior parte da população mundial. Agora ou em qualquer época os seres humanos, em sua maioria, nunca tiveram a oportunidade de experimentar um regime democrático. Acrescente-se que o número de democracias liberais nunca ultrapassou 40 países em pouco menos de 200 Estados-nações.

2 – A democracia não é normal. É, pelo contrário, um desvio do que foi considerado normal nos últimos 5 milênios. É uma brecha aberta na cultura patriarcal. Nestas circunstâncias, aprender democracia é desaprender autocracia. E por isso a democracia não pode ser aprendida “naturalmente” na família, na igreja, nas organizações sociais, nas empresas e nos órgãos estatais, onde ainda predominam culturas sintonizadas com modos de vida hierárquicos e autocráticos da civilização patriarcal. Mesmo nos países considerados democráticos, a democracia que é ensinada nas escolas e universidades não é suficiente para provocar uma mudança cultural, quer dizer, uma mudança de comportamento dos agentes. Do contrário, imensos contingentes com mais escolaridade não votariam, crescentemente, em candidatos autoritários (e nem desvalorizariam a democracia, como mostram todos os estudos recentes sobre a recessão e a desconsolidação democráticas).

3 – A democracia é contra-intuitiva. Mesmo as pessoas que declaram preferir o regime democrático, frequentemente o tomam como sinônimo de eleições, pensam que é o governo do povo ou a prevalência da vontade da maioria ou, até, um governo que dê “casa, comida e roupa lavada” para os pobres. Alguns acham que é uma utopia, um modelo de sociedade ideal, um regime sem corrupção. Outros pensam que a democracia é uma outra doutrina ou ideologia ou um valor apenas ocidental. E outros, ainda, acham que a democracia é o regime naturalmente acompanhante da sociedade de mercado ou do capitalismo (sem se darem conta de que regimes autoritários estão usando os mecanismos de mercado do capitalismo e aumentando o bem-estar de suas populações sem aderir à democracia).

Vá-se lá dizer-lhes que a democracia não é o governo do povo, mas o de qualquer um. Não é a prevalência da vontade da maioria, mas a possibilidade de convivência de múltiplas minorias. Não é somente um modo político de administração do Estado, mas também um modo de vida ou de convivência social. Não é um modelo de sociedade ideal, uma utopia: ou seja, é terrestre, não celeste (não quer construir o céu na terra, nem levar as pessoas para algum lugar melhor, um amanhã radioso e sim permitir que elas vivam, aqui e agora, como seres políticos, autorregulando seus conflitos). Não é o regime sem corrupção e sim o regime sem um senhor. É um valor universal, mas não é necessária para quem não a deseja, nem se aplica a todas as sociedades, mas somente àquelas onde a autocracia se instalou: porque ela é, geneticamente, um processo de desconstituição da autocracia. Não é uma nova (ou velha) doutrina e sim sem doutrina. Não é uma ciência ou uma arte de vencer inimigos ou um jeito de eliminar os conflitos e sim um modo de, aceitando os conflitos, regulá-los sem guerra – convertendo inimizade em amizade política.

4 – Os democratas convictos são uma extrema minoria. A maior parte dos políticos, jornalistas – e, agora, também da imensa legião dos que emitem opiniões mas mídias sociais -, além de acadêmicos e estudantes, empresários e trabalhadores, profissionais liberais e atores sociais e estatais, nos países considerados democráticos, também não tem como referencial a democracia. Aceitam a democracia (pois vivem nela ou dela), defendem as normas do Estado de direito, alguns até exaltam os princípios liberais, mas não conseguem identificar padrões autocráticos quando eles se manifestam na vida cotidiana. Sem reconhecer esses padrões, adotam comportamentos ou emitem juízos que acabam ensejando a sua replicação, nos meios políticos e na sociedade. Desqualificam-se, assim, para ver – e, ainda mais, para prever – as ameaças de autocratização que estão em embrião ou já em curso. Todo regime autoritário, quando se instala em um lugar, pressupõe esse tipo de cegueira democrática de uma parte da sua inteligência.

Tais constatações justificam o surgimento de iniciativas, mais robustas e sistemáticas, voltadas à aprendizagem democrática. O objetivo é ensejar o surgimento de agentes políticos que tomem como referencial a democracia. Leia aqui o que significa ter como referencial a democracia.

Não é curioso que tenhamos no Brasil tantos institutos intitulados liberais e tão poucos (se é que há algum) que tomem essa palavra (liberal) não apenas no seu sentido econômico e sim também no seu sentido político (que é o que importa para a democracia)?

Há um Instituto Liberal com várias filiais ou ramificações, há um Instituto Liberal de São Paulo, há um Instituto Liberdade, há um Instituto de Estudos Empresariais e um Fórum da Liberdade, há um Sociedade Aberta, há um Instituto Hayek Brasil, há um Instituto Millenium, há um Estudantes pela Liberdade, há um Instituto de Formação de Líderes, há um Instituto Liberal do Nordeste, há um Instituto Ordem Livre e existem Boletins da Liberdade, há um Sociedade Aberta, há um Instituto Rothbard e até o reacionário e anti-democrata Eduardo Bolsonaro iniciou uma pós-graduação (ao que parece não concluída) em economia liberal (Escola Austríaca) no Instituto Mises Brasil. Não são, em geral, organizações de aprendizagem da democracia e sim de ensinagem (para usar a expressão do nosso amigo José Pacheco) de doutrinas do liberalismo-econômico.

Ora, liberais-econômicos não são necessariamente liberais-políticos. Em grande parte, não priorizam a democracia ou não a tomam como um valor universal. Não raro aceitam prestar serviços para qualquer governante i-liberal, majoritarista ou abertamente antidemocrático, que lhes dê carta branca para aplicar suas fórmulas econômicas supostamente salvadoras.

Esta é uma das razões pelas quais está surgindo uma nova iniciativa de aprendizagem da democracia voltada para a inovação social e política, chamada, na sua fase piloto, de Casa da Democracia. Leia aqui um briefing, intitulado Uma iniciativa de aprendizagem da democracia voltada para a inovação.

Se você se interessou pela proposta e quer se associar à iniciativa, apoiando-a, escreva para [email protected] para receber um ebook com o projeto piloto completo e as diferentes modalidades de adesão.

Uma iniciativa de aprendizagem da democracia voltada para a inovação

Sobre o reflorescimento de narrativas nacionalistas