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O que significa ter como referencial a democracia

Os democratas têm como referencial a democracia e não qualquer outro conjunto de exigências, por mais sábias, boas, puras ou excelsas que sejam consideradas, como as de transformar ou consertar o mundo, construir o paraíso na Terra, redimir o ser humano ou salvar a humanidade, adequar a sociedade à natureza, aplicar a sabedoria, a filosofia, a ciência ou alguma técnica à arte de governar os seres humanos, alinhar a convivência social e a interação política às leis da história ou cumprir um mandamento ou plano divino.

Ter como referencial a democracia significa, em primeiro lugar, saber que não há solução sem política e não há saída fora da democracia.

Quem não tem como referencial a democracia pode virar um ser apolítico ou antipolítico. Se quiser intervir na política o fará, necessariamente, como um combatente, um militante defendendo a qualquer preço o lado com o qual mais se simpatiza. Perverterá assim a política de uma questão de modo (o que ela é: modo de regulação de conflitos) em uma questão de lado. E aí não será propriamente sujeito de uma opção política, nem conseguirá preservar (se isso for julgado relevante – e não é, para a democracia) qualquer identidade sociológica, mas será vítima de pegajosidade antropológica: como quem entra numa torcida organizada, vai se refugiar na sua turma de fiéis, perfilar numa tropa, degenerando a política como guerra (ainda que não violenta) de um lado contra o outro lado. Sim, o que caracteriza a guerra não é a violência, mas a construção e a manutenção de inimigos. A democracia, pelo contrário, é o único regime que permite dissolver inimizades políticas, convertendo inimigos políticos em amigos políticos, aliados, conviventes ou pacificamente coexistentes. A democracia, portanto, é sinônimo de sem-guerra (seja a guerra quente, a guerra propriamente dita, seja a guerra fria, seja a política praticada como continuação da guerra por outros meios).

A varrição do mundo, a limpeza do universo, a separação dos bons dos maus, o combate à corrupção, a caça e a punição dos bandidos – nada disso pode ser colocado como mais importante do que a democracia (e algumas dessas coisas são, claramente, avessas à democracia).

O predomínio de uma visão político-ideológica sobre as demais, o triunfo de uma doutrina, a hegemonia de uma força política sobre a sociedade, a supremacia de um grupo cultural, religioso ou étnico – nada disso é compatível com a democracia.

Mas o que é, fundamentalmente, ter como referencial a democracia? Ter como referencial a democracia é tomar a liberdade (e não a ordem) como sentido da política. É, nesse sentido (político, não apenas econômico), ser um liberal. E é considerar a democracia como um valor universal e como o principal valor da vida pública.

Sim, liberal. Como diz o V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, “o princípio liberal da democracia enfatiza a importância de proteger os direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. O modelo liberal adota uma visão “negativa” do poder político na medida em que julga a qualidade da democracia pelos limites impostos ao governo. Isso é alcançado por meio de liberdades civis constitucionalmente protegidas, forte domínio da lei, um poder judiciário independente e freios e contrapesos efetivos que, juntos, limitam o exercício do poder executivo”.

Mais do que isso porém. Quem toma como referencial a democracia sabe que é um imperativo manter os direitos políticos e as liberdades civis acima de patamares em que seja possível dar continuidade ao processo de democratização da sociedade e do Estado. Isso quer dizer que quem toma como referencial a democracia defende a democracia que temos (com todas as suas falhas ou imperfeições) como condição para chegarmos às democracias que queremos.

Quem toma como referencial a democracia não confunde, nem reduz, democracia à eleição. Por isso defende os critérios da legitimidade democrática: além da liberdade e da eletividade, a publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade. Ou seja, quem toma como referencial a democracia não acredita que a democracia seja um modo de fazer prevalecer a vontade da maioria (isso é majoritarismo, sempre i-liberal), pois sabe que a democracia não é o poder do povo ou o poder da maioria da população (pervertendo a ideia fundante – que é o próprio DNA da democracia – de que ela é ‘o poder de qualquer um’, quer dizer, a indiferença das capacidades para ocupar as posições de governante ou de governado).

Quem toma como referencial a democracia respeita o Estado democrático de direito e o império da lei (e não o império de qualquer senhor, mesmo que este senhor seja sábio, bom e honesto). Assim, não transige com o déspota esclarecido, não aceita o rei-filósofo nem o tecnocrata – supostos detentores de virtudes ou conhecimentos que lhes conferissem poderes regulatórios aumentativos em relação aos demais. Quem toma como referencial a democracia não acredita em salvadores da pátria, demiurgos, líderes extraordinários que, por seu sangue ou berço, carisma ou alta popularidade, deveriam conduzir o povo. A democracia é o regime das pessoas comuns, não das incomuns.

Quem toma como referencial a democracia sabe que a democracia não é um modelo de sociedade ideal, um regime puro, reto e perfeito, ou seja, não é a utopia da política (senão o contrário: a política é a topia da democracia; quer dizer, a democracia não quer levar as pessoas para algum lugar radiante no futuro, mas quer que elas vivam, no presente, como seres políticos, autorregulando pacificamente seus conflitos: não é um porto, um ponto de chegada e sim um modo de caminhar). É apenas um modo não-guerreiro de regulação de conflitos que, toda vez que se exerce, desconstitui autocracia (e a autocracia é a guerra).


Para saber mais: http://democracia.org.br

Por que somos sempre assolados por ideias que julgávamos mortas

A classificação dos regimes políticos do V-Dem (Universidade de Gotemburgo)