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Sobre a ideia maligna de pureza

De todas as ideias introduzidas pelo patriarcado a mais maligna é a de pureza. Foram os sacerdotes que inventaram regras de pureza. Aliás, o código sacerdotal da Torah, contido no livro Levítico, tem centenas de proibições, para praticamente tudo, com base na pureza.

Foi uma operação (uma espécie de reengenharia ideológica) feita para substituir a árvore da vida (que é dádiva, posto que rede fractal de seres interdependentes, aberta a qualquer um) pela árvore do conhecimento sobre a vida (a kabbalah luriânica, depois, com Hayyim Vital, apenas codificou essa perversão num esquema gráfico).

A partir daí, os que conhecem distinguem-se dos que não conhecem. Não basta apenas se abrir à interação e seguir junto com o fluxo. Não. É necessário conhecer e como esse conhecimento provém de um ensinamento (funcional para a reprodução social – ou antissocial – do estamento sacerdotal: os primeiros professores), então as pessoas, para acessá-lo, precisam subir os degraus da escada (ou seja, obedecer, se enquadrar na hierarquia que é sempre uma hierarquia do conhecimento).

Os que têm o conhecimento ocupam lugares mais altos na hierarquia do que os ignorantes. Por isso que a separação entre sábios e ignorantes está na raiz da autocracia. Há um condicionamento recíproco entre hierarquia e autocracia.

Tudo isso, entretanto, tem a ver com pureza. Há mundos sutis acima de mundos densos. Os mais altos são mais puros, os seres angélicos são mais puros do que os terrestres, e por aí vai… Não é a toa que deus é chamado de O Altíssimo, o que está longe do comum, o incomum, o que não se configura entre nós (como o espírito santo na visão evangélica), senão acima de nós.

Está tão enraizada essa ideia, posto que repetida durante os últimos cinco a seis milênios, que as pessoas são levadas inconscientemente a preferir o que é puro. O que é puro, entretanto? É o não-contaminado pela interação, é o que pode ser sagrado (quer dizer, separado do outro, do profano, do impuro).

Até na alimentação essa ideia prevaleceu a tal ponto que vem causando problemas graves de saúde. Crianças protegidas das bactérias (a famosa Vitamina “S”, de sujeira), ficam com sistemas imunológicos mais frágeis. Marta, uma pesquisadora da PUC-RS, que estuda retocolite ulcerativa, uma doença autoimune, me disse que estava trabalhando com a hipótese das embalagens Tetra Pak ou similares (completamente antissépticas, para manter os conteúdos protegidos de germens) serem responsáveis pela maior incidência de doenças inflamatórias autoimunes (como a RCU e a Doença de Crohn) nas localidades onde são usadas há mais tempo (como a Inglaterra). Se um organismo não aprende a “conversar” com outros organismos, certamente terá problemas para conviver com eles. E tudo isso não faz mesmo muito sentido depois que descobrimos que temos cem trilhões de bactérias em nosso corpo (70% do nosso peso sólido): um número maior, inclusive, do que o de células humanas.

O fundamental é que a ideia de pureza é consonante com o comportamento político que leva à separação. O diferente, em princípio, é um impuro, aquele cujo modo de ser, pelo seu simples existir diverso, constitui uma ameaça ao nosso way of life. Não podemos, portanto, nos deixar contaminar por ele (que deve, então, ser encarado como um potencial inimigo antes de ser aceito como um possível parceiro). Em vez de nos comportarmos segundo a evidência de que o que chamamos de ‘eu’ é ‘um outro’, nos armamos para ficar permanentemente prevenidos contra o outro.

Quando a democracia surge como uma brecha na cultura patriarcal, ela desafia a ideia de pureza. A democracia, desde o início, nunca foi a ideia de um governo dos mais puros (dos não corrompidos) e sim o de qualquer um. A democracia é suja, tão suja quanto qualquer um de nós quando passa o dia ralando prá cima e prá baixo na praça do mercado. Quem precisa de pureza (para, com base nela, legitimar a separação geradora de poder) é a autocracia.

Por isso que a antipolítica robespierriana da pureza é tão avessa à liberdade. Os jacobinos que querem nos purificar a partir da sua “teologia” do bem, destroem o sistema imunológico da democracia (que precisa da “sujeira” para funcionar) substituindo o que é sistêmico por mecanismos artificiais, por uma moral normativa que acaba virando moralismo (que é sempre imoral em política). Se é para separar os bons dos maus não estamos mais no campo da democracia, pois alguém deverá estabelecer ex parte principis, os critérios de pureza, os indicadores de bondade (e maldade).

É aí que aparecem ideias cretinas, como o tal “teste de honestidade”, inventado por procuradores da Lava Jato. Eles querem, a partir do Estado, ou melhor, de uma corporação incrustada no Estado, limpar o Estado dos maus, dos sujos, dos impuros. E, para tanto, não confiam nos sistemas de pesos e contrapesos da democracia (ou seja, na interação propriamente política, capaz de compensar ou contrabalançar desvios a partir de uma dinâmica orgânica). Não, eles querem erigir um tribunal ético capaz de separar os ‘do bem’ dos ‘do mal’. Ora, a democracia não aceita tribunais éticos, só jurídicos. O que a justiça julga não é se alguém é bom ou mau e sim se alguém violou a lei.

O procurador da força-tarefa da Lava Jato, Carlos Fenando dos Santos Lima, escreveu recentemente no seu Facebook:

“Ser Ministério Público é um sacerdócio…”

Ele está certíssimo. É coisa de sacerdotes mesmo. Mas ele nem desconfia de por que está tão certo. Jamais pensou que a hierarquia é um poder sacerdotal baseado na separação. A palavra hierarquia vem da palavra latina hierarquia que, por sua vez, vem da palavra grega ἱεραρχία (hierarchía), de ἱεράρχης (hierarchēs), aquele que era encarregado de presidir os ritos sagrados: ἱερεύς = hiereus, sacerdote, da raiz ἱερός = hieros, sagrado + ἀρχή = arché, tomada em várias acepções conexas como as de poder, governo, ordem, princípio (organizativo). A hierarquia é um poder sacerdotal vertical que se instala em uma sociedade instituindo artificialmente a necessidade da intermediação por meio de separações (entre superiores e inferiores).

E também jamais suspeitou que a democracia não é um regime sem corrupção e sim um regime sem um senhor, mesmo que seja um senhor puro, bom, honesto, capaz de impedir, ao exercer seu governo virtuoso, que os impuros, os maus, os desonestos venham sujar o ambiente que deveria ser sagrado (reservado, separado apenas para os limpos). Ele e seus colegas – assim como todos os jacobinos e moralistas – ainda não estão sujos o suficiente para poder assimilar a democracia.

De que ponto de vista podemos afirmar que ideia de pureza é uma ideia maligna? Ora, do ponto de vista da democracia. Porque bom, para a democracia, é tudo que nos faz mais livres. E a ideia de pureza, ao introduzir a separação entre puros e impuros, reduz os graus de liberdade dos que são julgados como impuros, seja eliminando ou restringindo as conexões, seja excluindo nodos, seja reduzindo o número de atalhos entre clusters. Isso não tem nada a ver com obedecer as leis e punir os que as transgridem (o que é correto). Está antes. É uma ideologia, uma visão de mundo selecionadora, julgadora, estabelecida ex ante à interação, que fecha em vez de abrir a possibilidade de ser alterado pelo outro (o outro concreto, com todas as suas sujeiras, imperfeições e curvaturas, o outro realmente existente, não um modelo ideal do ser limpo, perfeito e reto).

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