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Sobre falsos e verdadeiros currículos acadêmicos

Não sei se consigo entender perfeitamente a razão que leva alguém a colocar no currículo que fez doutorado ou mestrado em Harvard ou em qualquer outra renomada instituição de ensino superior. Isso parece óbvio, mas não é tão óbvio. Vejamos por que.

Comecemos examinando, com a ajuda de matéria de Rodrigo Castro, da Época e de uma notinha da Veja, algumas falsas declarações inseridas em currículos por pessoas conhecidas.

Wilson Witzel, atual governador do Rio de Janeiro, declarou ter estudado temporariamente em Harvard, nos EUA, como parte do doutorado da Universidade Federal Fluminense, que mantém parceria com a instituição americana. Não era verdade. Pego no pulo, ele mesmo se retratou informando que a menção à experiência acadêmica em Harvard aparecia em seu currículo porque o governador tinha a intenção de estudar lá.

Joana D’Arc Félix de Sousa, a pobre e negra professora de química que ficou famosa, afirmava, em seu currículo, ter um pós-doutorado em Harvard. Quando descoberta a falsidade do currículo, ela declarou não ter feito pós-doc e se desculpou pela mentira. O certificado que ela dizia ser seu diploma de Harvard era falso. A universidade não emite documentos dessa natureza para o curso de pós-doutorado.

O procurador popstar Deltan Dallagnol, estrela máxima da Lava-Jato, retirou de seu perfil no Twitter a informação de que é mestre em direito pela mesma universidade americana. Na plataforma Lattes, porém, ainda consta que ele concluiu nos Estados Unidos um LLM, curso de pós-graduação, que foi revalidado como mestrado pela Universidade Federal do Paraná.

Damares Alves, Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, apresentou-se como uma advogada mestre em educação e em Direito Constitucional e Direito de Família. Descobriu-se, entretanto, que ela não possui os títulos acadêmicos. Ela justificou que o termo “mestre” é uma designação dada nas igrejas cristãs a “todo aquele que é dedicado ao ensino bíblico” e não quem “precisa ir a uma universidade para fazer mestrado”. Em seu currículo no site da pasta que comanda, consta, agora, apenas sua formação na Faculdade de Direito de São Carlos e em pedagogia pela Faculdade Pio Décimo.

Dilma Rousseff, ex-presidente da República, teria cursado mestrado e doutorado em ciências econômicas pela Unicamp, como informavam seu currículo na plataforma Lattes e sua biografia na página do Ministério da Casa Civil, que chefiou de 2005 a 2010, durante o governo Lula. De fato, ela é formada em ciências econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas não terminou o mestrado e doutorado. Disse que, como aluna, concluiu todos os créditos, porém alegou não ter tido tempo hábil para defender suas teses devido às funções públicas que ocupava. Também afirmou que não sabia quem havia inserido as informações em seu currículo.

Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente, seria mestre em Direito Público pela universidade americana Yale, como foi identificado em artigo publicado, em 2012, no jornal Folha de S.Paulo. A partir daí, a formação acabou incorporada a seu currículo e adotada pela mídia. Salles admitiu não ter estudado em Yale, após a universidade informar ao portal The Intercept Brasil que não havia qualquer registro de que o ministro frequentara a Faculdade de Direito. Em seu Twitter, ele disse que a informação foi divulgada erroneamente “por um equívoco da assessoria”.

Celso Amorim, ex-ministro de Relações Exteriores (2003-2011) seria doutor em ciência política na London School of Economics (LSE), de acordo com seu currículo no site do Itamaraty. Na verdade, Amorim nunca concluiu o doutorado, como informou a universidade inglesa. Em palestra feita por ele em 2006, chegou a afirmar ao público que não havia acabado seu doutorado “provavelmente por causa do excesso de ambição à época”.

Bem… a lista completa de falsas declarações seria imensa. Mas o que nos interessa aqui não são apenas essas alegações fraudulentas e sim também as verdadeiras provas de conhecimento-ensinado.

O fato de uma pessoa ter um certificado de uma instituição qualquer não significa que ela será capaz de realizar alguma atividade criativa (que é o que caracteriza o que chamo de inteligência tipicamente humana). Se fosse assim, todos que estudaram (ou mesmo lecionaram) na Escola Politécnica de Zurique, na Universidade de Berna, na Universidade Humbolt de Berlim ou na Universidade Princeton, teriam desenvolvido uma atividade criativa semelhante a de Albert Einstein. E, ademais, também não significa que ela conseguirá realizar alguma atividade reprodutiva que exija expertise.

Claro que entendo pelo menos uma razão para essa fixação com atestados, certificados e diplomas: eles são exigidos para admissão de discentes e contratação de docentes nas universidades, de vez que fazer parte da corporação dos sábios é fundamental para o que Sir Ralf Dahrendorf, criticando acidamente Thomas Khun, na Sexta Conferência Anual do Conselho de Pesquisas Econômicas e Sociais, proferida em 19 de outubro de 1995 na Royal Society of Arts, em Londres, chamou de visão sindicalista (ou corporativa) da ciência. Corpos de pares não querem se sujar admitindo em seu seleto meio quem não foi autorizado e atestado como um igual por algum reconhecido (sempre pelos pares) tribunal epistemológico. Isso começou, pelo menos entre os gregos que cunharam o termo filosofia, com o sodalício pitagórico, antecedente da academia platônica, esta última a principal inspiração da escolástica universitária ocidental.

Mas o problema é que no último século isso também passou a ser exigido no setor privado e, mais recentemente, no setor público. Não importa o que o sujeito fez ou está fazendo e sim, como no samba de Martinho da Vila (1969), o seu canudo de papel.

Sendo assim, faz sentido colecionar diplomas: sobretudo para quem quer ter um patrão ou senhor. Sim, no que tange ao mercado de trabalho (com exceção da academia), muitos ainda não perceberam que currículos, certificados e títulos acadêmicos só são exigidos para cargos subalternos. Para ser dono de um hospital (ou até ministro da saúde) ninguém precisa ter diploma de médico, para ser dono de um jornal, revista, rádio ou TV, ninguém precisa ter certificado de jornalista. Para ser dono de uma instituição de ensino de qualquer nível, ninguém precisa ser professor. Para ser banqueiro ninguém precisa ser economista. Para ser industrial ninguém precisa ter cursado engenharia. Agora, se você quer ser empregado (ou “escravo legalizado”) seu patrão (ou senhor) logo lhe exigirá um diploma. Diplomas existem, nestes casos, para quem vai obedecer, não para quem vai mandar.

É óbvio que se você vai exercer uma profissão que coloca em risco a vida de terceiros (e, a rigor, a sua própria), precisa de qualificação. E que o Estado tem o direito de lhe exigir conhecimentos teóricos e práticos, habilidades específicas e, em alguns casos, experiência acumulada (o que pode ser feito por concursos e testes, não necessariamente por certificados e diplomas). Um cirurgião, um piloto de avião ou um motorista de ônibus, para dar três exemplos simples, não podem exercer tais atividades sem comprovação de competência. Mas estes não são os casos que examinamos aqui.

Por que um governador (que já era juiz, como Witzel) ou um procurador (aprovado em concurso público, como Dallagnol), precisariam ter feito cursos em Harvard? Por que uma presidente (como Dilma) necessitaria ter doutorado em ciências econômicas pela Unicamp? Por que um ministro do meio ambiente (como Salles) teria de ser mestre por Yale? De que adianta uma ministra da mulher e dos direitos humanos (como Damares) ter mestrado em direito constitucional? Para que um diplomata (como Amorim) precisaria de doutorado na London School? E por que essas pessoas são compelidas a mentir, dizendo-se portadoras de certificados e títulos que não possuem e de ter frequentado cursos que não concluíram ou nos quais nunca compareceram?

Com exceção, repita-se, das corporações medievais meritocráticas que passaram a ser conhecidas como universidades (e que se dedicam à closed science), pelas razões já expostas acima. Se só é ciência o que é reconhecido como ciência pela comunidade dos cientistas, igualmente faz sentido. O problema é que essas instituições, como já havia percebido Ivan Illich em 1970, escolarizaram a sociedade, transformando tudo em escola. E aí os critérios que se justificariam, em parte, dentro delas, passaram a valer também fora, em todo lugar.

Examinemos um caso concreto para explicar melhor tudo isso.

O CASO DE OLAVO DE CARVALHO

Há razões de sobra para criticar Olavo de Carvalho, mas não algumas que têm sido apresentadas. Vou citar apenas dois exemplos de críticas obtusas que têm sido feitas a esse “especialista no próprio pensamento” (a frase, ou melhor, o conceito, é do Reinaldo Azevedo – e cito-o aqui porque é preciso).

Crítica 1 – Olavo não tem graus acadêmicos, não frequentou nenhuma universidade, não tem nem currículo na plataforma Lattes e, por isso, não pode se dizer filósofo ou professor.

Crítica da crítica 1 – Não se pode criticá-lo por não ser acadêmico, não ter certificados e diplomas e currículo na plataforma Lattes. Um escritor não precisa de nada disso (e são tantos os exemplos, que seria cansativo e até injusto nomear os mais conhecidos). Um empreendedor, também não precisa de nada disso (Mark Zuckerberg, Steve Jobs, Bill Gates, Michael Dell, Julian Assange, Dustin Moskovitz, Bram Cohen, Paul Allen, Larry Ellison e centenas de outros empresários famosos também não concluíram cursos universitários).

A árvore se conhece pelos seus frutos e não pelos certificados emitidos por alguma corporação de botânicos. Ele pode, sim, ser professor, livre-docente (sem graus acadêmicos), desde que existam pessoas que o aceitem nessa condição e estejam dispostas a correr o risco de fazer seus cursos. Os sofistas faziam isso livremente nas praças e ruas da Atenas democrática do século 5 a. C. e eram duramente detratados por Platão, que fundou uma academia para selecionar quem podia entrar e quem não podia. Desgraçadamente, Olavo se diz filósofo, no sentido platônico do termo e deve odiar os sofistas, que eram democratas e precursores dos cientistas open science. Eis outra razão correta para a crítica.

Voltando à crítica da primeira crítica para resumir. O problema com Olavo são seus frutos perversos, antidemocráticos e, em certo sentido, anti-humanizantes, não a falta de documentos de algum tribunal epistemológico atestando que ele está apto a reproduzir conhecimento-ensinado.

Crítica 2 – Olavo ensinou ou investigou astrologia (uma falsa ciência), já foi adepto de seitas islamistas (uma religião fundamentalista) e isso o desqualifica para se apresentar como pensador ou professor.

Crítica da crítica 2 – Não se pode criticá-lo por ter se dedicado à astrologia e outras “ciências ocultas” ou por ter aderido ao islamismo em alguma época da sua vida. O código mecanicista da ciência moderna foi aberto, em parte, a partir dos esforços dos epistemólogos da ciência que floresceram na passagem do século 19 para o século 20, mas esforço semelhante ainda não foi feito com os códigos de outras possíveis (ou impossíveis) ciências; para citar alguns exemplos: a ciência da acupuntura (e da medicina tradicional chinesa), a ciência (da experiência) de Roger Bacon, a ciência (natural) de Giordano Bruno, a ciência (nova) de Gianbattista Vico, a ciência (astrológica) de Johannes Kepler, a ciência (alquímica) de Isaac Newton, a ciência (intuitiva) de Spinoza, a ciência (da metamorfose) de Goethe, a ciência (homeopática) de Hahnemann, a ciência (floral) de Edward Bach, a ciência (da psicologia analítica) de Carl Jung, a ciência (dos campos mórficos e da ressonância mórfica) de Rupert Sheldrake. Todas essas possíveis (ou impossíveis) ciências (dentre várias outras) têm códigos diferentes do código da ciência oficial (sim, oficial: creio que podemos chamar assim a ciência que se acha única pela jurisprudência da corporação acadêmica e é avalizada pelo Estado como tal).

(Um parêntesis. Quem leu – e entendeu – Paul Feyerabend ou se dedica, como eu, à open science, vai sacar o que estou dizendo (e olhem que comecei minha carreira no início dos anos 1970 estudando justamente filosofia da ciência, extra-classe ou depois do expediente, com o rigoroso filósofo Plínio Sussekind Rocha, que não podia mais entrar – cassado que fora pelo AI5 – no Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde eu estava matriculado).

Retomando novamente para concluir a crítica da segunda crítica. O problema de Olavo não é ele ter estudado essas coisas no passado e sim ele continuar pensando, agora, com os padrões míticos, sacerdotais, hierárquicos e autocráticos que estão presentes nas culturas particulares a que se dedicou (como a astrologia e o islamismo, esta última, aliás, uma cultura patriarcal quase em estado puro). Isso o leva a ter uma deplorável atitude anti-científica (e aqui não falo apenas da ciência moderna de Galileu, Descartes, Kepler e Newton, que foi encarada pelos filósofos da ciência que acreditaram estar fazendo uma ciência da ciência, como a única ciência possível).

Há razões de sobra para criticar Olavo: pelo conteúdo reacionário e antidemocrático do que ele pensa, pelo papel deletério que vem cumprindo nos últimos anos, encarnando o guru de uma seita de fanáticos (agora instalada na presidência da República), pela sua falta de educação ao tratar com quem pensa diferente, por ter se tornado um filósofo (acho mesmo que ele é um filósofo, mas isso, no caso, não é um elogio) de baixo calão, por ser um ególatra, preconceituoso, movido por ressentimentos (dentre os quais o principal é não ter sido aceito pelos intelectuais acadêmicos como o maior gênio da história da humanidade), pela dedicação em atrapalhar o governo do país et coetera.

Mas as duas razões que apontei acima – frequentemente sacadas por quem o critica – são regressivas e revelam um estado de miséria intelectual e uma falta de abertura e espírito criativo que também é deplorável.

Concluindo. De um ponto de vista da inteligência tipicamente humana, criativa, a declaração, falsa ou verídica, de títulos acadêmicos, é semelhante. Claro que é imoral mentir e, assim, alguém declarar que possui um certificado que não possui, é reprovável. Mas não é disso que estamos tratando aqui e sim do que leva a transformar pessoas em colecionadores de diplomas (mesmo verdadeiros).

Certificados, diplomas e títulos acadêmicos, em si, não dizem muita coisa. Não substituem o que a pessoa realmente fez ou, em geral, não fez (sua experiência ou sua produção intelectual). Do ponto de vista do domínio de uma techné, até se pode dizer que o grau conferido por quem já domina o assunto expressa um reconhecimento válido (como nas antigas corporações de ofício, a ascensão à posição de mestre). Do ponto de vista da episteme, entretanto, tudo isso é muito discutível. Se Sócrates fosse conferir certificados aos seus alunos mais brilhantes, como Crítias, Cármides e Alcebíades – que se transformaram em golpistas contra a democracia ateniense e ditadores sanguinários – que título deveria conceder-lhes?

Em qualquer caso, deve-se reconhecer, da árvore, os frutos. Não basta a alguém ter feito um curso de mestrado, doutorado ou pós-doutorado na mais famosa instituição do mundo: é necessário ter descoberto, inventado, criado, alguma coisa que possa ser reconhecida como válida, não apenas pela banca burocrática que constitui o juri do tribunal epistemológico particular que está examinando aquele paciente e sim pelas pessoas que se interessam por isso, que também investigam o assunto e, se for um produto científico, que possam objetivamente chegar às mesmas conclusões partindo das mesmas hipóteses e submetê-lo aos critérios da completude, da coerência interna e da verificabilidade, testabilidade ou falsificabilidade. Isso, é claro, para ficar no código da ciência mecanicista.

Se é para alguém ser reconhecido pelos seus pares, então bastaria o reconhecimento dos seus pares e, neste caso, ele precisa mesmo é da interação, não da instituição (e dos seus atestados). Entretanto, como a universidade perdeu o monopólio do conhecimento, restou-lhe se aferrar ao monopólio do diploma (como reconheceu há poucos anos Pierre Lévy).

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