Logo depois do 15M, publiquei um pequeno artigo intitulado Para entender o que aconteceu no dia 15 de maio de 2019 no Brasil: não foi mortadela!
Enumerei, no artigo linkado acima, algumas características frequentes em swarmings:
√ Surpresa (o número de pessoas consteladas surpreende até mesmo os convocadores que se achavam organizadores)
√ Improvisação (cada pessoa faz seu próprio cartaz, pinta sua própria faixa etc. – em geral, quanto mais mal-feito é este material, mais indica que não houve comando e controle centralizado)
√ Falta de uniformização (as pessoas não vão uniformizadas com camisetas e bonés, nem recebem esses itens de indumentária distintiva como brinde)
√ Não há (ou há pouco) arrebanhamento (as pessoas não são acarreadas, levadas de ônibus e caminhões, como nas manifestações de CUT e do MST)
√ A pauta é genérica e expressa interesses e desejos difusos (o fator detonador – que desencadeou a manifestação – é logo esquecido e ampliado: pode começar contra os 20 centavos de aumento nas passagens de ônibus mas extravasa o propósito inicial abarcando vários outros itens de insatisfação: com os serviços públicos, com o governo, com o sistema etc.)
√ Não há pagamento, jeton (nem sanduíche de mortadela com tubaína)
√ Em geral não há (ou há poucos) carros de som agitando o povo, “comandando a massa e dando as ordens no terreiro” (e esta é uma distinção importante, por exemplo, entre 2013 e 2015-2016 no Brasil)
√ Cada pessoa é sua própria manifestação (toma a iniciativa de convidar seus amigos, vai com com suas próprias pernas juntamente com seus parentes, colegas etc.)
√ Vibe pacífica (o clima geral é de confraternização, não de confronto: não há Black Blocs, por exemplo, ou eles só entram depois que as manifestações esfriam)
√ Bom humor (os cartazes fazem piadas com os governantes, tiram sarro)
√ Manifestação de uma fenomenologia da interação característica de redes distribuídas (as manifestações são convocadas centralizadamente, mas não se exercem sob um comando: o contingente constelado não obedece a diretivas e traça, na hora, os seus próprios caminhos).
E detectei elementos de swarming no 15M. A mesma coisa não foi percebida, entretanto, no 26 de maio, o protesto a favor do governo convocado pelo próprio governo, a manifestação chapa-branca que levou às ruas uma quantidade considerável de pessoas que apoiam Jair Bolsonaro.
Simplificando ao máximo: caráter emergente, distribuído e interativo, de uma manifestação (que constela multidões por efeito de swarming) pode ser detectado por indicadores inversamente proporcionais ao número: de carros de som, de pautas unificadas top down, de apoios explícitos dos poderosos.
O dia 15 foi maior do que o dia 26 a olhos vistos.
Mas a quantidade não é o mais relevante. O primeiro teve elementos de swarming (enxameamento que constela multidões, segundo um padrão distribuído). O segundo não teve. Foi mais arrebanhamento centralizado. Tão centralizado que conseguiu até emitir, com relativo sucesso, uma diretiva para maquiar a pauta (de contra o Congresso e o STF a motivação do evento virou, de repente, um protesto a favor do governo e de apoio às reformas e ao pacote anti-crime).
Quem não tem noção da dinâmica de rede (não estou falando das mídias sociais) não consegue entender isso. Infelizmente, jornalistas e analistas políticos, em geral, não têm. Faço apenas um registro: o junho de 2013 teve mais elementos de swarming do que as manifestações pró-impeachment de 2015 e 2016. Como se vê, não é apenas a quantidade que conta, embora ela também seja relevante. Mas há mais, muito mais.
Neste caso – o do 26 de maio – porém, não estavam presentes de forma tão significativa nem os elementos presentes nas manifestações do impeachment de 2015 e 2016, que já apresentaram características de movimentos organizados de cima para baixo (embora tenham extravasado as pretensões de grupos que queriam não apenas convocá-las, senão tutelá-las).
Em janeiro de 2018 tratei disso no artigo Por que as pessoas não foram às ruas, nem contra, nem a favor, no julgamento de Lula. Dizia naquela ocasião:
“As ruas” passou a ser uma expressão muita usada, no Brasil e em outros países, depois dos grandes swarmings deste século, como o 11M (2004) em Madri, a Primavera Árabe, em especial o 11F (2011) no Cairo, o 17S (2011) no Zucotti Park em Nova Iorque, o 30J (2013) em todas as cidades do Egito, a Revolução dos Guarda-Chuvas (2014) em Hong Kong – para citar apenas alguns exemplos. Na Turquia e no Brasil, os eventos característicos desse novo tipo de manifestação social ocorreram em junho de 2013.
Todos esses foram eventos convocados por vários grupos, mas não propriamente organizados centralizadamente por esses grupos de modo tradicional (com manifestantes arrebanhados, acarreados e, até, alugados, como nos eventos da CUT, do MST, do MTST ou do PT).
O lulopetismo ainda não entendeu o 2013. Sentiu o choque (a perda do monopólio das ruas), mas não soube interpretar o fenômeno interativo. Então, quando os petistas falam que vão para as ruas, é pura bravata ou ignorância. Podem juntar meia centena de pelegos para queimar pneus, mas não podem constelar multidões.
Os que se opõem ao lulopetismo, e que convocaram as grandes manifestações políticas pelo impeachment de Dilma Rousseff – sobretudo em 15 de março, 12 de abril, 16 de agosto de 2015 e 13 de março de 2016 – também não entenderam bem o que aconteceu, nem em 2013, nem nesses próprios eventos de 2015 e 2016 que se esforçaram por organizar. Como em algumas das manifestações pelo impeachment, mencionadas acima, houve de fato a afluência de multidões, numa dinâmica altamente interativa, os grupos que as convocaram atribuíram-se o papel de responsáveis pelo ocorrido. Sim, as pessoas comuns compareceram, mas não estavam nem aí para os que se achavam os bam-bam-bans do pedaço…
Houve realmente alguma coisa que escapou das convocatórias centralizadas e que transbordou por efervescência. Uma fenomenologia da interação, até então pouco conhecida, se manifestou. Miríades de micro-inputs se combinaram de um modo que não poderia ser previsto, muito menos planejado, pelos supostos organizadores. Esta é a dinâmica do enxameamento, de pessoas ou seres vivos ou não-vivos self-propelled: é o flocking, o shoaling, o herding observados em comportamentos coletivos de insetos, peixes e quadrúpedes ou mesmo em nuvens de nanopartículas ou drones.
Tal como os petistas, os grupos que se opuseram ao PT, não entenderam nada disso. Não viram que esses fenômenos ocorrem quando poderosas correntes subterrâneas do fluxo interativo da convivência social vêm à tona por algum motivo desconhecido (ou por uma conjunção particularíssima de vários fatores), raramente pelo esforço concentrado de convocá-las ou pela vontade de invocá-las.
Ou seja, o que importa é a topologia e a dinâmica da rede e não o número de pessoas (que podem se constelar por emergência ou ser arrebanhadas). O poder de Estado pode arrebanhar quantidades imensas de pessoas, mas não pode provocar swarmings. Por exemplo, Mao Tsé-tung conseguia encher a Praça da Paz Celestial, em Pequim, com milhões de chineses. E daí?
Para avaliar fenômenos de rede (não estou falando das mídias, como Facebook e Twitter) temos de ficar atentos aos pequenos detalhes (alguns dos quais listados acima).
Nesse sentido é bom prestar atenção a alguns instantâneos da manifestação chapa-branca que os bolsonaristas tentaram maquiar para dizer que era contra a corrupção (ainda um poderoso apelo popular) e a favor das reformas (como se, além do minoritário PT, ainda houvesse uma força significativa se opondo à reforma da Previdência).
Esses instantâneos, expostos na galeria de fotos abaixo, podem ser julgados como exceções (como os cartazes pedindo intervenção militar nas manifestações do impeachment), mas são reveladores (assim como foram em 2015 e 2016: não predominaram, mas indicaram alguma coisa que se viu depois com o resultado da eleição de 2018… e com a conversão de 90% ou mais dos grupos conformados para combater a corrupção em comitês eleitorais de Jair Bolsonaro). O que esses pontos fora da curva revelam? Eles revelam que o DNA autoritário é difícil de esconder.
A vibe que animava boa parte dos manifestantes chapa-branca (ou protestantes a favor), embora disfarçada e contida, por ordem de cima, era mesmo contra o Congresso (o chamado Centrão e Rodrigo Maia) e o STF (personificado em Toffoli e Gilmar). Em parte – mas somente em parte – há uma justa revolta contra o fisiologismo e a corrupção na política, que ficaram mesmo desenfreados no Brasil. Mas a questão é que houve uma instrumentalização política desse justo sentimento, feita por aqueles que acham que eleger um presidente é a mesma coisa que colocar no poder um ditador, para dizer ao parlamento e ao judiciário como devem ser comportar. Ou seja, as emoções e os pensamentos, prevalecentes na manifestação de 26 de maio de 2019, não eram, definitivamente, não eram, democráticos. E é isso que interessa aos democratas – não ficar esgrimindo, animados por um espírito guerreiro, quem coloca mais gente na rua. Mesmo se o 26 de maio tivesse reunido 10 milhões de pessoas, mesmo assim ele seria reprovável.
Segue a galeria: