Muitos projetos de ditadores – ontem, gente como Hitler e Mussolini e, hoje, vários líderes populistas-autoritários, como Trump e Bolsonaro – começam como piadas. No início esses proto-ditadores são tão implausíveis que quase ninguém acredita neles. Sua retórica extremista é objeto de chacota nos círculos bem-pensantes.
Com o tempo, porém, vão ampliando a janela do discurso e acabam por normalizar o que antes era impensável e inaceitável.
De sorte que é quase inevitável perguntar. Como quase 60 milhões de brasileiros puderam eleger um cara que defendia a tortura, a chacina e a ditadura? E por que muitos daqueles bem-pensantes continuam admitindo que um sujeito desqualificado como esse continue na presidência da República?
Tudo isso revela apenas uma coisa: a incapacidade das pessoas de perceber padrões autocráticos quando eles se manifestam, ainda que de forma esdrúxula, e de projetar suas consequências. E isso só acontece em razão de nosso déficit de agentes democráticos.
Agentes democráticos são aqueles que, entre outras coisas, atuam como fermentadores do processo de formação da opinião pública. Eles não precisam ser maioria (nunca foram, aliás: fermento não é massa), mas também não podem ser tão poucos que não consigam cumprir esse papel. O déficit de democratas leva continuamente a opinião pública a não perceber o perigo.
Por exemplo, jornalistas e analistas políticos de vários veículos tradicionais de comunicação ainda repetem que todos os ataques de Bolsonaro à democracia são apenas falas para manter coesa uma facção ou uma fração eleitoral que poderá levá-lo ao segundo turno de 2022. Não! Esses ataques são parte de um processo continuado, sistemático, de erosão da democracia. É assim que Bolsonaro vai matando a democracia, por envenenamento lento. Sua retórica golpista não é ração para o seu gado e sim pitadas de arsênico administradas diariamente na nossa dieta comum.
Ora, não existe democracia sem democratas. E embora a maioria da nossa população prefira a democracia a outros regimes, o número de agentes democráticos na população politicamente ativa é insuficiente no Brasil. Ou fazemos alguma coisa para resolver essa situação – ainda que trabalhando com um horizonte temporal estendido (por exemplo, de 2030) – ou o problema vai continuar.
Se em cada lugar ou setor de atividade não tiver alguém capaz de interpretar o que está acontecendo do ponto de vista da democracia, cada vez mais pessoas vão deixar de perceber as vantagens de viver num regime democrático. E isso, sim, constituirá uma base para que nossa democracia se desconsolide. O Brasil – que nunca foi, a rigor, uma democracia liberal – deixará de ser o que é hoje, uma democracia eleitoral, para virar uma autocracia eleitoral, como pretende a forma de populismo-autoritário que hoje nos assola (o bolsonarismo).
Ou, então, correremos o risco de substituir um populismo de extrema-direita por um neopopulismo de esquerda que – conquanto seja uma forma menos maligna de erosão da democracia – também enfreará o processo de democratização, impedindo que cheguemos a ser uma democracia liberal.
Sim, nem todos os populismos são iguais. Mas todos os populismos são i-liberais e majoritaristas.