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Na peleja entre um autocrata eleitoral e um democrata apenas eleitoral

O que vem por aí – ao que tudo indica – será horrível. Duas forças políticas populistas, uma de extrema-direita, outra de esquerda, se engalfinhando, com o mesmo comportamento e, inclusive, com a mesma linguagem de guerra. E ambas – objetivamente – unidas para demonizar os democratas liberais.

Daqui para frente (aliás, já está acontecendo) qualquer via democrático-liberal (quer dizer, não-populista) será barbaramente atacada pelo populismo-autoritário bolsonarista e pelo neopopulismo lulopetista. Eles têm mais raiva de uma chamada “terceira via” do que um do outro. O inimigo principal de ambos são sempre os democratas-liberais (não-populistas). Observem e comprovem.

Existem democratas eleitorais que recusam a democracia liberal. Pior do que isso: existem democratas eleitorais – neopopulistas – que são francamente i-liberais (e que até usam a palavra ‘liberal’ como um insulto ou xingamento). Para conhecer o neopopulismo lulopetista não se deve levar em conta para nada o que Lula fala. Deve-se observar o comportamento dos seus militantes. Os militantes lulopetistas são, em sua maioria, i-liberais, majoritaristas e hegemonistas. Não adianta dizer que o governo Lula foi democrático. É claro que foi. Foi democrático-eleitoral. Mas não democrático-liberal.

Para entender isso é preciso parar de repetir besteiras como a de que a democracia não pode ser adjetivada. Não só pode, como deve. O Brasil é uma democracia eleitoral. A Noruega é uma democracia liberal. Não são a mesma coisa. Vale também para a autocracia. A Nicarágua é uma autocracia eleitoral. Cuba é uma autocracia fechada (não-eleitoral). Não são a mesma coisa. Usamos aqui a classificação dos regimes políticos proposta pelo V-Dem da Universidade de Gotemburgo.

Lula e Bolsonaro são dois populistas, conquanto sejam muito diferentes. Lula é um democrata eleitoral. Bolsonaro é um autocrata eleitoral. Claro que numa disputa eleitoral, não havendo um democrata liberal como alternativa viável, um democrata eleitoral é preferível a um autocrata eleitoral. Mas não se pode pedir a um democrata liberal que vote em Daniel Ortega para evitar a vitória de Viktor Orbán, pois ambos são autocratas eleitorais. E, de antemão, antes do jogo começar, não se pode pedir a um democrata liberal que apoie um democrata eleitoral populista (como Lula) para evitar a vitória de um autocrata-eleitoral populista (como Bolsonaro). Os democratas liberais têm o dever de construir uma alternativa democrático-liberal. É para isso que existem. Não se pode pedir que se suicidem.

Os democratas liberais querem um governo (na verdade, um regime) que se aproxime mais da Costa Rica, da Suécia, da Suíça, da Noruega, da Dinamarca, da Alemanha, da Finlândia, da Islândia ou da Irlanda – que são democracias-liberais, do que da Argentina, da Bulgaria, da Colômbia, do México, da Polónia, da Romênia, da Indonésia, da Guatemala ou da Jamaica – que são democracias-eleitorais.

Quando uma democracia-eleitoral decai ela pode acabar virando uma autocracia-eleitoral, como aconteceu com a Hungria, com a Índia, com a Armênia, com o Líbano, com a Bolívia, com o Iraque, com o Paquistão e, nos casos extremos, com a Rússia, a Venezuela e a Nicarágua. O mais seguro, portanto, é promover o regime vigente no Brasil de democracia-eleitoral para democracia-liberal.

Um quadrinho com exemplos passados e recentes de dirigentes políticos democráticos (liberais ou eleitorais) ou autocráticos (eleitorais ou não-eleitorais) pode ajudar a compreender a classificação aqui adotada, com a advertência de que a orientação do chefe de governo não implica que o regime político seja por ele moldado (por exemplo, Jair Bolsonaro é um autocrata eleitoral, mas o regime vigente no Brasil não é uma autocracia-eleitoral e sim uma democracia-eleitoral).

Também é preciso esclarecer que a palavra ‘liberal’ aqui não tem a ver com o conteúdo a ela atribuído pelas doutrinas do liberalismo econômico, nem com neoliberalismo. A palavra é empregada neste artigo no seu sentido político, tanto do liberalismo moderno (Locke Montesquieu, Tocqueville, Constant, Stuart Mill), quanto do liberalismo antigo (dos atenienses do século 5 a.C. – liberal é toda política cujo sentido é a liberdade – e, extraordinariamente, no sentido que lhe atribuiu Spinoza, que em 1670 fez a ponte entre o liberalismo antigo e o moderno).

As diferenças entre liberais (no sentido político do termo, como exposto acima) e populistas são apresentadas no quadro abaixo:

Cabe registrar ainda, para esclarecer as diferenças entre democratas liberais e democratas (apenas) eleitorais, que os democratas liberais adotam uma visão “negativa” do poder político na medida em que julgam a qualidade da democracia pelos limites impostos ao governo. Daí a importância que conferem à proteção dos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. Para os democratas liberais isso é alcançado por meio de liberdades civis constitucionalmente protegidas, forte domínio da lei, um poder judiciário independente e freios e contrapesos efetivos que, juntos, limitam o exercício do poder executivo (confira o link – o mesmo já apresentado acima – para ver quais são os indicadores de democracia liberal).

Voltando ao debate atual no Brasil. E repetindo. Não adianta dizer que o governo Lula foi democrático, como insistem os neopopulistas de esquerda. É claro que foi. Foi democrático-eleitoral. Mas existem democratas eleitorais que recusam a democracia liberal. Os democratas eleitorais populistas são i-liberais.

É claro que os democratas liberais não devem apoiar apenas candidatos democratas liberais, posto que procedendo assim seriam principistas religiosos e não atores políticos. Podem, em determinadas circunstâncias, apoiar candidatos democratas apenas eleitorais. Mas não devem apoiar – a não ser se não houver outro jeito – candidatos populistas (digam-se de esquerda ou de direita ou extrema-direita), posto que estes são i-liberais.

Se em 2022 o eleito for Alessandro, Amoedo, Dória, Leite, Mandetta, Tebet (e até Ciro, se conseguir sair do século 20), está bem para os democratas liberais. Qualquer um desses é preferível a um populista, porque os populismos são hoje, digam-se de esquerda ou de direita ou extrema-direita, os principais adversários da democracia-liberal. E também porque, para os democratas liberais, que são políticos stricto sensu, o voto não é um ato religioso; os democratas liberais não estão buscando qualquer perfeição, não querem limpar o mundo ou salvá-lo separando os bons dos maus. Querem apenas evitar que o regime democrático perca conteúdo liberal.

Na peleja entre um autocrata eleitoral e um democrata apenas eleitoral, um fenômeno tipo Macron é a esperança que restou aos democratas liberais (quer dizer, aos não-populistas) para 2022. Mas isso não depende só deles. Pode não acontecer. O mais provável é que não aconteça. Assim, o mais razoável é trabalhar com o horizonte de 2030. Não esperar 2030, entenda-se bem. Trabalhar agora, a partir de 2021, para termos um número suficiente de democratas em 2030. Porque, definitivamente, não existe democracia – nenhuma democracia: liberal ou apenas eleitoral – sem um número suficiente democratas.

Multiplicar o número de democratas – de preferência liberais (no sentido político do termo) – é o principal imperativo neste longo período de recessão democrática em que vivemos.

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