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Crítica da crítica de Risério à ideologia identitária

Avalio como importante o esforço de Risério para mostrar que o identitarismo censitário e a obsessão multiculturalista são ideologias que ameaçam a democracia liberal. O problema é o que ele entende por democracia liberal.

Examinemos, a título de exemplo, seu artigo do início de outubro na Folha de São Paulo, reproduzido abaixo com grifos nossos (em azul) alguns comentários críticos (em vermelho) interpolados.

Transformação da ideia de diversidade em dogma nas últimas décadas levou a uma compreensão fraudulenta da história ocidental e a uma tentativa de reger a sociedade por meio de lógica de representação estatística, com cotas sexuais ou raciais. Esse projeto de Estado identitário, herdeiro da organização corporativa do fascismo italiano, ameaça o modelo de democracia liberal.

O cardápio contestador dos “sixties” foi variadíssimo. Havia tanta coisa em jogo, que a única definição possível era falar da contracultura e do Maio de 1968 como espaços da manifestação do múltiplo e do diverso.

E foi justamente por aí que veio a palavrinha mágica, diversidade, emergindo “a posteriore” como denominador comum do repertório do final daquela década — porém não mais como definição ou classificação ocasionais, e sim como ideologia.

Desenhou-se um novo campo magnético, com a “diversidade” no centro, articulando na esfera política, como disse o sociólogo Mathieu Bock-Côté, todo um leque de manifestações e reivindicações.

Sob o conceito (e, depois, dogma) da diversidade, a multiplicidade ganhava uma suposta unidade. Aqui, a partir da década de 1980, já não se tratava mais de reconhecer a existência da diversidade no mundo, mas de defendê-la programaticamente, impondo-a ao conjunto da sociedade.

Sim, não se trata de apreciação sociológica (o que estaria correto), mas de combustível (ideológico) para degenerar a política (democrática) como guerra. Risério tem razão: o identitarismo-multiculturalista é uma ideologia. E uma ideologia guerreira, não pazeante.

Esse eixo político esbarraria num inimigo comum — o “homem branco”, e numa inimiga comum, a “civilização ocidental”. Tratava-se da incorporação do legado contracultural, que se expressara no slogan “Western Civilization Is Over”.

A estratégia, desde então, é tirar proveito máximo do “masoquismo ocidental”, para lembrar a expressão cara ao filósofo Pascal Bruckner, o autor do livro “A Tirania da Penitência: Ensaio Sobre o Masoquismo Ocidental”.

Defende-se agora que a história do mundo ocidental não passa de um filme de terror. A história brasileira, inclusive. Quase tudo com base em leituras fraudulentas, dualismos primários e ignorância, muita ignorância, por parte de militantes que pouco se importam com a exatidão histórica. Curiosamente, são intransigentes com as democracias que temos, mas complacentes com ditaduras extraocidentais.

Bem notado. Por exemplo, vê-se muito pouca crítica do movimento feminista, hegemonizado pela esquerda, à discriminação das mulheres no islamismo. Aí entra o alegação multiculturalista para desculpar, mitigar ou passar pano no comportamento autoritário.

Os ataques ao Ocidente, lugar por excelência da culpa, caem sempre em solo propício. Nada mais ocidental do que criticar, arrasadoramente, o Ocidente. Nossos grandes pensadores sempre fizeram isso.

Agora, é a vez dos identitários multiculturalistas, todos ocidentalíssimos, embora fingindo que não, repetirem que o Ocidente não fez mais do que humilhar, escravizar, assassinar os outros povos, todos invariável e rigorosamente angelicais e oprimidos.

A história do Brasil, para eles, resume-se à chacina de índios, à opressão das mulheres e à tortura de negros, perpetradas por uma elite branca racista e patriarcal. Só. E agora as vítimas exigem sua indenização, compensação retrospectiva de vantagens perdidas.

É a partir daí que se projeta a sonhada transformação político-social da sociedade e do mundo. Para chegar lá, no entanto, teremos de passar por um intervalo autoritário, que se responsabilizará pela submissão compulsória de todos aos dogmas sagrados do multicultural-identitarismo.

É a velha conversa da “ditadura do proletariado” em nova roupagem, ditadura diversitária, com apoio da universidade, da mídia e de boa parte do empresariado (veja-se “The Dictatorship of Woke Capital”, de Stephen Soukup).

A ideia de que haverá algum tipo de transição para uma sociedade igualitária é antidemocrática. É como se dissessemos que enquanto houver desigualdade (ou separações baseadas em diferenças de raça, cor, sexo, orientação sexual etc.), não pode haver (plena) liberdade. Se fosse assim a democracia não teria sido inventada numa sociedade que tinha escravos (ou não foi?). Isso remete diretamente ao reino da liberdade (e da abundância) prometido pelos marxismos, instaurando um atalho autocrático para uma sociedade democrática. Ora… a democracia é meio e fim: não se pode chegar à democracia senão através da democracia (como disse há tantos anos John Dewey, bem antes de Amartya Sen). E a liberdade não é um lugar a que se chega, mas uma esfera que se expande. Se não temos liberdade hoje, não poderemos ter liberdade amanhã. 

A ideologia diversitária se revela, de fato, adversária plena da democracia liberal. Nessa visão, é a “diversidade” que deve reger o mundo — e o princípio de sua regência está na estatística. Sim: entra em cena uma outra concepção de representação ou representatividade social, rigorosamente numérica.

Está correto, mas democracia liberal não é a mesma coisa que democracia eleitoral. Segundo a boa classificação do V-Dem, existem hoje no mundo dois tipos de democracia e dois tipos de autocracia: a democracia liberal, a democracia eleitoral, a autocracia eleitoral (o regime mais numeroso) e a autocracia fechada (não-eleitoral).

A conversa pode então ser resumida nos seguintes termos: se os pretos representam x% da população brasileira, então eles têm de ser x% nas cátedras universitárias, no Poder Judiciário, na produção cinematográfica, na mídia, no Congresso Nacional e assim por diante. Um princípio que, eventualmente, pode vir a ser irônico, mas será sempre revelador.

Irônico como no caso recente do Chile, que programou eleições para uma Assembleia Constituinte que deveria ser rigorosamente paritária, em matéria de gênero. As mulheres queriam evitar que homens controlassem a feitura da nova carta constitucional do país. Acontece que os resultados das urnas surpreenderam: as mulheres foram mais votadas que os homens.

Logo, para obedecer ao princípio paritário previamente acordado, 11 mulheres se viram obrigadas a abrir mão de seus mandatos em favor de homens menos votados.

A verdadeira soberania democrática teve de dar lugar a um democratismo estabelecido de antemão, com bases em cotas. A regra básica da democracia ocidental — uma cabeça, um voto — foi arquivada, substituída por um modelo extraído, em última análise, do repertório mussolinista.

Essa não é a regra básica da democracia ocidental. É a regra básica da democracia eleitoral. Além do critério da eletividade, a democracia tem outros critérios tão importantes quanto, como: a liberdade, a publicidade ou transparência, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade. E não há propriamente uma democracia ocidental. Há uma democracia que foi inventada pelos antigos, em Atenas, e reinventada pelos modernos, com variantes inicialmente inglêsa, americana e francesa. O fato de isso ter acontecido na parte geograficamente ocidental do mundo não significa que seja intrinsecamente ocidental, no sentido cultural do termo. (Veja a nota final deste artigo sobre a democracia como valor universal).

Modelo que neste momento, no sentido da construção de um Estado multicultural-identitário, traz também, ao lado da divisão sexual, o critério de raça e cultura, designando uma fatia de cadeiras da Constituinte chilena para os agora chamados “povos originários” (todos imigrantes, como bem sabem historiadores e antropólogos).

Ou seja: temos a recusa da democracia liberal, com sua disposição representativa já secular, fundada no valor individual.

A democracia liberal não está fundada no valor individual. A democracia liberal, originariamente, é a política que toma como sentido a liberdade e isso quando o sujeito político não era o indivíduo e sim a koinonia (comunidade) política. Quando os modernos reiventaram a democracia o sujeito político passou a ser o indivíduo, mas porque já seria impossível, com o baixíssimo grau de interatividade presente nos nascentes Estados-nações, formar sujeitos políticos coletivos. O fato do sujeito político ter passado a ser o indivíduo (que aliena o seu próprio poder ao se fazer representar), não significa que o liberalismo político só possa ser exercido por indivíduos ou que não possa ser exercido interativamente, por comunidades políticas. É preciso levar em conta que há um liberalismo antigo e um liberalismo moderno

Não há como conciliar o sistema eleitoral de “uma cabeça, um voto” e um Congresso com assentos predeterminados, com segmentos representacionais previamente loteados.

Claro: se a ocupação do Congresso Nacional, de assembleias estaduais etc., vai se pautar por um sistema de cotas, repartindo cadeiras em função de raça e sexo, o princípio democrático tradicional perde automaticamente a validade.

Estamos nesse caminho no Brasil. O primeiro grande passo foi estabelecer o regime de cotas no âmbito inicial das candidaturas: cada partido é obrigado a apresentar x% de candidatas mulheres ou de candidatos pretos, por exemplo.

O passo seguinte, logicamente, e agora no rastro da experiência chilena, será fixar números de cadeiras por raça, sexo e orientação sexual, tornando as casas legislativas receptáculos pré-compartimentados a serem preenchidos segundo a natureza e a extensão de seus cômodos.

Sim: o Congresso se transformará numa casa de cômodos — alguns raciais, outros sexuais. E penso que uma nova eleição de Lula irá desembocar nisso, na promulgação de separatrizes congressionais, de acordo com a base estatística de cada grupo social.

Um alerta importante! Grupos identitaristas estão aguardando a eleição de Lula para retomar o processo de transição, quer dizer, de luta para emplacar sua politics beligerante em novas policies estatais. É o Estado “nas mãos certas” que vai normatizar tudo para que alcancemos a sociedade igualitária.

Para quem protelava a iniciativa de qualquer reforma política, o que se anuncia no horizonte é uma tempestade e tanto — e para azar da democracia. É o fantasma do Estado fascista retornando ao palco. O corporativismo fascista se desdobra no corporativismo identitário.

Com isso, pode ocorrer o seguinte: uma sociedade votar em peso na social-democracia, mas, em consequência de um acordo censitário, ter de aceitar 50% de candidatos homens, em sua maioria de centro-direita, por exemplo. Bem, isso não é democracia, é representacionismo estatístico — ditadura diversitária.

O corporativismo fascista foi um sistema de representação de classes e grupos de interesse, com o objetivo de transcender tanto o individualismo quanto a luta interclassista. A finalidade última, como se sabe, seria consolidar instituições permanentes que abrigassem representantes das diversas classes, no caminho da realização da harmonia social.

O corporativismo diversitário é uma retomada do corporativismo fascista em novas bases, com os antigos agrupamentos profissionais do projeto de Mussolini substituídos por segmentos raciais e sexuais, superando o individualismo da democracia liberal pelo grupocentrismo identitário.

Teríamos um redimensionamento das instituições a partir de partilhas censitárias. A estatística reinará acima de tudo, como o grande princípio organizador do sistema político. Alarga-se assim, sempre mais, o arco de ataques à democracia representativa.

É claro que alguma discussão poderá ser até enriquecedora. De minha parte, não vejo como ameaça o debate que teremos de encarar acerca da democracia liberal e do neomandarinato meritocrático chinês, por exemplo.

A China coloca um tremendo problema em nosso caminho — e não devemos tentar contorná-lo. Em “When China Rules the World”, Martin Jacques sublinha que o Estado chinês mantém uma relação com a sociedade muito diferente da nossa. “Desfruta de muito maior autoridade natural, legitimidade e respeito, muito embora nem um só voto tenha sido dado ao governo.”

A cultura política chinesa é de base milenar. Como diz o cientista político Zhang Weiwei, em “The China Wave”, é inimaginável que a maioria dos chineses aceite um sistema democrático multipartidário, com troca de governo a cada quatro anos. “A democracia é um valor universal — o sistema democrático ocidental, não”, escreve Weiwei.

Roberto Mangabeira Unger concordaria, mas ninguém pode afirmar categoricamente que a democracia ocidental não é exportável, ou que seja impossível promover sua imposição em países extraocidentais.

O Japão nega isso. É modelo muito bem-sucedido de democracia imposta pelas armas, em seguida à Segunda Guerra Mundial. Com a retomada de Cabul pelo Talibã, o fato foi negritado por Giovanni Sartori, em artigo no jornal italiano Corriere della Sera: “…o caso do Japão demonstra mais e melhor que qualquer outro que a democracia não é necessariamente vinculada ao sistema de crenças e valores da civilização ocidental. Os japoneses continuam culturalmente japoneses, mas prezam, ao mesmo tempo, o método ocidental de governo”.

Talvez mais significativo ainda seja o caso da Índia, país que, com toda a sua heterogeneidade cultural, assimilou e adaptou o constitucionalismo britânico.

No polo oposto ao do multicultural-identitarismo, o pensador indiano Amartya Sen vai bem além disso. No livro “Identidade e Violência”, critica a insistência em compartimentar os povos do mundo em “boxes of civilizations”.

É a grande ilusão da singularidade, diz. Povos e culturas têm suas especificidades, claro, mas não irredutibilidades fechadas em configurações definitivas, uniformes e segregadas.

A visão que pretende fixar separatrizes insuperáveis entre civilizações não só dá as costas à história e passa ao largo da diversidade interna de cada complexo civilizacional, como fecha os olhos às múltiplas interrelações existentes entre civilizações distintas entre si.

Com essa obsessão multiculturalista por separar drasticamente as coisas, obscurecemos a história, falsificamos a realidade e cometemos erros primários.

Amartya Sen argumenta exatamente com relação à democracia, que muitos teimam em definir como “uma ideia quintessencialmente ocidental e estranha ao mundo extraocidental”.

Parte-se, aqui, da falsa crença de que a tolerância e a liberdade são características próprias e intransferíveis do Ocidente. Em resposta, Sen observa que o pensamento de Platão e o de Tomás de Aquino não era em nada menos autoritário do que o de Confúcio.

Exato! Acrescente-se que a política identitária foi a saída lógica para uma ideologia historicista e economicista que previa a transição para um paraíso igualitário. Como o proletariado deixou de ser aquela classe cujos particularismos, uma vez realizados, se universalizariam, era preciso alimentar a guerra em direção à utopia maxista de outra maneira.

E lembra que, na mesma época em que hereges eram atirados nas fogueiras da Inquisição, o imperador indiano Akbar, o Grande Mughal, pregava a tolerância religiosa, assentando que toda pessoa tinha o direito de seguir a religião que quisesse.

Nessa batida, Sen acaba falando de raízes planetárias da democracia. Muito antes de ter qualquer impacto entre antigos povos nórdicos — ou no que é hoje a Inglaterra, a França ou a Alemanha —, a experiência democrática pioneira da Grécia repercutiu em cidades asiáticas de sua época.

Mais: a tradição de governar através do diálogo e da discussão pública é coisa encontrável historicamente em diversas partes do mundo.

No caso do Japão, cita-se a regência do príncipe budista Shotoku, promulgando uma constituição no século 7º, como primeiro passo num caminho gradual para a democracia. Sen se refere ainda à ampla tolerância vigente na Península Ibérica sob domínio muçulmano, de que foi exemplo maior o Califado de Córdoba sob Abd al-Rahman 3º.

O mundo ocidental não detém o monopólio da ideia democrática, finaliza o pensador: ao passo que as modernas formas institucionais da democracia são relativamente recentes em todos os lugares, a história da democracia, sob a forma de participação e discussão públicas, encontra-se disseminada no mundo.

Mas retomemos o fio da meada, voltando à China. O identitarismo poderá se derreter diante do brilho planetário do sol amarelo dos chineses. Caminhamos para uma horizontalização da ordem mundial, com a China no mesmo nível do Ocidente, em matéria de poder e riqueza.

O multicultural-identitarismo vai cair em si enquanto fantasia ideológica essencialmente ocidental. Vai-se ver sem o macho branco como bode expiatório do mundo. Terá à sua frente o macho amarelo, que não deve nada ao macho preto. E com uma história milenar de opressões, que o identitarismo não julga, pois nasceu exclusivamente para alvejar o “mundo branco”.

Exato! O problema é a cultura – mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática – da civilização patriarcal, não da “civilização ocidental” (o Ocidente, como se sabe, é uma invenção). 

Mas vamos finalizar. As ameaças mais reais e imediatas à nossa democracia não vêm da China. Resultam do populismo autoritário de direita (a que mais de perto e perigosamente nos tensiona agora, com o ex-capitão boçal reunindo milicos, milícias e evangélicos para o golpe que não se cansa de anunciar) e do populismo autoritário de esquerda, que traz agora como novidade o projeto igualmente autoritário de uma “democracia diversitária”. No Brasil, aliás, são os próprios partidos políticos, na disputa pelo poder, que paralisam a democracia.

Exatamente! Os principais adversários da democracia liberal são, hoje, os populismos (i-liberais e majoritaristas). A diversidade é um valor (na medida em que a valorizamos), mas não um valor universal acima da democracia (que seria apenas um valor ocidental). Não há nenhuma evidência de que um mundo dividido em cotas (de raça ou cor, gênero, orientação sexual et coetera) seria mais democrático.

E aqui teremos de nos dispor, inclusive, a uma conversa muito pouco usual, embora já frequente nas reflexões de alguns pensadores e analistas políticos. Trata-se de elucidar o que talvez seja mesmo o perigo maior: a radicalização extremista da democracia pode levar à sua destruição. Tocqueville já pensava nisso. Temos de acender a luz sobre o potencial autodestrutivo da democracia.

Aqui não! A radicalização da democracia é mais-democracia e não menos-democracia. A democracia liberal é radical (desde o início da experiência ateniense). Não há nenhum “potencial autodestrutivo da democracia”. A imaginária “tirania da maioria” jamais aconteceu em algum lugar do mundo ou época da história. É, simplesmente, um medo – compartilhado por Stuart Mill e pelos Federalistas – de que as massas vão nos roubar o “cetro do razão” (para usar uma expressão de Hamilton). Se há tirania da maioria não há democracia, mas nenhuma democracia virou tirania por essa via. Quando uma democracia se converte em tirania é porque houve a) invasão estrangeira, b) golpe militar, c) autogolpe ou d) erosão democrática promovidas por forças políticas autocráticas. A democracia só sucumbe dessas quatro maneiras.

Acho curioso que pessoas se espantem com isso: se falamos do potencial autodestrutivo da humanidade, de que as armas nucleares são os produtos mais evidentes, por que não falar de uma coisa bem menos grave, que é o potencial autodestrutivo da democracia?

Não falamos mesmo, mas porque isso não existe!

De uma parte, o receio em relação a esse ponto vem do fato de que podemos tomar o rumo de uma fragilização inédita das instituições sociais, como já vemos nos casos do sistema educacional e da negação absolutamente prematura da nação.

De outra, decorre da percepção de que a obsessão estatística do multicultural-identitarismo não deixa de descender, perversamente, do sonho igualitarista da Revolução Francesa. Quer levar o ideal do século 18 à perfeição, mas por um caminho que julgo totalmente equivocado, o do representacionismo estatístico.

O sonho igualitarista não é um sonho democrático. Ainda que uma sociedade menos desigual seja desejável, não cabe à democracia produzí-la diretamente, muito menos por meio de medidas estatais (policies). A matéria propriamente política é a liberdade, não a igualdade. Conquanto a igualdade política (isonomia, isologia e isegoria) seja condição para a liberdade, isso não significa que a igualdade sócio-econômica e a diversidade de raça ou cor, de gênero ou sexo, de orientação sexual etc., sejam condição para a experimentação da democracia. Como já foi dito acima, se fosse assim, a democracia jamais teria nascido numa sociedade com escravos e jamais teria sido reinventada em sociedades altamente desigualitárias (em todos os sentidos). Esperar uma sociedade igualitária para ter uma “verdadeira” democracia é uma posição, ao fim e ao cabo, antidemocrática. Porque pressupõe que, por fora da democracia, alguém poderia chegar à mais-democracia.

Seja como for, o dado real, na conjuntura que estamos atravessando, é que o Estado identitário começa a se desenhar, diante de nossos olhos, como uma subvariante ou variante nova da organização estatal corporativa herdada do fascismo italiano.

Bem vistas as coisas, depois da maré do “politicamente correto”, o representacionismo diversitário quer implantar, no campo da política, uma espécie de representacionismo estatístico. Uma ditadura censitária — ou a ditadura do demograficamente correto.

Tudo na base da cota. Na verdade, só não se fala de cota a propósito da seleção brasileira de futebol, pois nesse caso o objetivo é ganhar o jogo. Não há lugar para comemorações negativas, nem para institucionalizações da compaixão.

UMA OBSERVAÇÃO FINAL SOBRE A DEMOCRACIA COMO VALOR UNIVERSAL

Certas perguntas tornaram-se recorrentes. Como a democracia pode ser tomada como um valor universal (como querem os democratas) diante de várias culturas que não a valorizam? Não se trataria, mais propriamente, de um valor ocidental? Como esperar que outras culturas (como o islamismo, por exemplo, mas vale também para culturas orientais, como a confucionista-chinesa e para culturas de povos primitivos) possam adotá-la, supostamente contra todas as suas tradições e costumes?

Em primeiro lugar é preciso ver o que é um valor. Valor é alguma coisa valorizada por seres humanos. A democracia é um valor para os que a valorizam, no caso, para os que desejam viver sem um senhor. Para os que não desejam, para os que têm vocação para rebanho, para servos que valorizam a proteção que lhes possa dispensar um governante paternalista, um déspota bondoso – mesmo que seja um tirano ou ditador, mas que lhes cavalgue com gentileza e se ofereça para resolver seus problemas – a democracia não é um valor.

Os democratas afirmam que a democracia é um valor universal. E o fato de certos povos, imersos na cultura islâmica (ou em outras culturas patriarcais em estado mais puro, ou seja, menos domesticadas e reformadas pelos fluxos interativos da convivência social), não aceitarem a democracia, não significa que a democracia não seja um valor universal (e sim ocidental, como querem os multiculturalistas). A democracia continua sendo um valor universal: o que significa que ela continua sendo valorizada universalmente (isto é, em qualquer época ou lugar) pelos que pensam (e se comportam condizentemente com esse pensamento) que o sentido da política é a liberdade (e não a ordem, como afirmam os autocratas). Este ponto é básico.

Humberto Maturana (1993), no texto intitulado Conversações matrísticas e patriarcais (primeira parte do livro Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano) escreve que,

“como nem todas as formas de patriarcado têm um núcleo cultural matrístico na infância, nem todas elas incluem um fundo de conversações matristicas que permitam um emocionar adulto, no qual as conversações democráticas podem ser vividas como algo que faz sentido como um modo naturalmente legítimo de coexistência. Tal acontece, por exemplo, nas formas patriarcais mais puras, como aquelas dos povos que vivem sob as diferentes ramificações da religião muçulmana. As pessoas que cresceram originalmente no seio das conversações patriarcais muçulmanas devem primeiro modificar algumas dimensões de seu espaço convencional e orientá-las de modo matrístico, para que as conversações democráticas façam sentido para elas como geradoras de um espaço de coexistência legítimo e desejável”.

Convém entender o que Maturana chama de matrístico:

“O termo “matrístico” é usado… com o propósito de conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário e do hierárquico. A palavra “matrístico”, portanto, é o contrário de “matriarcal”, que significa o mesmo que o termo “patriarcal”, numa cultura na qual as mulheres têm o papel dominante. Em outras palavras – e como se verá ao longo deste capítulo -, a expressão “matrística” é aqui usada intencionalmente, para designar uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não-hierárquica. Tal ocorre precisamente porque a figura feminina representa a consciência não-hierárquica do mundo natural a que nós, seres humanos, pertencemos, numa relação de participação e confiança, e não de controle e autoridade, e na qual a vida cotidiana é vivida numa coerência não-hierárquica com todos os seres vivos, mesmo na relação predador-presa”.

Para responder a última pergunta acima – como esperar que outras culturas (como o islamismo, por exemplo, mas vale também para culturas orientais, como a confucionista-chinesa e para culturas de povos primitivos) possam adotá-la, supostamente contra todas as suas tradições e costumes? – deve-se dar uma resposta semelhante à de Maturana. As pessoas que cresceram no seio de culturas caracterizadas por conversações patriarcais, se quiseram que a democracia faça sentido para elas, devem primeiro modificar seus modos de convivência social. A democracia é liberdade de opinião e é difícil entender isso por quem não tem nem sequer o conceito de opinião. As pessoas, nessas culturas, não acham que podem opinar sobre assuntos que estão a cargo de hierarcas, designados pelo próprio deus ou pelas autoridades instituídas pela divindade (no caso do Islã, pelo Corão, pela Sharia, pelos sacerdotes e professores autorizados a interpretá-los). A opinião da pessoa comum não é matéria prima da política quando a política está fundida à religião ou a outra ideologia ou doutrina qualquer considerada a única válida e verdadeira. De que valeria, por exemplo, a opinião de uma pessoa qualquer do povo diante do saber de um aiatolá?

A democracia só pode se exercer (e fazer sentido) se as opiniões forem consideradas e aferidas pelo processo político, se puderem ser livremente proferidas e se forem igualmente valorizadas em princípio (tanto a opinião do sábio quanto a do ignorante e tanto a opinião do clérigo como a do leigo). Em culturas fortemente patriarcais, isso não acontece. Logo, para as pessoas imersas nessas culturas, que não romperam as circularidades próprias das conversações que caracterizam (e, mais do que isso, que são) essas culturas, a democracia não pode se exercer e nem mesmo fazer sentido.

Porém nada disso significa – como vimos acima – que a democracia não seja um valor universal. Os que romperam com esses laços de retroalimentação de reforço da cultura patriarcal, mesmo que tenham nascido e vivam em localidades onde essa cultura é predominante, podem assumir a democracia, em geral na forma de resistência às ideias e práticas dominantes. Para estes, a democracia continuará a ser um valor universal.

Mas isso só acontecerá se houver, em algum grau, miscigenação de culturas. A perspectiva multiculturalista, que quer preservar qualquer cultura como se fosse patrimônio intocável da humanidade, colocando-se contra a miscigenação cultural, é um obstáculo para que tal processo de conversão à democracia possa ocorrer.

Ademais há a questão dos direitos humanos, intimamente relacionada à democracia (por razões que não serão tratadas aqui). Os democratas, em nome do respeito a outras culturas, não podem concordar com a violação de direitos humanos; por exemplo, não podem aceitar o apedrejamento de mulheres adúlteras ou a extirpação do clitóris de crianças e jovens, nem transigir com outras práticas desumanas de dominação patriarcal (como o assassinato ou o tratamento cruel dispensado às populações lgtbqia+).

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