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A democracia liberal é radical (e vice-versa)

Nas nossas explorações para encontrar o DNA da democracia redescobrimos apenas o que deveria ser óbvio. Que esse DNA é liberal, no sentido político, democrático-originário, do termo – não, por certo, no sentido economicista da palavra ‘liberal’ (urdido pelas doutrinas do liberalismo-econômico).

Liberal, no sentido democrático original do termo, é o que toma a liberdade (e não a ordem) como sentido da política, como fizeram os democratas atenienses do século 5 a.C. Mas isso precisa sempre ser explicado, porque é meio contra-intuitivo.

Essa concepção (democrática) de liberdade significa que só se alcança a liberdade por meio da política, da interação na polis (a comunidade política). Seu primeiro corolário é que ninguém pode ser livre sozinho. Ou seja, liberdade não é o mesmo que libertação, não é ficar livre da opressão do outro e sim se comprazer na convivência com ele por meio da política (um tipo de interação ao qual só se tem acesso porque não somos, ao contrário do que supôs Aristóteles, animais políticos). Em outras palavras: a minha liberdade começa não onde termina a do outro e sim onde começa a do outro.

No interior de qualquer experiência democrática, dos antigos e dos modernos ou contemporâneos, esse DNA está presente. Do contrário os diversos ensaios, sempre fugazes, de democracia não poderiam ser chamados com a mesma palavra.

Mas isso não significa que não haja diversos graus de liberalismo nas várias e diferentes experiências democráticas. Segundo o relatório do V-Dem 2021 (da Universidade de Gotemburgo), nas democracias liberais (hoje em número de apenas 32 regimes adotados por Estados-nações ao redor do mundo) essa substância liberal está mais presente do que nas democracias (apenas) eleitorais (que vigem em 60 países).

É óbvio que os graus de liberalismo político nos outros tipos de regimes são muito menores, quando não desprezíveis: nas autocracias eleitorais (que ainda predominam no mundo, em 62 regimes) eles são declinantes e nas autocracias fechadas (não-eleitorais) que ainda remanescem (em 24 países) essa substância liberal, se existir, é vestigial.

De tudo isso pode-se derivar que alguém pode ser um democrata-eleitoral e não ser um democrata-liberal, se não concorrer para fazer uma democracia eleitoral (ou um regime autocrático, eleitoral ou não) virar uma democracia liberal.

Ou seja, alguém pode ser um democrata-eleitoral e, ao mesmo tempo, ser até i-liberal (basta, para tanto, que seja um populista). Neste caso, o sujeito em questão é democrata? Sim, é um democrata-eleitoral. Mas não é um democrata-liberal. Em geral os democratas-eleitorais i-liberais usam a democracia (eleitoral) contra a democracia (liberal) – ou seja, impedem que o processo de democratização prossiga na direção de converter a democracia eleitoral em democracia liberal.

O neopopulismo que se declara “de esquerda” faz isso. Em maior ou menor medida aconteceu na Bolívia de Evo, no Equador de Correa, no Paraguai de Lugo, na Honduras de Zelaya, em El Salvador de Funes, na Argentina dos Kirchners, no Brasil de Lula e Dilma. E deixou de ser democrático na Venezuela de Maduro e na Nicarágua de Ortega (que viraram autocracias eleitorais ditas “de esquerda”).

Mas esse populismo não pode ser confundido com outro populismo, também i-liberal, dito de direita (e, na verdade, de extrema-direita): o populismo-autoritário (ou nacional-populismo) dos Estados Unidos de Trump, da Hungria de Orbán e da Polônia dos irmãos Kaczyński e Duda (mas pode também vir a acontecer na França de Le Pen, na Itália de Salvini, na Alemanha de Meuthen e Gauland etc.) para não falar da Rússia de Putin, que já virou o paradigma da nova forma de ditadura do século 21: a autocracia eleitoral, hoje o tipo de regime mais numeroso do mundo.

Democratas liberais são democratas radicais (no sentido literal do termo ‘radical’, que vai à raiz da concepção e da prática democráticas, não no sentido pejorativo de sectário, intolerante ou extremista). Quase no mesmo sentido que John Dewey (1937) atribuiu ao conceito no seu texto seminal: A democracia é radical. Como ele escreveu:

“Não há oposição na defesa de meios democráticos liberais combinados com fins que são socialmente radicais. Não apenas não existe contradição, mas nem a história nem a natureza humana dão motivos para se supor que fins socialmente radicais possam ser atingidos por outros meios que não os meios democráticos liberais”.

Mais do que isso, porém. Os fins da democracia – não apenas os seus meios – são também liberais. O que seria, entretanto, fins liberais?

Seria, simplesmente, de acordo com o conceito democrático-originário de liberdade, a democracia praticada como fruição da liberdade presente (que se materializa quando se interage na comunidade política, após a libertação do reino da necessidade, da servidão da casa ou da família e das exigências sobrevivenciais e da guerra). Em outras palavras, seria a democracia como fundação constante da polis para configurar um ambiente onde os seres humanos possam se reunir permanentemente, sem necessidade, para gerar uma nova entidade (ou uma nova “espécie social” que surge quando vivemos a convivência); ou, a democracia como criação de novos mundos sociais.

Criar novos mundos sociais é o que Dewey não poderia deixar de chamar de “fins socialmente radicais” (pois nada pode ser pensado que seja mais radical do que isso), mas que, então, se confunde com os fins democráticos liberais.

Os democratas-liberais são, portanto, democratas radicais. E vice-versa.

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