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As quatro maneiras de matar a democracia

Já foram feitos alguns manuais (para organizar a resistência) contra golpes de Estado (em termos clássicos, como o golpe militar e o autogolpe) – sobretudo pela luta dita não-violenta (1). Falta fazer ainda um manual contra processos de erosão da democracia. Este artigo pode ser a introdução desse futuro manual. Então veremos que um manual desse tipo seria a mesma coisa que um manual de multiplicação de agentes democráticos (2).

Existem quatro maneiras de matar (ou derruir) a democracia. Cabe esclarecer, de pronto, que a democracia não morre apenas quando um modelo de regime político (a democracia realmente existente hoje, a democracia representativa ou o Estado democrático de direito) é abolido. Ela também pode morrer – ainda que mais lentamente – quando o processo de democratização é enfreado. Cabe evocar aqui a metáfora da bicicleta (3) para entender que impedir a continuidade do processo de democratização é um modo de destruir a democracia.

Vamos então às quatro maneiras:

I – Invasão estrangeira (por uma força autocrática beligerante de ocupação)
II – Golpe militar ou policial-militar
III – Autogolpe
IV – Erosão democrática

Na invasão estrangeira impõe-se, pela força, um regime autocrático (foi assim, por exemplo, que terminou a democracia ateniense, após a invasão macedônia).

No golpe militar ou policial-militar e no autogolpe as instituições são destruídas ou delas se mantêm apenas a casca ou a ritualística, passando essas instituições então a funcionar de outro modo. Mantidas formalmente e evisceradas ou substituídas, as instituições deixam de exercer os freios e contrapesos que garantiam a continuidade do regime democrático. O regime democrático acaba. Para tanto, rasgam-se as leis (e modificam-se autoritariamente as Constituições).

Nos casos clássicos e extremos de golpe militar, os tanques ocupam as ruas, o parlamento e os tribunais são fechados e seus integrantes presos ou exilados, as oposições são criminalizadas e seus integrantes são presos, torturados, mortos ou banidos, a imprensa é controlada e as eleições são suspensas ou fraudadas. Esse tipo de ataque letal às democracias é bem mais raro hoje em dia, embora sempre possam ocorrer como pontos fora da curva (como vimos recentemente em Myanmar).

Não comentarei mais extensamente esses três primeiros tipos – a invasão estrangeira, o golpe militar e o autogolpe – porque eles se referem a maneiras de matar a democracia que já são bem conhecidas. Vou, portanto, a seguir, me dedicar à erosão democrática, aquilo que chamei de processo de envenenamento (que pode ser lento; como, por exemplo, para usar uma metáfora óbvia, por arsênico) (4).

Na erosão democrática, podem acontecer duas coisas:

1) As instituições são atacadas por movimentos golpistas (sempre precedidos pela retórica golpista de um líder e seus seguidores) e degeneradas progressivamente até perder sua capacidade de defesa da democracia; ou,

2) As instituições são mantidas e ocupadas, mantendo seu funcionamento formal, mas passam a obedecer à força política dominante (que conquista maioria em seu interior).

Antes de começar, é bom esclarecer que usarei aqui a classificação dos regimes políticos do V-Dem (da Universidade de Gotemburgo): democracia liberal, democracia eleitoral, autocracia eleitoral e autocracia fechada (não-eleitoral) (5).

Há, portanto, na atualidade, duas vias de erosão da democracia: a autocrático-eleitoral e a democrático-eleitoral. Vejamos as diferenças entre elas.

A EROSÃO AUTOCRÁTICO-ELEITORAL DA DEMOCRACIA

Neste caso, a erosão democrática não transforma o regime político em uma autocracia fechada ou não-eleitoral (uma ditadura tradicional), mas converte-o em uma autocracia eleitoral (como está acontecendo, à direita, na Hungria e na Polônia – mas pode também vir a acontecer na França de Le Pen, na Itália de Salvini, na Alemanha de Meuthen e Gauland, para não falar da Rússia de Putin, que já virou o paradigma da nova forma de ditadura do século 21: a autocracia eleitoral, hoje o tipo de regime mais numeroso do mundo).

Isso ocorre – nos dias que correm – quando uma força política populista-autoritária (ou nacional-populista), dita de direita, mas na verdade de extrema-direita, ocupa o centro de gravidade da política (em geral pela conquista eleitoral do governo e pela sua recondução ao governo por meios eleitorais: o famoso “segundo mandato”, que pode abrir a porta para um terceiro, um quarto etc.).

Essa via (seca ou rápida) de erosão da democracia, usa as eleições apenas como um meio instrumental para autocratizar os regimes democráticos.

A EROSÃO DEMOCRÁTICO-ELEITORAL DA DEMOCRACIA

Neste caso, as instituições são ocupadas e dirigidas para enfrear o processo de democratização, mantendo-se a democracia como democracia eleitoral e, assim, impedindo que ela chegue a ser uma democracia liberal (em maior ou menor medida isso aconteceu na Bolívia de Evo, no Equador de Correa, no Paraguai de Lugo, na Honduras de Zelaya, em El Salvador de Funes, na Argentina dos Kirchners, no Brasil de Lula e Dilma).

Pode ocorrer, entretanto, por “acidente de percurso” (com o abandono do “tratamento homeopático” por um choque alopático de severos efeitos colaterais), que a democracia eleitoral também acabe virando uma autocracia eleitoral (como já aconteceu, à esquerda, na Venezuela e na Nicarágua).

No longo prazo, esse enfreamento do processo de democratização pode alterar o DNA da democracia (que é liberal, no sentido democrático-originário do termo, posto que toma a liberdade como sentido da política) e pode esvair, da democracia eleitoral, tudo que nela ainda reste de conteúdo liberal.

Isso acontece – na atualidade – quando o neopopulismo, dito de esquerda, adota a estratégia de conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo, vencendo eleições sucessivamente.

Na verdade, essa via (úmida ou longa) de erosão da democracia, usa a democracia contra a democracia, quer dizer, usa a democracia eleitoral contra a democracia liberal.

A DUAS VIAS DE EROSÃO DA DEMOCRACIA SÃO POPULISTAS

Ambas as vias de erosão de democracia – que são populistas – podem ser trilhadas, pelo menos inicialmente, sem violar as leis e rasgar as Constituições. Segundo um estudo dos pesquisadores do V-Dem, cerca de 70% dos episódios de autocratização que ocorreram de meados dos anos 1990 a 2017 foram realizados desse modo (por erosão democrática) (6).

Mas as duas vias populistas contemporâneas (o populismo-autoritário e o neopopulismo) não podem ser trilhadas sem a violação das regras não escritas (7) e das normas em uso (8) que estão abaixo do arcabouço legal-institucional que sustenta as democracias. Ou seja, não podem se efetivar sem dilapidação do chamado capital social (ou a diminuição dos graus de distribuição, de conectividade e de interatividade da rede social ou, ainda, o aumento dos graus de separação, quer dizer, da ampliação do tamanho social do mundo) (9).

Esse processo subterrâneo de destruição da bases de confiança e cooperação ampliadas que permitem a democracia não pode, por sua vez, ter continuidade sem a prática da política como uma continuação da guerra por outros meios, ou seja, sem a degeneração da vida democrática pela instalação de uma dinâmica do “nós” contra “eles” (os legítimos representantes do “povo” versus as “elites” ou o “establishment“) que caracteriza qualquer populismo (tanto os considerados de direita ou extrema-direita, quanto os considerados de esquerda ou centro-esquerda).

As dificuldades dos populismos com a democracia é que – tomando a política como guerra (“sem derramamento de sangue”, como dizia Mao Tsé-Tung) – eles não aceitam a derrota. Mas a democracia não é propriamente sobre vencer e sim sobre aprender a perder. Quer dizer, não é para ganhar sempre. Claro que, subjetivamente, todos querem vencer sempre. Mas, objetivamente, a democracia só não se desconsolida se os atores assumirem aquele princípio que Felipe González chamou de aceitabilidade da derrota (10).

Notas e referências

(1) Cf. por exemplo os livros de Gene Sharp, da Albert Einstein Institution e o livro de Richard K. Taylor (1994), Training manual for nonviolent defense against the coup d’état. PDF disponível aqui: 001 Coup_Manual

(2) Cf. o que chamo de agentes democráticos: https://dagobah.com.br/sobre-o-nosso-deficit-de-democratas/ Agentes democráticos, nesse sentido (do artigo linkado acima), são os que se dedicam a: a) conectar democratas e multiplicar o número de agentes democráticos (nas organizações da sociedade e do Estado) investindo na aprendizagem da democracia; b) fermentar a formação de uma opinião pública democrática; c) desconstituir autocracia no dia-a-dia e ensaiar a democracia como modo-de-vida; e e) resistir ao autoritarismo e a qualquer populismo.

(3) Sobre a metáfora da bicicleta: https://dagobah.com.br/a-democracia-como-bicicleta/

(4) Publiquei, em fevereiro de 2019, um extenso artigo sobre isso em Dagobah: https://dagobah.com.br/sinais-de-envenenamento-da-democracia/

(5) Cf. Anna Lürmann, Marcus Tannenberg and Staffan I. Lindberg (2018), Regimes of the World: opening new avenues for the comparative study of political regimes. Sweden: V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, 2018. PDF disponível aqui: Regimes of the World (RoW)_ Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes É bom ver a atualização da classificação proposta no mais recente Democracy Report 2021, Autocratization turns viral. Sweden: V-Dem Institute, Department of Political Science, University of Gothenburg, 2021. PDF disponível aqui: V-DEM Democracy Report 2021_updated

(6) Anna Lührmann & Staffan I. Lindberg (2019), Uma terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo sobre isso?, Democratization, DOI: 10.1080 / 13510347.2019.1582029 – de onde a figura foi retirada.

(7) Sobre as regras não escritas confira o artigo citado na nota 4 (acima).

(8) Sobre as normas em uso refiro-me à distinção proposta por Elinor Ostrom entre regras formais e regras em uso. Cf. Ostron, Elinor (2003). Governing the Commons: the evolution of institutions for collective action. UK: Cambridge University Press, 2003.

(9) Sobre uma concepção contemporânea de capital social confira o capítulo “As defasagens do conceito de capital social do ponto de vista das redes” no meu artigo (2019) Emancipação da pobreza em uma sociedade em rede: https://dagobah.com.br/emancipacao-da-pobreza-em-uma-sociedade-em-rede-minha-contribuicao/

(10) Assumir a rotatividade ou a alternância em um sentido mais ampliado significa também, como assinalou Felipe González (2007), promover à categoria de princípio “a aceitabilidade da derrota como elemento essencial do funcionamento democrático”. Vale a pena ler o artigo “Aceptabilidade de la derrota”, de Felipe González, publicado pelo jornal El Pais (29/06/2007).

Se o impensável acontecer, mantenha a calma

A democracia liberal é radical (e vice-versa)