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A vulnerabilidade das democracias parasitadas por populismos de direita e de esquerda

As democracias parasitadas por populismos de direita e de esquerda são vulneráveis à ofensiva autocrática

Em termos gerais, qualquer regime que se deixa parasitar por um populismo (seja de direita ou de esquerda) não é mais uma democracia liberal. Em democracias liberais pode haver forças populistas de direita ou de esquerda, mas elas são metabolizadas para evitar que parasitem o regime. Em geral as democracias (apenas) eleitorais são mais vulneráveis a serem parasitadas por populismos.

Claro que tudo isso é de difícil caracterização porquanto forças populistas não parasitam apenas o governo e as demais instituições do Estado e sim também as organizações e redes informais da sociedade.

Se uma força populista (de direita ou de esquerda) cresce a ponto de mobilizar um contingente eleitoral capaz de eleger um seu representante é sinal de que ela não foi suficientemente metabolizada pela democracia. Isso coloca muitos problemas para a caracterização proposta acima.

Democracias liberais que estão sob risco de eleger populistas para chefiar seus governos ficam instáveis, podendo decair para democracias eleitorais.

Todavia, o que é ‘parasitar’ uma democracia? Como foi dito, não compreende apenas parasitar as instituições do Estado, mas também da sociedade. Não é a quantidade de eleitores em um parasita (populista) que determina isso. É o grau de mobilização de uma população politicamente ativa que se deixa conduzir por um populismo.

A questão dos EUA coloca um bom desafio teórico. Os EUA ainda são considerados (pelos indicadores do V-Dem 2022, por exemplo), uma democracia liberal. Sim, mas em processo de decaimento para uma democracia eleitoral. Segundo o relatório 2021 da The Economist Intelligence Unit, os Estados Unidos já são, há algum tempo, uma flawed democracy.

O fato dos EUA terem eleito Trump não é o principal indício ou sintoma de parasitose. Mas o fato de mais da metade do Partido Republicano ter aderido ao trumpismo e de boa parte da sociedade americana não querer mais viver em uma democracia, sim.

Todavia, o fato de outra parte, democrática, da sociedade americana ter reagido ao trumpismo, elegendo Biden, significa que o parasitismo do populismo-autoritário trumpista até agora não prevaleceu a ponto de mudar o tipo de regime político (de democracia liberal para democracia eleitoral). Usamos aqui a classificação Lürhrmann-Tannenberg-Lindberg (2018) que divide os regimes em quatro tipos básicos: democracia liberal, democracia eleitoral, autocracia eleitoral e autocracia fechada (ou não-eleitoral).

Por outro lado, a degeneração da política como guerra civil fria, sim, nos faz afirmar que a situação americana é instável. Se o trumpismo vencer as próximas eleições legislativas e Trump voltar ao governo em 2024, aí não tem jeito. Poderemos afirmar que a democracia liberal americana virou uma democracia (apenas) eleitoral, conquanto não seja certo afirmar que ela estará sob risco significativo de virar uma autocracia eleitoral no curto prazo. A sociedade americana ainda pode resistir por muito tempo, vivendo porém em uma democracia eleitoral parasitada.

Uma democracia eleitoral parasitada por um populismo será uma democracia de baixa intensidade. Os EUA, deixando de ser algo parecido com uma Alemanha ou com um Reino Unido, ficarão mais parecidos com um México ou um Brasil.

São numerosas as análises dos efeitos do populismo-autoritário (dito de direita ou de extrema-direita) para consumar processos de autocratização. Há poucos estudos, entretanto, sobre os efeitos deletérios para a democracia do neopopulismo (dito de esquerda). Na América Latina forças políticas ditas de esquerda parasitando regimes democráticos eleitorais são muito frequentes.

O histórico da ascensão desse tipo de populismo é bem eloquente:

Nicarágua: Daniel Ortega 1979-1984 e novamente Ortega 2007 aos dias atuais. Com o novo orteguismo a Nicarágua passou a ser uma autocracia-eleitoral neopopulista.

Venezuela: Hugo Chávez 1999-2013. Maduro 2013 aos dias atuais. Com o novo chavismo madurista, a Venezuela passou a ser uma autocracia-eleitoral neopopulista.

Brasil: Lula 2003-2010. Dilma Rousseff 2011-2016 (impeachment).

Bolívia: Evo Morales 2006-2019 (golpe parlamentar). Luis Arce 2020 aos dias atuais.

Honduras: Manuel Zelaya 2006-2009 (prisão). Xiomara Zelaya 2022 aos dias atuais.

Equador: Rafael Correa 2007-2017. Lenín Moreno 2017-2021 (tendo rompido com Correa em meio ao mandato).

Paraguai: Fernando Lugo 2008-2012 (impeachment).

El Salvador: Maurício Funes 2009-2014. Salvador Cerén 2014-2019. Nayib Bukele 2019 aos dias atuais (inicialmente neopopulista de esquerda, Bukele virou um populista de direita).

Argentina: Nestor Kirchner 2003-2007 (mas era um populista à moda antiga, não tipicamente um neopopulista). Cristina Kirchner 2007-2015. Alberto Fernández 2019 aos dias que correm.

México: López Obrador 2018 aos dias atuais.

Perú: Pedro Castillo 2021 aos nossos dias.

O neopopulismo dito de esquerda, em geral, não transforma democracias eleitorais em autocracias eleitorais. Ainda que isso tenha ocorrido na Venezuela e na Nicarágua, que viraram autocracias eleitorais (ditaduras com eleições), o neopopulismo tem o efeito de paralisar ou enfrear o processo de democratização, impedindo que democracias eleitorais ascendam à condição de democracias liberais. Mas, pelo menos no curto prazo, democracias eleitorais parasitadas por neopopulismos ditos de esquerda continuam sendo democracias eleitorais (de baixa intensidade).

A situação no Brasil é particularíssima, pois a democracia eleitoral brasileira é parasitada simultaneamente, a partir de 2018, por dois populismos: o populismo-autoritário bolsonarista (dito de extrema-direita) e o neopopulismo lulopetista (dito de esquerda).

O diagrama abaixo dá uma ideia do campo i-liberal (hachurado em cinza):

MAS O MUNDO JÁ NÃO É MAIS O MESMO

Há todavia, uma mudança gravíssima no plano global que pode alterar sensivelmente o quadro político interno de regimes parasitados por populismos.

É preciso analisar com atenção o que disse Sergey Lavrov, chanceler “soviético”, em 18 de março de 2022:

“Há jogadores que nunca concordarão com a existência de uma ‘aldeia global’ sob a liderança de um ‘xerife’ da América – são China, Índia, Brasil, México. Tio Sam vai dizer para eles fazerem isso… A Europa praticamente parou de tentar defender sua independência diante dos EUA”.

Lavrov é do inner circle de Putin. O que ele está dizendo, em outras palavras, é que a nova guerra fria que a ditadura russa quer instalar no mundo, pervadirá cada país, sobretudo as autocracias e as democracias parasitadas por forças populistas (de direita, como a Índia e a Hungria; ou de esquerda, como Brasil e México).

Essa nova guerra não é mais esquerda x direita, socialismo x capitalismo. Agora é autocracia x democracia. Uma troca do populista de extrema-direita Bolsonaro pelo neopopulista de esquerda Lula não alterará esse quadro sombrio.

Isso muda radicalmente o ambiente político, não só no plano internacional, mas dentro de cada país que for compelido a se alinhar a um dos dois blocos: o bloco democrático (EUA, União Europeia, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, Japão e Coreia do Sul, entre outros) x o bloco autocrático (Rússia, China, ditaduras asiáticas, africanas e latino-americanas).

Tivemos um interregno relativamente pacífico depois da queda do muro de Berlim e da derrocada da União Soviética. Isso acabou. Agora o mundo entra em ‘estado de guerra’. As consequências serão trágicas para a democracia. E a nova onda vai nos engolfar por muito tempo. Não haverá paz (como ausência de qualquer tipo de guerra, inclusive de guerra fria) minimamente duradoura capaz de nos levar ao período anterior (1991-2021).

Democracias eleitorais parasitadas por populismos (ditos de direita ou de esquerda), dependendo da evolução da conjuntura internacional, provavelmente ficarão tentadas a se alinhar ao bloco autocrático. Ou, no mínimo, serão os regimes mais vulneráveis à ofensiva global desse bloco.

Por que? A resposta é quase óbvia. Os populismos contemporâneos não são como os velhos populismos, caracterizados pela demagogia, pelo assistencialismo, pelo clientelismo e pela irresponsabilidade fiscal. Os populismos contemporâneos (tanto o populismo-autoritário ou nacional-populismo, quanto o neopopulismo) são alternativas guerreiras, que degeneram a democracia instalando uma política adversarial “nós” contra “eles”. Nós, o povo – o verdadeiro povo – contra eles, as elites ou o establishment. Verdadeiro povo (the true people) são os que seguem o líder (ou o movimento) populista. Os que não seguem são, pelo menos potencialmente, inimigos do povo.

Há vários estudos, inclusive empíricos, mostrando os efeitos nefastos para a democracia dos populismos contemporâneos. O principal deles, talvez, é o de Jordan Kyle e Yascha Mounk (2018): O estrago que o populismo faz na democracia: uma avaliação empírica. Outro estudo importante é o de Jordan Kyle e Limor Gultchin (2018), intitulado Populistas no poder ao redor do mundo, onde as autoras fazem uma distinção entre populismo cultural, socioeconômico e anti-establishment. De qualquer modo, fica claro, nesses e em outros estudos, que um traço comum a todos os populismos é o fato de eles serem i-liberais e majoritaristas (em alguns casos hegemonistas).

Ora, isso casa perfeitamente com o movimento de Vladimir Putin contra as democracias liberais. Como escreveu o conspiracionista Alexandr Dugin, no Facebook, em 27/02/2022:

“Esta não é uma guerra com a Ucrânia. É um confronto com o globalismo como um fenômeno planetário integral. É um confronto em todos os níveis – geopolítico e ideológico. A Rússia rejeita tudo no globalismo – unipolaridade, Atlantismo, por um lado, e liberalismo, anti-tradição, tecnocracia, Grande Reinicialização em uma palavra, por outro. É claro que todos os líderes europeus fazem parte da elite liberal atlanticista”.

Dugin não fala por Putin. Mas vibra na mesma vibe do grande movimento que Putin iniciou. Há objetivamente uma sintonia entre esse movimento i-liberal (talvez fosse até melhor chamá-lo de contra-liberal) e os populismos de direita e de esquerda. O neopopulismo de esquerda, em particular, tem uma tendência a se alinhar com todas as tendências, remanescentes da guerra fria dos anos 1960-1990, contra o imperalismo norte-americano e contra o que andam chamando de “ditadura liberal” dos países europeus (não por acaso os que ocupam as melhores posições em qualquer ranking mundial de democracia).

A aliança i-liberal das autocracias contra a Ucrânia (em apoio – ou não-condenação explícita, o que dá no mesmo – à guerra de Putin) é um sinal importante de que o campo autocrático está se expandindo:

O mundo coberto por uma grande mancha i-liberal é um mundo onde a democracia terá cada vez menos lugar.

Um novo muro de Berlim está sendo construído. Para os democratas é hora de ligar o alerta vermelho.

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