A democracia é, por definição, o contrário da autocracia. Entretanto, democracia e autocracia não são dois lados. A democracia não tem lado. A democracia é questão de modo, não questão de lado. Isso chega a ser trivial na medida em que democracia é política (propriamente dita) e política é modo de regulação de conflitos, não lado onde você se situa para combater outro lado. A democracia não é lutar e sim evitar a luta.
Ser democrata já é, geneticamente, ser parte de um processo de desconstituição de autocracia. Se fosse se aquartelar em um lado, esse “lado” seria um “lado” que só se constitui enquanto o outro lado se desconstitui e que, portanto, não tem subsistência própria – o que desconstitui, por sua vez, o próprio conceito de lado.
Ou seja, ser democrata não é se colocar de um lado contra o outro lado. Não existe lado porque não existe a possibilidade de ser democrata na ausência de autocracia. Enquanto não estiver desconstituindo autocracia ninguém está criando, gerando ou “produzindo” democracia.
Não pode haver democracia sem autocracia. É por isso que, desde a sua origem, a democracia é liberal, o que significa que ela tem uma visão negativa do poder (político, ou melhor, antipolítico). Um Pirarrã (do rio Maici, afluente do Madeira, antes do encontro com povos ditos “civilizados”), não poderia ser democrata. Não faria sentido, porque em sociedades de caçadores-coletores não há autocracia. Isso vale para todas as sociedades pré-patriarcais, sejam grupos de caçadores-coletores, tribos paleolíticas ou aldeias agrícolas neolíticas.
Assim, ser democrata não é aderir a uma ideologia ou visão de mundo, não é defender um programa para implantar um modelo de ordem social (o modelo daquele lado contra o modelo do outro lado). Não há um modelo de ordem (de um lado) contra outro modelo de ordem (do outro lado). Se houvesse um modelo de “ordem” democrática ela seria uma “não-ordem”. Porque a democracia é simplesmente a política que não tem como sentido a ordem – qualquer ordem, ainda que fosse a melhor ordem, a ordem mais justa do universo – e sim a liberdade.
De sorte que a definição democrática de liberdade poderia ser resumida assim: eu não tenho nenhum modelo de ordem para colocar no lugar do seu. Por isso não estou de um lado e, você, de outro. Eis aqui o fundamento da visão liberal. Chamamos de visão liberal à visão democrática originária.
No entanto é preciso sempre acrescentar que a concepção democrática de liberdade não tem nada a ver com fazer o que se quiser sem ser coibido pelo outro. Não é ser livre do outro. É ser livre com o outro. Ninguém pode ser livre sozinho. A sua liberdade não termina onde começa a minha. Pelo contrário, ela começa onde começa a minha.
A democracia surgiu para inventar a política como modo de experimentar a liberdade (essa liberdade descrita no parágrafo imediatamente acima). Não foi para para lutar, lutar, lutar contra algum lado para conquistar a liberdade em um futuro (utópico). Foi para viver a liberdade no presente (tópico), o que só é possível sem luta contra algum lado.
Mas para desconstituir autocracia não é necessário resistir à ela? Sim, mas a forma democrática de resistir é não produzir mais inimizade política, quer dizer, não fazer guerra contra algum lado (inimigo). Pelo contrário, é converter inimizade política em amizade política. Se fazemos guerra contra uma autocracia em nome da democracia, produzimos mais autocracia e não mais democracia. Porque a autocracia é a guerra (um modo guerreiro de regulação de conflitos que pressupõe construir inimigos, quer dizer, lados).
A democracia só prevaleceu na Alemanha como um todo quando o muro que constituia os lados foi derrubado, não quando o muro foi reforçado ou quando um lado exterminou o outro lado.
Somente quando entendermos isso, entenderemos a democracia. É não-simples assim.