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A lógica da abundância

Reciclando um texto publicado na Escola-de-Redes há mais de dez anos

Antes de começar, um esclarecimento necessário. O que hoje se chama, equivocadamente, no Brasil e em outros países, de redes sociais são, na verdade, mídias sociais. Redes sociais são pessoas interagindo (enquanto estão interagindo) por qualquer meio (mídia): pode ser por conversas presenciais, sinais de fumaça, tambores, por e-mail, por telefone, pelo X ou pelo Facebook ou Instagram, até pelo WhatsApp ou Telegram (que nem são propriamente mídias sociais e sim programas de mensagens). Ou seja, redes sociais não são tecnologias, dispositivos, ferramentas, sites, algorítmos. Mídias sociais e programas de mensagens podem ser usados como ferramentas de netweaving, quer dizer, de articulação e animação de redes de pessoas, que chamamos – aqui, sim, propriamente – de redes sociais.

Redes sociais não são uma nova forma de organização e sim padrões de organização. Convencionou-se chamar de redes sociais as redes mais distribuídas do que centralizadas, tomando como base o famoso diagrama de Paul Baran (1964), publicado no paper On distributed communications, das topologias de rede:

Uma das coisas mais bacanas das redes sociais distribuídas (quer dizer, mais distribuídas do que centralizadas) é a chamada “lógica da abundância”. Dizendo de outra maneira, de uma perspectiva menos estrutural e mais processual: se você não produz artificialmente escassez quando se põe a regular qualquer conflito, produz rede (distribuída); do contrário, produz hierarquia (centralização).

Os problemas que se estabelecem a partir de divergências de opinião são – em grande parte – introduzidos artificialmente pelo modo-de-regulação. Por exemplo, queremos escolher 5 pessoas para uma função qualquer, mas 10 pessoas estão postulando. Problema? Que nada! Basta escolher as 10. Quem disse que teriam que ser apenas 5? Essa determinação está, por acaso, nos “Dez Mandamentos”? Isso só será um problema se nos tornarmos escravos dos estatutos e regimentos: sim, em algum lugar foi definido que teriam que ser 5 pessoas, mas e daí? Qual o problema de mudar essa definição?

Ah! Mas é muita gente, não cabe na sala, vai dificultar o processo de decisão… Todas essas são, é óbvio, desculpas esfarrapadas para produzir artificialmente escassez. Não cabe na sala? Arrumamos uma sala maior ou fazemos um rodízio de quem entra e quem fica fora de cada vez. Vai dificultar o processo de decisão? Criamos duas instâncias e redefinimos as responsabilidades pelas funções.

O fato é que somente em estruturas hierárquicas (quer dizer, mais centralizadas do que distribuídas) essas coisas são realmente problemas. Porque nessas estruturas o que está em jogo não é a funcionalidade do organismo coletivo e sim o poder de mandar nos outros, quer dizer, a capacidade de exigir obediência ou de comandar e controlar os semelhantes.

Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se estabelece pode ser pluriárquica. Uma pessoa propõe uma coisa. Ótimo. Aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. E os que não concordarem? Ora, bolas, os que não concordarem não devem aderir. E sempre podem propor outra coisa. Os que concordarem com essa outra coisa aderirão a ela. E assim por diante.

O papel dos administradores das ferramentas de netweaving usadas em uma rede não é o de chefes, nem mesmo o de líderes. Eles devem ser netweavers, não coordenadores. Nem sempre um netweaver é a pessoa mais importante. Tem os hubs. Tem os inovadores. Tem os catalisadaores de processos de aprendizagem. Tem os guardiães do kernel. Todos esses papéis são tão ou mais importantes em uma rede do que o de netweaver.

Muitas vezes os administradores de sites e grupos em uma plataforma interativa não cumprem nem mesmo o papel de netweavers. São apenas pessoas que tomaram a iniciativa de abrir um site, formar um grupo, colocar um tema em discussão em um fórum ou marcar um evento. Quem deve aderir a essas iniciativas? Quem quiser.

E quem não quiser? Quem achar que não é bem assim, que poderia ser melhor “um pouquinho”, que o desenho não está adequado, que a proposta está equivocada etc., pode sempre dizer isso para as pessoas que tomaram a iniciativa.

E se não adiantar, se essas pessoas insistirem em manter o que propuseram? Ora, nesse caso, também não deveria haver o menor problema. Quem não está totalmente satisfeito ou confortável com o que foi proposto, pode propor outra coisa.

Em uma rede mais distribuída do que centralizada nunca se admite a votação como método de regular majoritariamente qualquer dilema da ação coletiva. E quando há discordâncias de opiniões, como fazemos? Ora, não fazemos nada! Por que deveríamos fazer alguma coisa? Viva a diversidade!

Se você estabelece alguma coisa a partir da votação, cai numa armadilha centralizadora ou hierarquizante. Produz “de graça” escassez onde não havia.

Vamos imaginar, por hipótese, que exista alguém que não esteja muito contente com a maneira como o administrador de algum grupo numa plataforma interativa está conduzindo a coisa. O que essa pessoa pode fazer, além de externar sua opinião e colocá-la em debate?

Ora, no limite, essa pessoa descontente pode se conectar a uma nova rede. Ela tem toda a liberdade – e legitimidade – para fazê-lo. E quem vai aderir? Quem quiser.

A rigor, cada nodo de uma rede já é uma outra-e-mesma rede.

Uma rede não é uma organização se expandindo e sim uma ideia (ou melhor, um comportamento) se disseminando. Como a vida – na bela imagem de Lynn Margulis – ela não se apossa do globo pelo combate e sim pela formação de redes. No plural.

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