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A terra plana e o mundo dos autocratas assombrado pelos demônios

Passou da hora de acabar com esse papo de “viés ideológico”: o que está surgindo agora, nesta terceira onda de autocratização que nos assola, é um movimento contra a ciência, contra o livre pensamento, contra a criatividade humana

Existe uma farta literatura científica contemporânea sobre a democracia. Não que a democracia (que é política) seja uma ciência e sim que o estudo da democracia pode se basear em critérios e procedimentos científicos. Para se familiarizar com o tema dos avanços e recuos do processo de democratização, podemos acompanhar as controvérsias mais recentes, publicadas nos periódicos especializados como o Journal of Democracy e outras revistas semelhantes. E podemos ler muitos autores para ficar a par do assunto. Por exemplo, Francis Fukuyama, Larry Diamond, Donald L. Horowitz, Marc F. Plattner, Ronald F. Inglehart, Christian Welzel, Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk, Takis S. Pappas, Paul Howe, William A. Galston, Mark Lilla, Daniel Ziblatt e Steven Levitsky, Timothy Snyder, Manuel Castells entre tantos e tantos outros.

Mas não existe nada semelhante sobre a autocracia. Nada que tente decifrar, de um ponto de vista científico, o populismo-autoritário ou o nacionalismo de extrema-direita que floresce neste final da segunda década do século 21. Só temos opiniões reacionárias e narrativas ideológicas retrógradas de gente como Steve Bannon, Olavo de Carvalho e outros malucos e tarados intelectuais. Em geral esse pessoal expele formulações anti-científicas, de péssima qualidade, elucubrações filosóficas retrogradacionistas, que querem voltar ao passado (se possível à batalha de Salamina, mal-lida) para recuperar as matrizes de uma inexistente civilização ocidental-cristã.

Vejamos um parágrafo do discurso de posse de Ernesto Araújo, chanceler olavista de Bolsonaro, proferido em 2 de janeiro de 2019:

Hoje escutamos que a marcha do globalismo é irreversível, mas não é irreversível. Nós vamos lutar para reverter o globalismo e empurrá-lo de volta ao seu ponto de partida. Nós queremos levar a toda parte o grito sagrado da liberdade, euletheria. Esse foi o primeiro grito de guerra do Ocidente, em seu nascimento, na Batalha de Salamina: “libertai a Pátria!”.

E agora outro exemplo, mais recente, do filósofo Olavo de Carvalho (o mestre de Araújo). Ele acha que aceitar teorias científicas, como as de Albert Einstein, depende de crença. E que as hipóteses da terra plana devem ser aceitas em princípio e examinadas, a despeito de já terem sido refutadas pela ciência.

Olavo de Carvalho – e outros malucos conspiracionistas – acham que até a matemática é uma espécie de ideologia.

Não é a toa que os anticientíficos se proclamem filósofos. Ao contrário da ciência, a filosofia – no sentido original, pitagórico-platônico, do termo – não precisa da validação dos pares, não precisa ser conhecimento objetivo, não precisa que suas conclusões sejam alcançáveis por investigadores independentes, não precisa se submeter aos critérios epistemológicos da testabilidade ou da falsificabilidade. Basta que estas conclusões sejam inferidas, como consequências lógicas, de seus pressupostos e supostos, tomados como verdades evidentes por si mesmas, com algum grau de completude ou coerência interna. Ela cria sistemas de pensamento auto-referenciados e que se auto-validam. Não se distingue, nesse sentido, do que chamamos de ideologia. Por isso que, para ela, tudo vira questão de ideologia.

Mas a questão aqui não é de “viés ideológico” (como gostam de falar Bolsonaro e os bolsonaristas) e sim de obscurantismo mesmo.

Ann Druyan e Carl Sagan, em 1995, lançaram o livro O mundo assombrado pelos demônios, cujo subtítulo era A ciência vista como uma vela no escuro. Pois é… Os autocratas, anti-científicos, vivem – e querem que todos nós vivamos – num mundo de escuridão. Querem proibir as velas ou impedir que elas sejam acesas. Porque querem nos assombrar, a todos, com seus demônios (que, como vampiros, não sobrevivem sob a luz solar): suas hipóteses míticas, suas urdiduras sacerdotais, seus padrões de organização hierárquicos e seus modos de regulação de conflitos baseados na guerra permanente.

Instalar a escuridão ao meio dia (para lembrar o título da magnífica obra de Arthur Koestler (1940), Darkness at noon, em que ele desvenda padrões autocráticos presentes no totalitarismo  marxista-leninista) é mais grave, bem mais grave, do que a maioria dos analistas políticos estão supondo. Vejamos por quê.

Não importa que as conclusões de seu esforço narrativo se adequem aos fatos. Não importa que suas predições não se confirmem (ou sejam falsificadas pela experiência). Nada disso invalida seus princípios porque o objetivo de suas construções intelectuais não é, como na ciência, observar-investigar-explicar fenômenos e sim mudar comportamentos a partir de ideias-implante míticas-sacerdotais-hierárquicas-autocráticas. Seu objetivo – ou sua consequência objetiva – é nos mergulhar num mundo assombrado pelos demônios.

Vamos pegar o caso da terra plana. Trata-se, evidentemente, de uma ideia-implante. Parece duvidoso que pessoas inteligentes, com curso superior, acreditem realmente na hipótese. A questão é o que ela carrega, vamos dizer assim, o código embutido no construct. Que código embutido seria este? Examinemos algumas possibilidades.

Pode ser o seguinte: dizer (sem dizer, o que é sempre mais eficaz como propaganda) que a liberdade tem limites: a expansão da esfera da liberdade é limitada por uma fronteira a partir da qual só existe o abismo; ou uma barreira de gelo intransponível a partir da qual só existe o… abismo.

É impossível não lembrar de Nicolau de Cusa e da sua teoria cosmológica (e cosmogônica) do amor (precursora – em termos de matrizes de pensamento – da teoria newtoniana da gravitação): os corpos são redondos, esféricos, porque alguma coisa como o amor faz com que seus componentes se juntem impelidos por uma força centrípeta; ou, como partículas num campo radial de forças, se encontrem produzindo como resultado corpos esféricos. A guerra – estado permanente do mundo na concepção da tradição autocrática – é, de certo modo, o contrário desse amor universal que tende a aproximar (e arredondar) todos os corpos.

Uma terra plana é um plano para a observação (vigilância) de uma potência ex machina, que elimina uma das dimensões do espaço realmente perceptível pelos seres humanos: o mundo vira bi-dimensional, um Plano de Argand-Gauss, cartesiano, perfeitamente esquadrinhável por quem se situa acima da humanidade: tanto o filósofo (que pertence a outra raça de seres, como queria Platão), quanto o deus sobrenatural, um demiurgo capaz de intervir na história e na política, determinando o desfecho dos negócios humanos. Trata-se aqui de um deus filosófico (no original sentido pitagórico-platônico do termo), o artesão divino ou o princípio organizador do universo que, sem criar de fato a realidade, modela e organiza – planificando (atenção para o duplo sentido: tornar plano e ter um plano concebido e executado por uma instância superior) – a matéria caótica preexistente através da imitação de modelos eternos e perfeitos.

Não se sabe se as pessoas que divulgam essas ideias-implante têm plena consciência do que estão fazendo. Talvez – para usar uma metáfora contemporânea – os “desenvolvedores da Matrix” tenham alguma consciência disso tudo. Mas a consciência dos replicantes, neste como em outros casos, é irrelevante para explicar comportamentos coletivos. A interação entre iguais clusteriza e fecha os clusters. Assim como os fiéis de uma religião fundamentalista, eles vão confirmando e reconfirmando suas convicções por múltiplos laços de retroalimentação de reforço. A dimensão empírica, a exploração além dos limites das “impressões sensíveis”, é abolida como critério de investigação e validação. O que vale é a corroboração dos pares, em looping. Pronto: está formada a seita dos que professam a mesma fé – e isso basta! Porque para isso existem tais narrativas, não para descobrir ou inventar coisas novas.

A terra plana leva à sociedade fechada, não à sociedade aberta de Karl Popper (1945). Tudo que tem um fim delimitado, uma fronteira, fecha; tudo que interpõe um muro para interromper fluxos, fecha. Funciona como aquelas crenças tribais, míticas, do patriarcalismo dório que ainda revivesciam em Creta e em Esparta e que eram esposadas pelos que odiavam a democracia nascente em Atenas (e que, no caso dos honestíssimos autocratas espartanos, os levaram a apoiar três golpes sangrentos contra o regime de Clístenes, Efialtes e Péricles: em 411, 404 e 401 a.C.).

Por último, a imagem da terra plana se sintoniza com o antiglobalismo. Chega a ser engraçado de tão óbvio: se o globo é esférico… vamos planificá-lo (novamente num duplo sentido).

Querendo ou não seus sectários fiéis, a hipótese delirante da terra plana é funcional para a cruzada de fazer o mundo retrogradar e mergulhar em uma das dark ages que nos assombraram em algum lugar do passado.

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