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A tragédia do pensamento conservador

Em seu blog de hoje Reinaldo Azevedo faz – em dois posts – uma análise das manifestações de ontem (31/07). Quanto ao primeiro post, tudo bem: ele está certo! Derrotados já são os que perderam o governo (Dilma, Lula e o PT). Agora, portanto, se trata mais de comemorar do que de protestar. Como ele diz,

que os movimentos de rua convoquem a população para comemorar o impeachment, aí sim! Digamos que o próximo passo sensato, agora, é a festa, que antecede outras lutas árduas.

Mas quanto ao segundo post, não! Reinaldo acha que movimentos de rua só se justificam diante de alguma anormalidade no funcionamento democrático. Leiam um parágrafo:

Creio eu que os movimentos de rua que estão na raiz do impeachment de Dilma precisam entender que o espaço do confronto de ideias e leituras sobre o Brasil está mais nas instituições — sim, senhores, o Congresso, por exemplo — do que nas ruas. As batalhas políticas têm fases específicas. E cada uma delas pede a arma adequada. Só as esquerdas doidivanas e os movimentos fascistoides contam manter seus soldados berrando nas praças em tempos de paz. A razão é simples: a eles só a guerra interessa. Os indivíduos têm mais o que fazer. Felizmente!

Bem… há vários problemas aqui. Em primeiro lugar, não há um (único) funcionamento democrático. A democracia é um processo de democratização que continua, não fica congelado numa fórmula (do contrário ainda estaríamos no século 17, quando os modernos reinventaram a democracia). A democracia não tem uma fórmula universal e eterna. E nem um porto, um ponto de chegada, uma utopia a ser alcançada. É uma caminhada, ou melhor, um modo de caminhar. Há muito a ser democratizado. E o que as grandes manifestações sociais do século 21 estão pedindo, no Brasil e em vários países, tem como sentido geral a continuidade da democratização da democracia. Foi assim com o 15M de 2011 espanhol (“Nossos sonhos não cabem em vossas urnas”), foi assim, em parte, com o 19S de 2011 em Nova York (O Occupy Wall Street). E foi assim com 17-20J de 2013 no Brasil. Em todos esses movimentos a mensagem principal era clara: “Vocês não nos representam”. E esse ‘vocês’ não era um ou outro partido determinado, esse ou aquele dirigente governamental e sim o próprio sistema representativo que está se esgotando no plano global.

Sim, o representacionismo dos modernos está em crise em todos os países e não querer ver isso para conservar a democracia que temos, é um exercício de cegueira voluntária. Ainda que precisemos do sistema representativo para reformá-lo (já que não é possível tomar um atalho autocrático para uma sociedade democrática), ainda que a democracia que temos seja condição para alcançar as democracias que queremos, o sistema representativo, tal como se organiza e funciona, não pode – como quer Reinaldo – ser salvo e nem pode ser protegido das mudanças. Os conservadores são conservadores porque querem nos proteger das experiências que podem mudar o que eles querem manter. Mas a democracia é, fundamentalmente, um processo de mudança, não de manutenção.

Em segundo lugar, a vibe das manifestações de novo tipo (mais interativas do que adesivas ou participativas) que assistimos nas duas primeiras décadas deste século, nunca foi de guerra. Não foram batalhas travadas nas ruas. Não havia soldados gritando nas praças. A sociedade contemporânea, a sociedade-em-rede, não cabe mais no Estado-mainframe (no modelo europeu setecentista de Estado-nação, este sim um fruto da guerra, da paz de Westfalia). Mas a sociedade não faz guerras e todas as suas manifestações (quando não são arrebanhamentos promovidos por partidos estatistas) são celebrações. Todos os grandes protestos no Brasil, os de junho de 2013 (antes da entrada dos Black Blocs, instrumentalizados pela esquerda para atemorizar as pessoas pacíficas e afastá-las das ruas) e os de 15 de março, 12 de abril, 16 de agosto de 2015 e de 13 de março de 2016, foram festas. Quem compareceu a qualquer um deles pode atestar que o clima jamais foi adversarial. Não foram formas táticas de luta pensadas de acordo com uma estratégia centralizada. Não reuniram contingentes de combatentes, mobilizados por alguma organização hierárquica, para o enfrentamento com inimigos.

Em terceiro lugar, não é papel das manifestações (sociais) transferir energia para as instituições (estatais). O fato do debate democrático ocorrer dentro das instituições da democracia representativa, em Estados democráticos de direito, não significa que ele não possa ocorrer também de forma autônoma em outros lugares, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão: nas famílias, nas vizinhanças, nas escolas e universidades, nas organizações da sociedade civil e nos locais de trabalho, nas ruas e nas praças. Assim, a ideia de que “o espaço do confronto de ideias e leituras sobre o Brasil está mais nas instituições”, como escreve Reinaldo, transforma a sociedade em dominium do Estado, retirando-lhe a autonomia e a iniciativa de reformar (e democratizar) as instituições (que permanecem, em grande parte, com estruturas e dinâmicas hierárquicas e autocráticas: basta ver o funcionamento dos tribunais, ainda chamados de cortes). Ora, o Estado não pode reformar o Estado. Se a sociedade não fizer isso – mesmo em momentos considerados de “normalidade democrática” (um conceito pedestre, convenhamos) – quem o fará?

Reinaldo quer conservar uma forma de democracia. Acha que a fórmula já foi descoberta pelos modernos e, doravante, trata-se apenas de mantê-la pelos milênios vindouros. Rigorosamente falando, esse juízo é contra a democracia, que é – geneticamente falando, posto que a primeira democracia, dos atenienses, foi inventada para descontinuar a tirania dos psistrátidas e a segunda, dos modernos, foi reinventada para desconstruir a monarquia absolutista de Carlos I, na Inglaterra – um processo de desconstituição de autocracia e não uma forma de administração política do Estado (embora influencie as formas de governo, democratizando-as, sabendo os democratas que – ao fim e ao cabo – todo governo é oligarca) ou um modelo de sociedade ideal (tipo uma utopia a ser alcançada no futuro, quando estivermos preparados).

Não! Não há um modelo universal, uma fórmula que possa ser considerada definitiva (como, talvez, em algum momento, Hegel imaginou ser a monarquia constitucional, atribuindo-lhe o status de construção política perfeita e eterna). Nem Roma (o Estado) é a materialização do espírito divino, como acreditavam os autocratas do Império. As instituições são coagulações de fluxos interativos da convivência social (e sempre são armadilhas de fluxos, cabendo à democracia sair das armadilhas, tornando-as transitórias, substituindo-as continuamente por outras instituições mais horizontais e mais interativas: é a isso que se chama propriamente de democracia ou de processo de democratização).

Eis a tragédia do pensamento conservador. Na sua essência, ainda que aceite uma forma de democracia (no caso, a democracia dos modernos), seu acento principal está no Estado de direito e não na sociedade democrática. No limite, quando tenta segurar ou enquadrar o futuro antecipado pelos movimentos da sociedade (quer dizer, o presente) em fórmulas pretéritas, revela-se, desgraçadamente, um pensamento antidemocrático.

P.S. Por que tragédia? A tragédia é a seguinte: o conservadorismo, ao querer defender a democracia que temos (com o que todos os democratas concordamos), congela-a a ponto de obstruir o caminho para as democracias que queremos (por assim dizer) e, fazendo isso, obstrui o processo de democratização (que define a própria democracia). Uma intervenção que anula o seu propósito é trágica porque seu desfecho é trágico. É trágico um pensamento que se volta contra o que quer defender.

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