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A volta do populismo de esquerda no Brasil

Quando dizemos que há um déficit de democratas no Brasil, as pessoas não entendem. “Como – elas perguntam – se todas as pesquisas de opinião mostram que a maioria dos consultados prefere a democracia a outros regimes?”

Pois é. Não é disso que estamos falando. Pessoas que vivem em democracias dificilmente preferirão viver em autocracias. Mas essa preferência formal pela democracia não basta para fazer de uma pessoa um democrata, quer dizer, um agente fermentador da formação de uma opinião pública democrática. Sim, os democratas são um fermento. Fermento não é massa. Os democratas não precisam arrebanhar maiorias: o importante é que consigam ensejar a emersão de uma opinião pública democrática.

Esses agentes jamais foram maioria em qualquer lugar do mundo ou época da história. Não são os que apenas concordam com a democracia. Não são os que leram mais livros teóricos sobre a democracia. Não são os que fizeram cursos de graduação ou pós-graduação em ciência política. Quem seriam então?

Agentes democráticos são os que conseguem reconhecer padrões autocráticos, sobretudo quando eles ainda não estão visíveis claramente. E os que desvelam esses padrões, tornando-os visíveis para outras pessoas, assim contribuindo para expandir a aprendizagem permanente da democracia (sim, aprender democracia é desaprender autocracia) e para multiplicar o número de democratas até alcançar um número crítico necessário para cumprir seu papel de agentes fermentadores de uma opinião pública democrática.

A falta de formação democrática dos nossos analistas políticos

Vamos dar um exemplo prático. A falta de analistas políticos capazes de perceber padrões autocráticos embutidos nos populismos foi flagrante agora (novembro de 2020) no Brasil.

Quantas pessoas perceberam e denunciaram que, por trás da suposta renovação e moderação representada pela candidatura Boulos à prefeitura de São Paulo, se esconde o ovo da serpente neopopulista (uma tentativa de ressuscitar o lulopetismo, ainda que sob outra forma)?

Quantas pessoas conseguiram explicar por que os populismos hoje, no Brasil e no mundo, digam-se de direita ou de esquerda, são os principais adversários da democracia?

Quantas pessoas souberam identificar os populismos contemporâneos a partir da suas características distintivas: a divisão da sociedade em uma única clivagem: povo versus elite, o encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão, a política praticada como guerra do nós contra eles, a ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido)?

Raríssimas foram as análises que revelaram isso (talvez uma única exceção – na grande imprensa – tenha sido o artigo de Demétrio Magnoli, publicado pela Folha de São Paulo de 20/11/2020, intitulado Boulos representa a restauração do lulismo). Por que? Ora, porque há um déficit acentuado de democratas na sociedade brasileira.

Grande parte da imprensa, por falta de compreensão de tudo isso (que foi exposto acima), alega que se trata de uma renovação mesmo, porque o PSOL não é o PT. Não veem que PSOL e PT têm a mesma matriz ideológica.

Sim, do ponto de vista doutrinário (ou ideológico, digamos assim), o PSOL não é muito diferente do PT. Basta comparar os dois programas partidários para ver isso. A matriz é a mesma: marxista-revolucionária.

Vamos dar apenas sete exemplos colhidos do programa do PSOL (e cujas expressões originais vão entre aspas abaixo).

1) “Rechaçar a conciliação de classes”, construir um “poder alternativo popular” e rejeitar “os governos comuns com a classe dominante”.

2) Apostar na “ruptura sistêmica” e no “enfrentamento revolucionário contra a ordem capitalista estabelecida”.

3) Expropriar “as grandes fazendas, sejam elas produtivas ou não”.

4) Não pagar a dívida externa, fazer uma “auditoria da dívida externa e da dívida interna”, desmontar e anular “a dívida interna com os bancos” e assumir o “controle de câmbio e capitais”.

5) Se posicionar contra “a reforma da Previdência que privatiza a Previdência pública, entregando-a aos banqueiros”, “Abaixo as privatizações”, “Estatização das empresas privatizadas”, “Expropriação dos grandes grupos monopólicos capitalistas” e “Controle da sociedade sobre os grandes meios de produção e de crédito”.

6) Defender a “democratização radical dos meios de comunicação”, que devem ficar sob a influência dos “movimentos sociais e [d]o povo organizado”.

7) Lutar pela “federação das Repúblicas da América Latina” e pela defesa dos países da América Latina e do mundo contra a “intervenção imperialista” (inclusive a Venezuela?).

É preciso entender por que os democratas são contra os populismos

A democracia não é um regime perfeito (não há regime perfeito). Ela tem falhas que podem ser exploradas. Esta é a razão pela qual os democratas são contra os populismos. Porque os populismos se aproveitam das quatro “falhas genéticas” principais da democracia para derruí-la.

Falha 1 – A democracia não tem proteção eficaz contra o discurso inverídico.

Populistas mentem o tempo todo, mentem como método.

Falha 2 – A democracia não tem proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a democracia.

Populistas amam de paixão eleições. Quando alguém acusa algum deles de estar violando a democracia, a resposta em coro é: “mas ele foi legitimamente eleito com trocentos milhões de votos”.

Falha 3 – A democracia não tem proteção eficaz contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam.

Populistas sempre erodem as normas (que não são e não podem virar leis – pois têm natureza ética) sem as quais os mecanismos de freios e contrapesos das instituições democráticas não funcionam mais a contento. Por exemplo, transformam os adversários em inimigos (do povo, do Estado, da pátria, da nação, da família ou de Deus) e encorajam a polarização para destruí-los (na base do “nós contra eles”).

Falha 4 – A democracia não tem proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões.

Populistas se especializaram recentemente em promover ataques de enxame (swarm attacks, contra os quais não há defesa conhecida) contra as instituições e seus ocupantes (os inimigos) que desativam (ou deprimem) o “sistema imunológico” da democracia.

O que caracteriza o populismo não é a presença de um líder demagógico. Ainda que o populismo opere sempre por meio de lideranças com alta gravitatem. Repetindo o que já foi dito aqui, mas ao que parece nunca é demais frisar, o que caracteriza o populismo é o seguinte:

A divisão da sociedade em uma única clivagem: povo versus elite.

O encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão: a política praticada como guerra do nós contra eles.

A ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido).

Tirando o populismo tradicional, a velha demagogia, que é uma doença endêmica da democracia que afeta mais ou menos boa parte dos políticos profissionais tradicionais (muitos fisiológicos e alguns corruptos), o populismo contemporâneo mais em evidência nos últimos anos é o chamado populismo-autoritário de extrema-direita.

Viktor Orban (Hungria), Robert Fico (Eslováquia) e os irmãos Kaczynski (Polônia) são populistas-autoritários. Trump (USA) é populista-autoritário, assim como Marine Le Pen (França), Matteo Salvini (Itália) e Nigel Farage (Reino Unido) – conquanto os três últimos não estejam chefiando governos. No Brasil, Bolsonaro é o melhor exemplo de populista-autoritário. Populistas-autoritários não devem ser colocados no campo democrático só porque disputam eleições. Boa parte das seis dezenas de ditaduras que remanescem no século 21 também promove eleições: são as chamadas autocracias eleitorais. São iliberais, por certo, mas não apenas isso: são também autocráticas.

Mas existe também um populismo de esquerda (o chamado neopopulismo). Não se sabe bem o que autoriza muitos analistas políticos, no Brasil e no mundo, a fazer de conta de que não existe populismo de esquerda (e que ele não representa uma ameaça à democracia). O que os leva a concluir (embora sem o dizer) que esse populismo não é i-liberal e majoritarista (e, portanto, antidemocrático – embora eleitoreiro)?

O chavismo (de Hugo Chávez na Venezuela) não era populismo? O evoismo (de Evo Morales, na Bolívia) não era populismo? O correismo (de Rafael Correa, no Equador) não era populismo? O kirchnerismo (do casal Kirchner, na Argentina) não era populismo? O lugoísmo (de Fernando Lugo, no Paraguai) não era populismo? O funesismo (de Maurício Funes, em El Salvador) não era populismo? O lulismo (de Lula ou de seu possível sucedâneo, Boulos) não é populismo? Então? Como se pode dizer que não há populismo de esquerda?

Pior. Maduro (na Venezuela) e Ortega (na Nicarágua) são populistas de esquerda que viraram ditadores. Então? Como se pode dizer que o populismo de esquerda não é antidemocrático?

E esses populistas de esquerda (ou neopopulistas), em boa parte, estão (ou estiveram) intoxicados ideologicamente pelo marxismo ou sob sua influência. Sim, existem novos populistas de esquerda que – ainda quando edulcorados pelo marketing como líderes moderados e responsáveis, como é o caso de Guilherme Boulos – continuam sendo marxistas. Ou seja, são arautos de uma doutrina historicista que admitem (e até amam) a via eleitoral, mas não se dão muito bem com o liberalismo-político, quer dizer, com a democracia.

O problema não é a esquerda (para quem ainda acredita que esse tipo de divisão esquerda x direita é capaz de explicar tudo) e sim o neopopulismo. Um populismo de esquerda sem Lula (com Boulos ou qualquer outro na cabeça) dá no mesmo. O problema é que o populismo é i-liberal, guerreiro e majoritarista.

O caso do Brasil saindo das eleições de 2020

Para concluir. No caso do Brasil atual, saindo das eleições municipais de 2020 (que revelaram um enfraquecimento eleitoral do PT e uma ascensão do PSOL) é preciso deixar claro que democratas não são antipetistas, nem antipsolistas. Apenas não concordam com o PT ou com o PSOL por duas razões principais:

1) o neopopulismo petista ou lulopetista (ou psolista ou boulista).

2) o marxismo dos seus dirigentes.

O primeiro problema é o mais grave, porque torna o PT e o PSOL forças políticas i-liberais e majoritaristas (ainda que amem eleições), o que pode derruir a democracia.

O segundo problema é menos grave: a democracia é sem-doutrina, mas pode conviver com forças políticas constituídas com base em doutrinas religiosas (laicas, como as marxistas e liberais-econômicas, ou não, como as pentecostalistas etc.) desde que elas não se tornem o centro de gravidade da política.

Se o centro de gravidade da política não for democrático, o processo de democratização estará sempre ameaçado de descontinuidade ou retrocesso pela sobreveniência de razões extrapolíticas para regular a política.

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