Não sou epidemiologista, nem médico. Mas penso que é meu dever publicar este aviso num momento em que a população (e algumas autoridades) estão querendo fazer de conta que a pandemia já acabou, quando ela não acabou e o número de infectados e mortos voltou a crescer.
Discute-se se há uma segunda onda. Mas com ou sem segunda onda, com ou sem quarentena (e quase todas intentadas aqui foram malsucedidas), só dá para relaxar depois da vacinação. E mesmo assim, com vacinação em massa, a imunidade coletiva vai demorar (pode nem ser alcançada em 2021). E não temos como rastrear contágio (por falta de testes PCR em quantidade suficiente e com resultados tempestivos).
Nestas circunstâncias, as cinco regras de ouro são as seguintes:
1 – Não entre em aglomerações,
2 – Não permaneça em locais fechados abertos ao público,
3 – Não converse frontalmente com ninguém que não coabita com você ou que está infectado,
4 – Lave as mãos (ou use álcool-em-gel) sempre que puder,
5 – Use máscara.
Isso significa: nada de restaurantes, bares, churrascos e festas, nada de ficar muito tempo em lojas e supermercados (no máximo alguns minutos: é entrar, comprar e sair), nada de ir a estádios esportivos, shows e comícios, nada de viagens longas de ônibus e avião, nada de celebrações de Natal e Ano Novo (a não ser com quem coabita com você).
É ruim, né? Claro que é. Mas se fosse uma guerra, com bombas caindo na sua cabeça e tiros pra todo lado, você insistiria em fingir que nada está acontecendo? Pois é… os vírus são as bombas e as balas. Se você não vê é porque é um idiota. Não saia dos abrigos durante bombardeios (o grande bombardeio alemão à cidade de Londres, no dia 7 de setembro de 1940, matou 436 pessoas, menos que a Covid está matando em um dia).
Diz o Talmud que quem salva uma vida salva o mundo inteiro. Podemos dizer que quem, por ação, omissão ou descuido, coloca uma vida em risco – a própria ou a de terceiros – está condenando a humanidade inteira.
Mas há também quem negue a pandemia, como o presidente Jair Bolsonaro. Quem faz isso tem que ser removido do governo o quanto antes.
Bolsonaro tem que ser impedido por razões humanitárias. Nessa frente pró-impeachment cabem a chamada esquerda lulopetista, psolista e cirista, pcdobista, cabem Covas, Boulos e Manuela, cabe a direita conservadora não-reacionária e os democratas. Mas não é uma frente para 2022, para viabilizar a volta da esquerda ou a chegada da direita civilizada ao poder. É para 2021 mesmo.
“Ah! – dirão alguns – mas não há condições de aprovar o impeachment na Câmara”. Não há mesmo. Por isso é necessária uma campanha pelo impeachment. Para quê? Para pressionar – e mudar a posição de – quem é conivente ou interessado em manter Bolsonaro no governo.
Mas como fazer uma pressão eficaz sobre deputados federais e senadores sem poder fazer manifestações de rua?
Devemos fazer manifestações de rua pelo impeachment de Bolsonaro?
Eis um difícil problema ético e político.
Um impeachment não acontece. Nós o fazemos (ou não fazemos). Sem uma campanha pelo impeachment nunca haverá impeachment.
Ocorre que, como dissemos, uma campanha pelo impeachment, forte o suficiente para mudar votos de congressistas que querem manter Bolsonaro, exige manifestações de rua.
Mas manifestações de rua em plena pandemia de Covid-19 (com uma onda que não acabou ou duas ondas encavaladas no Brasil) são aglomerações que podem aumentar o número de infectados e mortos.
Por outro lado, deixar Bolsonaro no governo até o fim de 2022, negando a pandemia, desacreditando as vacinas e sabotando as medidas de saúde pública que podem salvar vidas, também aumenta o número de infectados e mortos.
Do ponto de vista ético apenas propor esse cálculo é discutível, mas vamos lá. Numa contabilidade (inevitavelmente macabra) de doentes e mortos, o que seria mais prejudicial?
Sob o ponto de vista ético o problema, em si, é inadmissível. Não se deve arriscar vidas (no presente) para salvar vidas (no futuro). Ademais, não se pode ameaçar a vida de poucos (ou mesmo de um) para preservar a vida de um ou de muitos.
Mas há também o ponto de vista político. Bolsonaro na presidência não ameaça apenas a vida dos cidadãos, mas também a democracia, quer dizer a liberdade (sim, é um problema real: cada dia que Bolsonaro permanece na presidência, mais um pouco do conteúdo liberal da nossa democracia é drenado).
Em que medida a liberdade pode ser sacrificada em nome da vida? Ou, colocando de outro modo, pode-se arriscar vidas para preservar a liberdade? Se não se pode, todas os levantes contra as tiranias (desde as revoltas camponesas contra os Faraós) deveriam ser eticamente reprovados, pois os que se insurgem, não raro, arriscam suas vidas e as vidas de terceiros.
Não há uma solução geral, ao mesmo tempo ética e política (quer dizer, democrática), para esse problema. Temos que resolvê-lo caso a caso.
Mas não fazer nada, deixando Bolsonaro no governo, levará à doença e à morte mais brasileiros do que os que sofreriam se ele não continuasse negando a pandemia, destruindo a reputação das autoridades sanitárias e desmontando as instituições da área, desacreditando as vacinas, ridicularizando as máscaras e sabotando outras medidas de saúde pública que podem salvar vidas (como o distanciamento social).
Além disso, não fazer nada – esperando 2022 para trocar eleitoralmente de governo (o que é incerto) – causará prejuízos (alguns de difícil reparação) ao nosso regime democrático (que pode chegar ainda mais esfacelado daqui a dois anos).
Acrescente-se que populistas como Bolsonaro nunca saem facilmente do poder apenas pelo voto. Seguindo o exemplo de Trump, ele pode não aceitar um resultado desfavorável, denunciar falsamente uma fraude (como já vem fazendo) e arregimentar sua facção para resistir à vontade das urnas. Mesmo que não tenha sucesso em seu intento (como Trump provavelmente não terá), tudo isso significará mais instabilidade política e mais corrosão da democracia, com consequências maléficas não apenas no curto prazo, mas nos médio e longo prazos.
Sopesando todos os argumentos chega-se à conclusão de que deve-se, sim, fazer manifestações de rua pelo impeachment de Bolsonaro, desde que seja possível adotar alguns cuidados em relação à pandemia. Em que condições manifestações de rua seriam seguras (ou mais seguras)?
Bem… todas as pessoas deveriam ir de máscara e levar álcool-em-gel, ainda que isso não evite aglomerações (nas quais as máscaras não são tão eficazes). Observar o distanciamento físico de 1 metro (cada um no centro do seu metro quadrado), ainda que isso seja muito difícil de conseguir (a menos que as pessoas carregassem uma armação física que impusesse o distanciamento, o que é pouco praticável). Ocupar praças com marcações no chão para induzir o distanciamento físico ou fazer acampamentos em praças com distanciamento entre as barracas (em cada barraca apenas uma pessoa ou então pessoas que já moram juntas) – o que também é pouco praticável. Realizar passeatas com cordões de isolamento percorrendo ruas, acompanhadas de panelaços nos prédios e casas – é possível, mas de difícil execução. Carreatas com buzinaço, entretanto, são sempre seguras e podem ser feitas a qualquer momento.
De qualquer modo, várias formas de protesto, que não foram mencionadas no parágrafo acima, são sempre possíveis. Inclusive inundar as caixas postais eletrônicas e os programas de mensagens de parlamentares federais com chamamentos para uma campanha pelo impeachment e monitorar e expor suas posições em um site com “carômetro” (marcando quem é a favor do impeachment, quem é contra e quem não se definiu). Mas quem está pensando nisso? E quem está propondo isso?
Tem um pessoal agora fazendo um esforço enorme para articular frentes de vários setores para eleger candidatos (em 2020, mas de olho em 2022). Por que esse pessoal não faz o mesmo esforço para organizar uma campanha pelo impeachment de Bolsonaro? Em parte porque eles não querem realmente tirar Bolsonaro do governo antes de 2022. Querem ocupar o seu lugar a partir do final de 2022 e, para tanto, acham até preferível que ele permaneça na presidência se desgastando cada vez mais até lá.
É triste, mas é verdade. Os que não concordam com essa postura devem criticá-la e denunciar os que a adotam como parcialmente responsáveis pela tragédia que estamos vivendo.