Leiam com atenção o artigo de Demétrio Magnoli, publicado hoje (25/01/2020) na Folha de São Paulo. Ele vai na linha do que estamos dizendo há mais de três anos: o lavajatismo, quer dizer, o jacobinismo morista, cuja consequência objetiva será a implantação de um Estado policial no país, pode ser mais perigoso para a democracia do que o populismo-autoritário bolsonarista. Conquanto poucos, ainda há analistas políticos no Brasil, que não se deixam levar pelo apelo fácil de propostas autocráticas de limpeza da política e purificação do mundo a partir de estamentos corporativos do Estado – o que apenas revela a extensão e a profundidade do analfabetismo democrático que nos assola.
Também deve ser lido o artigo de Reinaldo Azevedo, publicado ontem (24/01/2020) na mesma Folha. Reinaldo é outra exceção, assim como Carlos Andreazza, que também publicou um bom artigo em O Globo (31/12/2019). Mas somos poucos, ainda muito poucos.
O três artigos mencionados estão reproduzidos abaixo.
O artigo do Demétrio:
Decisão de Fux sobre juiz das garantias ilumina os contornos do partido de Moro
Demétrio Magnoli, Folha de São Paulo (25/01/2020)
Inimigo dissimulado talvez revele-se mais perigoso para a democracia que o inimigo declarado
A alfabetização básica proporciona a leitura da mensagem direta, explícita e superficial, de um texto. Nesse registro, a liminar de Luiz Fux suspendendo a instituição do juiz das garantias foi lida como evidência do ativismo judicial, da incapacidade do STF de operar como corpo único e da sua inclinação a produzir incerteza jurídica. A alfabetização funcional propicia a interpretação do sentido profundo de um texto. Nesse registro, o ato de Fux deve ser decifrado como elemento da campanha presidencial de Sergio Moro.
A inclusão do juiz das garantias na Lei Anticrime nasceu da Vaza Jato. As provas do conluio entre Moro e os procuradores da força-tarefa evidenciaram o desprezo do juiz por seu juramento constitucional de submissão às tábuas da lei —e o perigo de subversão do sistema judicial. Os parlamentares agiram para assegurar a separação entre Estado-acusador e Estado-julgador, um pilar fundamental da democracia. “In Fux we trust”, escreveu Moro a seu comparsa Deltan Dallagnol numa das mensagens que vieram a público. A decisão monocrática do ministro do STF —um desafio a seu pares, ao Congresso e à separação de Poderes— atesta a confiança nele depositada. Mais que isso: ilumina os contornos do Partido de Moro.
Rússia, Turquia, Hungria e Venezuela contam-nos uma mesma história: a transição do governo populista ao regime autoritário passa, invariavelmente, pela politização do sistema judicial. A Justiça deve render-se à política, para calar as vozes dissonantes. Os diálogos expostos pela Vaza Jato mostraram que Moro e os procuradores não só operavam como parceiros mas também acalentavam um projeto de poder. Quando o juiz com causa metamorfoseou-se em ministro da Justiça, a articulação emergiu à luz do Sol. Moro, o homem que prometeu não se reinventar como político, traía sua palavra pela segunda vez.
Notícias periféricas desnudam as dimensões da articulação. As reclamações ao STF contra o juiz das garantias partiram do PSL, o antigo partido de Bolsonaro, de duas associações de juízes (Ajufe e AMB) e de uma entidade profissional do Ministério Público (Conamp). Numa nota oficial, Moro celebrou a liminar de Fux. Os elogios salpicaram algumas páginas de jornais assinadas por devotos do ex-juiz e as páginas eletrônicas de blogueiros fieis. O Partido de Moro compõe-se de uma sigla partidária e de porta-vozes midiáticos informais —mas, sobretudo, de organizações corporativas de juízes, promotores e procuradores.
Há tempos, a política infiltrou-se nos domínios do Ministério Público. Abertamente, no seu interior, organizaram-se “partidos” de esquerda (MPD, Ministério Público Democrático, fundado em 1991) e de direita (Ministério Público Pró-Sociedade, fundado em 2018). O primeiro, que sofreu uma cisão em 2016, circula na órbita ideológica do PT. O segundo, que apoiou a candidatura de Bolsonaro, gira no campo gravitacional do ministro da Justiça.
As implicações da politização do MP estão à vista de todos: o procurador Wellington Marques de Oliveira, que oferecera uma denúncia vazia contra Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, agora reincide na prática da intimidação. O procurador sem limites mira o jornalista Glenn Greenwald, protagonista da Vaza Jato, tentando transformar em crime a exposição de verdades inconvenientes. Sem surpresa, o Ministério Público Pró-Sociedade saiu em defesa do gesto de abuso de autoridade. O Partido de Moro instrumentaliza o sistema judicial antes mesmo de chegar ao poder.
A democracia traça uma fronteira nítida entre as esferas da Justiça e da política. Moro saltou, legitimamente, de uma a outra para, ilegitimamente, demolir a muralha que as separa. Bolsonaro, o nostálgico da ditadura militar, o adulador de torturadores, é um inimigo declarado da democracia. O inimigo dissimulado talvez revele-se mais perigoso.
O artigo do Reinaldo:
Moro à espera do manto imperial
Reinaldo Azevedo, Folha de S. Paulo (24/01/2020)
Real ameaça à democracia é o bonapartismo da aliança entre setores do Ministério Público e do Judiciário
Que ameaça à democracia representa um clown deprimido que, num surto de mania, resolve envergar as vestes de Goebbels da periferia? Ou um paspalho que confunde Kafka com kafta, infernizando a vida de milhares de estudantes com sua incompetência acima de qualquer suspeita? Ou um outro, terraplanista fanático, que acredita que o rock conduz ao “abortismo” e ao satanismo?
Essas e outras personagens, que inventaram para si mesmas, na última hora, o papel de extremistas de direita em busca de alguma relevância em suas respectivas existências miseráveis, degradam a vida pública, sim. Mas a sociedade sabe se defender de seus delírios, como, felizmente, temos visto. O espectro que ronda a democracia é outro.
A que propósito atende Wellington Divino Marques de Oliveira, procurador da República, que, ao denunciar o jornalista Glenn Greenwald, afronta, com um único ato, a Constituição, o devido processo legal e uma decisão do Supremo, num exemplo escancarado de abuso de autoridade?
Que metafísica influente leva o ministro Luiz Fux a assinar talvez a liminar mais patética da história do Supremo, cassando decisão de um outro colega, suspendendo sem prazo a eficácia do juiz das garantias, previsto em texto amplamente aprovado pelo Congresso?
É falso como nota de R$ 3, e isso ficará claro —vamos ver quando—, que a lei agride o artigo 96 da Constituição. É falaciosa a tese de que se está criando despesa sem a devida receita. Quem traz tal mácula na biografia é Fux, quando, com uma canetada, estendeu, em 2014, o auxílio-moradia a todos os juízes e membros do Ministério Público.
Permaneceu quatro anos sentado sobre a decisão, ao custo de quase R$ 1 bilhão por ano. Já tinha em sua biografia a declaração de inconstitucionalidade da lei que regulava o pagamento de precatórios de estados e municípios. Impôs a esses entes, em 2013, um espeto de quase R$ 100 bilhões, que deveriam ser pagos até 2018. Mandou às favas a economicidade da medida. Pesquisem. Fux criou tal confusão que foi obrigado a conceder liminar suspendendo a própria decisão.
O procurador Divino é o mesmo que apresentou uma denúncia, rejeitada pela Justiça, contra Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, inconformado com uma crítica que este fizera a Sergio Moro, pré-candidato indisfarçado à Presidência da República, que se dedica a um trabalho árduo e cotidiano de sabotar o pouco que pode haver de virtuoso no governo Bolsonaro no que respeita à institucionalidade.
“In Fux we trust” (“confiamos em Fux”) é a frase já tornada imortal com que Moro respondeu a uma mensagem de Deltan Dallagnol, que assegurava ao então juiz, em abril de 2016, o pleno alinhamento do ministro com a Lava Jato. A intimidade era tal, revelou The Intercept Brasil, em parceria com meu blog, que Fux fustigou Teori Zavascki porque o então relator do petrolão ousara dar um pito em Moro.
Divino e Fux fazem parte de um movimento. O que ameaça a democracia brasileira é o bonapartismo da aliança entre setores do Ministério Público e do Judiciário. O ainda ministro da Justiça personaliza o que pretende ser um ente de razão, a que se subordinaria toda vida pública no país.
Parte das milícias de extrema direita nas redes sociais já tem seu novo líder: Bolsonaro foi substituído por Moro como demiurgo — ou ogro — de suas fantasias totalitárias. O ponto de ancoragem de sua militância é o ódio às garantias do Estado democrático e de Direito.
Ocorre que o agora ministro da Justiça também fala a outro público. Amplos setores da sociedade brasileira, com destaque para a imprensa, foram convencidos de que o combate à corrupção deveria ser encarado como um valor absoluto. E uma das características do absoluto é a ausência de regras, de parâmetros, de limites.
Não! Não temam os tolos e os patetas. O que nos ameaça são as aspirações daquele que, apostando na ruína de seu chefe, está à espera de que o manto imperial lhe caia sobre os ombros. Se e quando acontecer, parafraseando alguém, então a estátua da Justiça que fica à frente do STF terá ido ao chão.
O artigo do Andreazza:
A histeria lavajatista
Carlos Andreazza, O Globo (31/01/2020)
A histeria lavajatista sobre a implementação do juiz de garantias — ótima figura jurídica — em nosso ordenamento ocultou outros pontos relevantes, aperfeiçoados ou incluídos pelo Parlamento, e sancionados pelo presidente, no chamado pacote anticrime; sobretudo aqueles ligados ao instrumento da colaboração premiada, ferramenta importante, mas cuja juventude, legislação nascida em 2013, merecia alguns graus de maturidade.
O pacote os trouxe. Não o proposto por Sergio Moro, esvaziado também com a intenção política de lhe diluir a identidade do ex-juiz. Mas o costurado pelo Congresso e chancelado por Jair Bolsonaro, um bom conjunto, que impõe necessários limites à lei de delações. Por exemplo: que depoimentos de delatores não possam, per si, sustentar medidas cautelares nem denúncias.
É sabido que houve excessos nos usos desses conteúdos delatados, sem qualquer outro elemento de corroboração, para colocar indivíduos — não interessa o quão criminosos — na cadeia. É sabido que muitas investigações se acomodaram — como que apoiadas numa muleta — na palavra de um (encrencado, em busca de se safar) contra outro (não raro nem sequer investigado), disto resultando fragilidades nas acusações.
“Ah! Mas isso é um ataque ao combate à corrupção! Vai acabar com a Lava-Jato”.
É o escambau! Basta deste embuste de ouvir — toda semana — que qualquer mudança proposta pelo Parlamento bota em risco a luta contra a corrupção. Isso virou um mantra de fanáticos que outra coisa não fazem senão defender a estrutura do próprio poder. Ouço esse papo, de Lava-Jato ameaçada, desde 2014 — e nunca o combate à corrupção retrocedeu.
O lavajatismo não dita — não pode ditar — o ritmo da vida pública neste país. Não pode controlar nossos humores. Não pode — porque popular — raptar a independência da imprensa. E não se pode admitir a retórica influente de que fazer críticas — ainda que as mais duras — aos operadores da Lava-Jato equivalha a ser a favor da corrupção. O que é isso? Estamos criando uma casta de intocáveis?
Os diálogos revelados pela Vaza-Jato estão aí para lembrar que não há santos nesta ceia. Nem Moro. Se a entrada da figura do juiz de garantia em nosso ordenamento, já prevista no texto do novo CPP, foi acelerada — e foi — como reação política ao tipo de magistrado que ele representa, aquele que se associa à acusação, e se essa pancada no hoje ministro foi avalizada, conscientemente, pelo chefe presidente, problema deles. Isso não desqualifica o instrumento, ainda que haja problemas na forma de implementação e dúvidas sobre sua regulamentação.
Valerá para processos em curso? Não deveria. Sendo, de todo modo, desonesto intelectualmente sair gritando — com base no que ora há — que a mudança atenderá aos interesses de Flávio Bolsonaro. Pode vir a atender?
Mais provável é que não. Fiquemos em estado de alerta.
É desonestidade intelectual, porém, deparar-se com uma figura como a do juiz de garantias e — com fundamento nessas pendências — sair bradando que representará um abalo na guerra contra a corrupção. Quero saber por quê. Por que atrapalharia o advento de um magistrado que controle o processo — ministrando diligências e cautelares — para assegurar que direitos não sejam violados? Só atrapalharia a quem quisesse extrapolar.
É mentira que o juiz de garantias fincaria uma nova instância na tramitação de processos. É mentira também que a defesa — que o investigado — poderia escolher o juiz de garantias que lhe acompanharia a ação. A quem interessa esse terrorismo?
O aperfeiçoamento da legislação — inclusive a relativa ao instituto da delação premiada — serve para minimizar as áreas cinzentas em que se dão abusos e onde se abrigam, portanto, as verdadeiras ameaças às investigações. Se vamos mesmo permanecer cativos do fetiche segundo o qual a corrupção é o maior problema do Brasil, que ao menos gozemos num cativeiro iluminado.
“Ah! Mas como ousa sugerir que a corrupção não é o maior problema do país!?”
Não estou sugerindo. Estou afirmando.
O maior problema do Brasil é o tamanho do Estado e sua ineficiência. O maior problema do Brasil é a incompetência derramada no aparelho estatal. Diminua o Estado, reduza o corpo da máquina — e também a corrupção cairá. A corrupção está na superfície da máquina pública. Diminua o Estado — e nenhuma Lava-Jato será capaz de combater a corrupção com melhores resultados.
Mas quem, entre os justiceiros alarmistas apontadores de riscos contra o combate à corrupção, muitos dos quais heróis aboletados na banha estatal, quer mesmo diminuir o Estado? Existe a indústria da corrupção, tremenda e histórica. Tanto quanto há — e cresce — a jovem indústria do combate à corrupção; que também precisa de carne.