Mídias interativas como o Facebook e o WhatsApp, confundidas no Brasil com redes sociais, deixaram de ser ferramentas benignas de netweaving (articulação e animação de redes sociais propriamente ditas, quer dizer, de pessoas interagindo enquanto estão interagindo segundo uma topologia mais distribuída do que centralizada). Agora, imersos neste período sombrio de brutal reação à emergência de uma sociedade-em-rede, estamos diante de um desafio que ainda não sabemos enfrentar: como inventar novas tecnologias interativas, menos manipuláveis pelo sharp power dos regimes autocráticos (e que servem de instrumentos para o populismo-autoritário), que não sejam tão malignas para a democracia? A atual revolta dos Gilets Jaunes (Coletes Amarelos) na França – além, é claro, do Brexit e das eleições de Trump, de Duterte e de Bolsonaro – é um sinal preocupante do que pode vir por aí.
UMA MÍDIA SOCIAL MAIS COMPATÍVEL COM AS REDES E COM A DEMOCRACIA É POSSÍVEL?
Tomemos os exemplos do Facebook e do Twitter. O Facebook criou uma ordem arbitrária para controlar o que você vê e, consequentemente, disciplinar a interação decorrente. Grande parte do controle do Facebook sobre o que você vê (os tais algoritmos caixa-preta) vem da chamada Página Inicial. Se acabasse com a Página Inicial, já seria mais de meio caminho andado. Outro problema é a ausência de busca nos perfis, páginas e eventos (ela existe nos grupos e funciona razoavelmente bem) que transforma o Face no maior alçapão de dados do planeta.
O Twitter bem que poderia ser a base para uma mídia social mais compatível com um meio interativo capaz de servir de ferramenta de netweaving, mais conforme à democracia e menos vulnerável à manipulação.
Como seria isto? Começaria por acrescentar mais uma funcionalidade – threads – nos tweets. Ao lado dos botões Responder, Retweetar, Curtir e Mensagem Direta, haveria mais um: Conversação. Clicando nela você cairia numa nova página com a reprodução do tweet no topo e, abaixo, espaço (sem-limite) para publicar um artigo inteiro seguido de um programa de comentários, com comentários aos comentários, podendo também subir fotos, vídeos (como em qualquer post do Facebook) e áudios inclusive (como no WhatsApp).
Poderia ser acrescentada ainda uma outra funcionalidade chamada Grupos, que abriria outra timeline (para cada grupo formado): assim as pessoas seguiriam não apenas outros perfis, mas também grupos. A busca, que também já existe, poderia ser aperfeiçoada, com tradução automática (para o idioma escolhido previamente).
Bem… mas tudo isso seria apenas o passo inicial. Daí para frente é que entrariam as funcionalidades capazes de captar a fenomenologia da interação: clustering (páginas de aglomeração de tweets semelhantes) e cloning (idem de perfis e grupos semelhantes), swarming (que os TTs tentam captar, mas ainda muito rudimentarmente), crunching (mapa de conexões capazes de encurtar as distâncias – ou a extensão característica de caminho – entre perfis e grupos que tratam recorrentemente dos mesmos assuntos), reverberação (uma outra linha TT, mais dinâmica, selecionada por tempo de emissão congruente, réplica e tréplica – esta última para medir a interatividade), looping de recursão (que não dá para explicar neste artigo).
É possível fazer isso? É possível, pois já dominamos a tecnologia capaz de desenhar mídias com tais características, se houver interesse.
UMA PROVOCAÇÃO
A mídias sociais (que no Brasil, nunca é demais frisar, são incorretamente chamadas de redes sociais) deveriam ser mídias interativas, ferramentas de netweaving (de articulação e animação de redes sociais propriamente ditas, ou seja, repetindo: pessoas interagindo enquanto estão interagindo, não tecnologias, sites, instrumentos). Mas a galera usa as mídias sociais para fazer broadcasting porque os engenheiros da criação de tecnologias de manipulação as criaram assim (com o objetivo do usuário ser o produto).
Peguemos o exemplo do Twitter, que virou vitrine dos famosos, ricos e poderosos. Aí um cara como o Neymar é seguido por 40 milhões e segue apenas 600 pessoas. Ou como o Trump, que é seguido por mais de 56 milhões de pessoas e segue apenas 45 gatos pingados. Ora, querem fazer broadcasting (transmissão de mão-única um-para-muitos)? Comprem então espaço num jornal, revista, rádio ou TV.
Como provocação, poderíamos propor o seguinte. Se é para ser realmente mídia interativa, uma pessoa só abriria espaço para ser seguida na medida em que seguisse alguém. Tipo assim: você seguiu 10 pessoas? Então tem crédito para ser seguido por 10 pessoas. Os pedidos ficariam aguardando por ordem de chegada.
Ou, dando mais um passo na provocação: se você não seguir também a pessoa que lhe segue, o vínculo se quebrará (digamos, dentro de um ano).
Isso poderia ser ainda mais radicalizado. Se um usuário não interage (responde, compartilha ou replica) com as pessoas que o seguem num determinado intervalo de tempo (que pode ser o mesmo: um ano), perde o seguidor (que entrará no final da fila de espera se quiser continuar seguindo aquela pessoa).
Claro que as mídias sociais proprietárias que temos hoje não topariam isso. O que é mais uma evidência de que as mídias sociais que temos não são verdadeiras ferramentas de rede e sim de broadcasting.
AS MÍDIAS SOCIAIS CONTRA AS REDES SOCIAIS
A provocação acima tem como objetivo chamar a atenção para o seguinte: por que você precisa ser seguido por muita gente? Para ficar famoso? Mas a fama, do ponto de vista das redes, é uma patologia da interação social. Você quer ser visto, conhecido, admirado por tanta gente que não se relaciona com você por qual motivo? Quer vender alguma coisa para essas pessoas? Quer que elas votem em você para algum cargo? Quer que elas lhe sigam como um rebanho? Mas o que você quer fazer por ou para essas pessoas (ou é só de lá para cá, só instrumentalização do outro)?
A rigor, tomando como parâmetro o famoso número de Dunbar, você não pode interagir recorrentemente, com um grau de separação, mais do que com 150 pessoas. O efeito-rede vai multiplicar (ou exponenciar) sua influência, a partir de dois e de três graus de separação, para milhões de pessoas. Faça as contas: se você tem 100 amigos em média e os seus amigos idem, e os amigos dos seus amigos idem-idem, e os amigos dos amigos de seus amigos idem-ibidem, mesmo eliminando a repetição (fruto de clustering), isso atinge números espantosos. É assim que funciona a rede e essa tende a ser a dinâmica predominante em uma sociedade-em-rede.
Mas os donos de mídias sociais não estão interessados nisso e sim, ao que tudo indica, no oposto. Querem manter a lógica da escassez, da criação artificial de escassez, para preservar padrões de organização centralizados (quer dizer, hierárquicos) e modos de regulação de conflitos autocráticos (quer dizer, antidemocráticos).
É muito difícil manipular redes sociais mais distribuídas do que centralizadas. Não confunda com mídias sociais (essas são fáceis porque são centralizadas e não são ferramentas adequadas de netweaving). O broadcasting centraliza. Mídias que permitem o broadcasting permitem a manipulação.
O Facebook, por exemplo, limitou o número de amigos em perfis pessoais (em 5 mil), mas significativamente liberou geral os seguidores (de perfis e páginas). Se quisesse realmente ser uma ferramenta de rede deveria ter feito o oposto.
O problema é que mídias desenhadas dessa maneira tornam-se extremamente vulneráveis à manipulação dos famosos, dos ricos e poderosos. Não resistem à netwar operada pelos “hackers oficiais” de ditaduras como a Rússia e a China. E não resistem às forças políticas autocratizantes que, atuando de modo organizado e centralizado, querem tornar as democracias menos liberais e mais majoritaristas. O novo chanceler Ernesto Araújo chegou a teorizar esse novo caminho quando escreveu, em um paper do final de 2017, o seguinte:
“Trump e sua proposta de reconexão com o patrimônio mítico do passado ocidental não seria possível, paradoxalmente, sem a internet. A internet, se por um lado constituiu o paroxismo da globalização e do desenraizamento do indivíduo, por outro pode tornar-se o instrumento que produz o fim da globalização, pois permite a volta do indivíduo à esfera política e o retorno de ideias e maneiras de pensar que já não tinham nenhum lugar na mídia oficial controlada pelo programa politicamente correto, inclusive o sentimento nacional, o princípio nacional de organização espontânea da sociedade. O mundo do discurso vinha‑se transformando em um enorme dictionnaire des idées reçues como chamava Flaubert, em um Newspeak como imaginou Orwell. A internet veio para rasgar esse dicionário, recuperar a língua e reabrir o espaço simbólico não controlado pelo estado ou pelas forças políticas oficiais”.
Claro. Para quem usa as mídias sociais para fazer broadcasting, para amealhar seguidores, para arregimentar contingentes de obedientes, é isso mesmo. Olavo de Carvalho, semanalmente, se gaba de ter mais de 500 mil seguidores da sua página no Facebook. Ele jamais sairia da obscuridade sem esse uso instrumental das mídias sociais. Quando Bolsonaro diz que quer fazer uma ligação direta com o povo, via mídias sociais, bypassando as mediações institucionais, é exatamente isso que ele tem em mente.