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Meus artigos de abril de 2023 na Crusoé

É para comemorar ou para apavorar?

Crusoé (06/04/2023)

O PT não aceita a rotatividade democrática a não ser como resultado de um erro que tenha cometido por subestimar a forma de seus inimigos

Não são bons os indicadores de realizações dos primeiros 100 dias de Lula, muito menos as expectativas suscitadas pela volta do PT ao governo.

Examinemos a sua proposta de responsabilidade fiscal desfibrada a pretexto de assegurar a responsabilidade social (que, de social, stricto sensu, não tem nada: ‘social’ não é sinônimo de ‘pobre’ ou de ofertar benesses para os pobres, mas vá-se lá dizer-lhes!).

É engraçado o que o PT faz com a cabeça dos trouxas. Haddad articula um plano que é uma licença para gastar e os trouxas dizem: “Ufa! Ainda bem. Imagine se fosse o plano da Gleisi. Menos mal. Saímos ganhando“. Fora o teto de gastos.

Sobre isso, convém responder três perguntas sugeridas pelo artigo do Felippe Hermes na Crusoé da semana passada (31/03/2023):

1) Não há mais necessidade de dois terços do Congresso para mudar, ou emendar, o teto (agora basta uma maioria simples)?

2) Não há punições reais pelo descumprimento do que foi estabelecido (descumprir o teto implicava em crime de responsabilidade fiscal – e agora)?

3) O governo não precisará mais ir ao congresso conversar quando quiser aumentar os gastos (já está autorizado a gastar mais, até determinado patamar)?

Vejam que as três questões acima são políticas, não propriamente “técnicas” (econômicas). Sobre as questões econômicas sugiro a leitura do artigo dos Marcos (Mendes e Lisboa): Regra fiscal: uma avaliação preliminar.

Celso Ming no Estadão de 31 de março asseverou: a “incerteza está em saber se na prática ele [o arcabouço fiscal] se sustentará, especialmente se os gatilhos funcionarão caso a meta fiscal não seja atingida. A impressão é a de que facilita os gastos, sem punição quando deixar de ser cumprido“.

No mesmo dia, Vinícius Torres Freire constatou na Folha que o plano é flexível demais. Lendo seu artigo só nos resta aduzir. Não há como fazer um plano de responsabilidade fiscal, de forma honesta, e comprovada, sem cortar gastos.

O editorial do Estadão de 1º de abril concluiu: “A proposta de arcabouço fiscal do governo aposta num crescimento irreal de receitas e não propõe uma única medida concreta para rever os gastos estruturais da União“.

Carlos Alberto Sardenberg, ainda no primeiro de abril, equacionou: “O novo arcabouço fiscal só funciona, mantendo as contas públicas em razoável equilíbrio, na ocorrência de três situações: 1) expressivo ganho de arrecadação do governo federal; 2) forte crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) ou; 3) alta inflação”. Lendo seu artigo é impossível não suspeitar que, para seu plano dar certo, na ausência de um boom no PIB e não podendo aumentar a arrecadação, o governo torcerá pelo aumento da inflação.

Afonso Celso Pastore, em entrevista ao Estadão, um dia depois, alertou: “Se o governo aprovar esse arcabouço, ele obtém uma licença para aumentar gastos. Se ele não aumentar a carga tributária, o superávit primário não vai ser gerado… Essa equação só fecha com aumento brutal de carga tributária”.

Esse arcabouço fiscal do Haddad é o maior malabarismo já visto em economia como política disfarçada. Tudo indica que é para gastar mais e não para cortar gastos. Ah!… Mas é melhor do que nada – dizem os corifeus da imprensa. Vamos ver quem será punido quando a meta fiscal não for atingida.

Claro que Haddad sabia o que precisava ser feito. Mas não podia propor porque, além de não concordar, sabia que Lula e o PT querem gastar e não aceitariam. Então fez uma proposta política de mediação. Um teto de gastos é inaceitável para populistas? Vamos propor então um piso de gastos, que tal?

O que se espera de nós? Que gritemos “Viva o novo piso de gastos” (sem mecanismos efetivos de controle)?

Mas não para por aí. Pois lá vai agora o governo Lula desfigurar totalmente o Marco do Saneamento para beneficiar empresas estatais, que passam a poder ser contratadas sem licitação e sem metas a cumprir. Desde, é claro, que essas empresas estatais possam ser aparelhadas, como foram no passado. Por isso Lula é contra a Lei das Estatais. Porque quer mais seis centenas de cargos para nomear seus militantes da frente de esquerda e para comprar aliados.

O PT no governo vai também intervir na política de preços da Petrobrás. Vai – é só questão de tempo – se insurgir contra as agências reguladoras. Vai querer controlar o Coaf e a Receita Federal. E vai, é certo, continuar dinamitando a autonomia do Banco Central.

Lula e o PT não gostam da palavra autonomia. Preferem a palavra soberania. Nem desconfiam que não há equivalência entre soberania e democracia. Soberania é uma reminiscência autocrática (soberano dizia-se o monarca absolutista). Na democracia nenhuma instituição, nem mesmo um governo (querendo falar em nome do país) pode ser, a rigor, soberano. Império, só o da lei. Só a lei (democraticamente aprovada) pode ser soberana. Por isso que a democracia não pode ser confundida com soberania (de uma classe social – que os populistas chamam de “o povo” –, de um líder, de uma força política, de um governo, de um Estado-nação) para, supostamente, entregar mais-cidadania (para “o povo”). Mas essa é uma cláusula pétrea da “constituição” do neopopulismo lulopetista que não será alterada por nenhuma argumentação, por mais sólida.

A volta do PT não é apenas o resultado do processo de alternância normal em democracias. Como se sabe, o PT não aceita a rotatividade democrática a não ser como resultado de um erro que tenha cometido por subestimar a força de seus inimigos. Usa as eleições não apenas para chegar ao governo, mas para tomar o reter o poder. Se, depois do mandato de um petista, um inimigo ganhar as eleições desalojando o partido do governo, isso equivale a uma catástrofe. Pane geral no sistema! Algo deu errado, pensam os dirigentes e militantes do PT.

Cem dias é um tempo muito curto para estabilizar a velha forma de dominação petista, recauchutada para o período 2023-2026. No máximo, o governo vai listar algumas dezenas de realizações no varejo – alguma corretas, reconheça-se, conquanto cosméticas. Não terá nada de realmente novo a apresentar. Mas – eis o problema – terá muita coisa de velho para tentar nos empurrar goela abaixo.

Dentre essas velharias, destaca-se a retomada da vibe da Guerra Fria. Sobre isso, as movimentações do país no cenário internacional desenham um quadro pavoroso.

Além de não se aliar à coalizão das democracias liberais em defesa da Ucrânia, barbaramente invadida e agredida pelo ditador Putin, o governo brasileiro esconde suas solertes propostas sob a justificativa da paz.

O Conselho de Segurança da ONU rejeitou há uma semana uma resolução russa que pedia a criação de uma “comissão de investigação internacional independente” sobre a sabotagem dos gasodutos submarinos Nord Stream, em setembro do ano passado. O texto recebeu apenas três votos a favor (Rússia, China e Brasil), enquanto os outros doze países se abstiveram. A resolução russa era copatrocinada pela China e por países não membros do Conselho, como Belarus, Coreia do Norte, Eritreia, Nicarágua, Venezuela e Síria. Entenderam? Foi uma iniciativa das sete ditaduras mais asquerosas do planeta. Em nome da paz o Brasil apoiou essa enormidade.

Em nome da paz, o Brasil não assinou a declaração final da segunda edição da Cúpula da Democracia. Provavelmente não concordou com a exigência de que “a Rússia retire, imediata, completa e incondicionalmente, todas as suas forças militares do território da Ucrânia“. Mais de 75 países assinaram: as democracias liberais, é claro, e muitas democracias eleitorais. O Brasil mostrou para o mundo que se alinha melhor às ditaduras.

Em nome da paz, o ministro das relações exteriores do PT, Celso Amorim (sim, o outro – Mauro Vieira – é o “oficial” do governo), vai conspirar meio secretamente com o ditador Nicolás Maduro (que cometeu uma inconfidência e revelou o encontro, do contrário nem ficaríamos sabendo que ele ocorreu). Como se não bastasse, organiza em seguida outra missão cercada de sigilo para confabular com o ditador Vladimir Putin. E diz que não tem tempo nem de passar num voo de pássaro na Ucrânia, ao menos para ouvir a opinião de Volodymyr Zelensky, o agredido. Ora, isso não é neutralidade. O governo brasileiro se alinha ao bloco das ditaduras contra as democracias liberais. Qual a dúvida de que esse Amorim é, objetivamente, um agente da guerra fria que caracteriza a política externa (e interna) do PT?

Se esse é o legado dos 100 dias do terceiro governo Lula (e o quinto do PT), então não há mesmo nada para comemorar. Só para apavorar!


A torcida para o governo Lula “dar certo”

Crusoé (13/04/2023)

Dado seu antiliberalismo estrutural, a gestão petista jamais poderá ser um avanço para a democracia liberal

As coisas estão ficando claras para quem quer ver. Mas muitos analistas não petistas, que viraram governistas, não querem ver. E argumentam mais ou menos assim:

1) Somente Lula e Bolsonaro conseguem arregimentar forças eleitorais expressivas (de 30% no caso do primeiro e de 20% no caso do segundo).

2) A chamada direita democrática e o centro democrático não conseguirão, no curto prazo, alcançar tais patamares (e não chegariam a um segundo turno em uma eleição).

3) Se os democratas (ditos de direita ou de centro) não quiserem correr o risco da volta de Bolsonaro terão de apoiar Lula, envidando todos os esforços para seu governo “dar certo“.

4) Conclusão (não dita explicitamente): logo, todos os democratas, além de apoiarem o governo atual, terão de fazer campanha e votar em Lula em 2026.

Onde está o erro no argumento, ou melhor, onde está o seu déficit de inteligência democrática?

Antes de qualquer coisa: as chances de o governo Lula “dar certo” não são grandes. E “dará certo” para quem? Dado seu antiliberalismo estrutural, o governo de Lula e do PT jamais poderá dar certo para a democracia liberal.

Bolsonaro teria mesmo de ser removido em 2022. Até por Lula, como foi. Porque o problema de Bolsonaro não era somente político. Como os demais líderes populistas-autoritários ao redor do mundo, ditos de extrema direita, ele era um agente antissocial (uma ameaça aos direitos e aos valores humanos, ou seja, no limite, à própria humanidade). Mesmo que não tenha consciência disso, ele faz parte, objetivamente, da lista dos principais adversários da democracia (de qualquer democracia, não apenas da democracia liberal). Em ordem alfabética: Abascal, Bannon, Belang, Bolsonaro, Bukele, Duda, Duterte, Erdogan, Farage, Gauland, Giammattei, Le Pen, Lukashenko, Michaloliákos, Modi, Netanyahu, Orbán, Putin, Salvini, Strache, Trump, Ventura, Vucic, Wilders e Zemmour – para dar apenas vinte e cinco exemplos de líderes populistas-autoritários mais conhecidos.

Pois bem. Lula venceu as eleições (com a ajuda decisiva das forças democráticas não populistas, ditas “de direita” e “de centro”) e agora governa. Diz-se que isso é tudo de bom porque não temos mais o celerado Bolsonaro na chefia do governo.

Todavia, não ser Bolsonaro não é suficiente, nem atestado de bom governo. Se o sucessor de Bolsonaro tivesse sido a Simone, ou o Leite, ou o Doria, ou o Tasso ou até o Temer, estaríamos numa situação pior do que estamos com Lula? É óbvio que não.

O que estaria melhor em qualquer uma das alternativas imaginadas acima:

1 – Não estaríamos apoiando Putin ou namorando Xi Jinping e outros autocratas e privilegiaríamos a participação do Brasil na coalizão das democracias liberais.

2 – Estaríamos apoiando a resistência ucraniana contra a invasão militar de Vladimir Putin e não tentando ridicularizar Zelensky ou atribuir a ele, falsamente, parte da culpa pela guerra.

3 – Não estaríamos nos guiando por uma proposta pirada de Sul Global e fechando os olhos para as barbaridades cometidas pelas ditaduras de esquerda (como Cuba, Venezuela, Nicarágua e Angola).

4 – Não teríamos estuprado a Lei das Estatais para aparelhar essas empresas com petistas ou para comprar aliados com cargos.

5 – Não estaríamos destruindo o marco do saneamento.

6 – Não teríamos interrompido o processo de privatizações.

7 – Não estaríamos contemporizando ou fechando os olhos para as invasões de terras produtivas pelo MST.

8 – Não estaríamos tentando interferir nas políticas de preços dos combustíveis.

9 – Não estaríamos contestando a autonomia do Banco Central e atacando seu presidente para obrigá-lo a renunciar.

10 – Não estaríamos investindo na polarização e na guerra e sim na pacificação do país. (E só isso já seria uma grande vantagem de não ter Lula e o PT no comando).

Pergunta-se então aos governistas. É o governo que faz isso que temos de apoiar sob pena de, se não o fizermos, Bolsonaro voltar? Não faz sentido.

Bolsonaro não é uma alternativa concreta ao governo Lula 3 (as eleições presidenciais só ocorrerão em 2026 e não há grande possibilidade de impeachment ou prisão de Lula). Bolsonaro já não governa e o bolsonarismo, conquanto continue mantendo um grande contingente eleitoral, não pode fazer mais do que tentar desestabilizar o governo Lula.

As chances de substituição de Lula por Bolsonaro ou por outro bolsonarista antes do final do mandato de Lula são mínimas. A hipótese de um golpe de Estado em termos tradicionais (com tanques nas ruas), sem o apoio das Forças Armadas, é irreal. O bolsonarismo tem voto, mas não tem força político-militar para efetivar um golpe de mão no Brasil (assim como não teve durante o mandato de Bolsonaro).

O que haverá então? Acirramento da polarização e instalação de uma guerra civil fria enquanto a política continuar sendo substituída por um combate, a rigor antipolítico, entre dois populismos.

Sim, se não houver uma válvula de escape para aliviar a pressão gerada nessa panela – onde se configurou um ambiente adversarial bipolar – não haverá solução propriamente política para o conflito.

Em outras palavras, se não surgir uma alternativa democrática liberal no Brasil – uma oposição democrática que se diferencie da oposição antidemocrática bolsonarista – podemos caminhar para a instabilidade política rapidamente. O entrechoque entre dois populismos — um democrático apenas eleitoral (o lulopetismo) e outro autocrático eleitoral (o bolsonarismo), ambos não liberais — pode nos levar ao colapso. Haverá, no mínimo, uma peruanização. Uma democracia formal de baixa intensidade poderá sobreviver, mas o processo de democratização será paralisado, o sistema imunológico da democracia será deprimido, os direitos políticos e as liberdades civis precarizados. Não é que deixaremos de ser uma democracia formal (pois o sistema representativo continuará funcionando), mas entraremos numa guerra civil fria de longa duração, cujas consequências serão as que foram apontadas acima (e que estão sendo observadas neste momento no Peru e, talvez, na Bolívia – dois regimes parasitados pelo populismo de esquerda em luta contra o populismo-autoritário de extrema direita).

Ou seja, num momento em estamos diante de uma segunda grande Guerra Fria mundial, nosso governo, a pretexto de manter uma posição de (falsa) neutralidade, está pronto para se alinhar (objetivamente) às piores autocracias do planeta contra as democracias liberais. E, no plano interno, como um reflexo desse mesmo movimento, também está contribuindo para instalar no país uma guerra civil fria de consequências conhecidas e, em parte, desconhecidas (por imprevisíveis).


Uma perigosa linha foi ultrapassada

Crusoé (20/04/2023)

Lula e o PT abandonaram a (falsa) neutralidade que vinham afetando e tomaram partido abertamente: ao lado das autocracias, contra as democracias liberais

Vejamos como tudo começou. Ou, pelo menos, como tudo apareceu com conotações repugnantes para a consciência democrática. Há cerca de uma semana, Lula declarou (está gravado em vídeo e eis a degravação com algumas observações interpoladas):

Eu tenho uma tese que eu já defendi ela com (Emmanuel) Macron, com Olaf Scholz, da Alemanha, com (Joe) Biden e ontem discutimos longamente com Xi Jinping. Ou seja, é preciso que se constitua um grupo de países dispostos a encontrar um jeito de fazer a paz. É preciso ter paciência para conversar com o presidente da Rússia, é preciso ter paciência para conversar com o presidente da Ucrânia, mas é preciso sobretudo convencer os países que estão fornecendo armas e incentivando a guerra, pararem“.

Como assim “países que estão fornecendo armas e incentivando a guerra“? A Ucrânia foi vítima de uma agressão militar. Se não for ajudada, deixará de existir como nação. Segundo a Carta da ONU, defender um país agredido não é incentivar guerra.

Eu acho que a China tem um papel muito importante. Eu continuo reiterando que a China, possivelmente seja o papel mais importante. Agora, outro país importante é os Estados Unidos. Ou seja, é preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz“, disse Lula.

Os EUA não estão incentivando guerra nenhuma. Essa é a tese de Putin, que Lula tolamente comprou. Estão ajudando uma democracia a se defender da agressão de uma ditadura. Este é o papel que se espera de qualquer democrata.

É preciso que a União Europeia comece a falar em paz, pra gente poder convencer o Putin e o Zelensky de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só está interessando, por enquanto, aos dois“, disse Lula.

Como é que é? Por que a guerra interessa a Volodymyr Zelensky? A Ucrânia foi invadida militarmente. Se não se defendesse, desapareceria como nação.

A fala é asquerosa, errada e antidemocrática. É um alinhamento de Lula às narrativas das autocracias russa e chinesa, contra as democracias mais avançadas do planeta.

O conteúdo acima foi repetido, com variações, em duas declarações de Lula: uma na China e outra nos Emirados Árabes Unidos.

Logo entraram em cena os “bombeiros”, quer dizer, os passapanistas que querem salvar Lula e o PT de si mesmos para fazer “o governo dar certo”. E aí começaram a surgir na imprensa e na rede suja de sites e blogs do PT, enxurradas de desculpas: “foi sem querer”, “foi falta de atenção”, “foi um deslize”, “foi um exagero”, “foi um erro pontual”, “ele estava cansado”, “ele falou, mas não foi para valer (tanto é assim que a política externa do Brasil de condenar a invasão russa na Ucrânia não mudou)”, “ele errou nesse ponto, mas não é hora de criticá-lo (do contrário Bolsonaro volta)”.

Todavia, não. Não foram incontinências verbais de Lula. Ele pensa isso mesmo. Mas o pior é que os dirigentes e militantes do PT pensam igual. A narrativa anti-imperialista e antineocolonialista da Guerra Fria está entranhada no partido. Ou seja, as falas de Lula na China e nos Emirados não foram um tropeço, um descuido, uma incontinência verbal, um escorregão diplomático. Lula não inventou nada: apenas repetiu, exatamente, o mesmo discurso de todos os partidos pró-Putin na Europa. Ele não errou. Ele se alinhou.

O que se pode concluir desses episódios?

Lula e o PT abandonaram a (falsa) neutralidade que vinham afetando e tomaram partido abertamente: ao lado das autocracias, contra as democracias liberais. Se os bolsonaristas já não eram, agora os petistas (pelo menos os que seguirão Lula nessa deriva autocrática) também não serão mais players válidos da democracia liberal.

Temos de conversar sobre isso porque, embora pareça uma continuidade com o que vinha acontecendo, não é. A viagem à China sinalizou uma ruptura do PT com a ordem democrática liberal. A conjuntura mudou. Não no plano internacional, mas aqui mesmo no Brasil. O próprio Lula desmentiu a justificativa dos passapanistas governistas de que as relações Brasil-China se guiam por interesses comerciais. Ele disse claramente, com todas as letras, que está se aliando à ditadura chinesa não por razões comerciais. Vejamos:

Algumas horas antes Lula havia declarado, em 14 de abril:

A compreensão que o meu governo tem da China é a de que temos que trabalhar muito para que a relação Brasil-China não seja meramente de interesse comercial… Queremos que a relação Brasil-China transcenda a questão comercial“. Ele disse também querer “elevar o patamar da parceria estratégica e, junto com a China, equilibrar a geopolítica mundial“. E ainda: “Ninguém vai proibir que o Brasil aprimore a sua relação com a China“.

Não são só palavras, não é só retórica para animar a militância petista que ainda está exilada na primeira Guerra Fria. Lula assinou memorandos de entendimento sobre cooperação em informação e comunicações, entre o Grupo de Mídia da China e a Secretária de Relações Institucionais do Brasil, e acordos de coprodução televisiva e entre a agência de notícias Xinhua e a EBC. Ora, relações comerciais podemos (e devemos, se não houver sanções internacionais) estabelecer com qualquer país. Alianças políticas (geopolíticas) e nas áreas de informação e comunicação com ditaduras, jamais.

Na declaração conjunta China-Brasil, assinada por Xi Jinping e Lula, está escrito: “O Brasil recebeu positivamente a proposta chinesa que oferece reflexões conducentes à busca de uma saída pacífica para a crise“. Ora, a proposta chinesa é pró-Rússia. Não exige a retirada das tropas invasoras de Putin.

Talvez seja desnecessário dizer que quando a ditadura chinesa fala em paz é melhor fazer um seguro de vida. É a paz de Xinjiang? É a paz de Hong Kong? É a paz do Tibet? É a paz que o imperador Xi quer levar à Taiwan? É a paz da Praça da Paz Celestial, onde manifestantes foram massacrados pelo governo em 4 de junho de 1989?

Anti-imperialismo mofado

Prevaleceu o anti-imperialismo mofado. Populistas de esquerda vivem dizendo que não se pode tomar posição a favor do EUA, que são um país imperialista que nunca respeitou a soberania alheia, apoiou regimes ditatoriais etc. Com base nisso, apoiam as maiores autocracias do mundo.

É por isso que apoiam (declarada ou disfarçadamente, em nome da “paz” ou do “não alinhamento ativo“) a Rússia ditatorial de Vladimir Putin e a China quase-totalitária de Xi Jinping. Porque essas autocracias são contra os EUA imperialistas.

Mas os democratas liberais nada têm a ver com os EUA que, já faz tempo, não aparecem nos primeiros vinte lugares em todos os rankings sérios de democracia. Dito isso, é preciso ver que nenhum país pode ser julgado pelo seu passado. Como se a entidade que apoiou as ditaduras militares na AL nas décadas de 60-70 ou que invadiu o Iraque em 2003 fosse a mesma dos recentes esforços de Biden de articular uma coalizão de democracias liberais para conter as autocracias. Depende muito das circunstâncias e dos governos. Os EUA sob Bush e Trump não são a mesma coisa que sob Obama e Biden. Recuando mais no tempo: os EUA só se tornaram uma democracia eleitoral em 1921 e só viraram uma democracia liberal em 1969 (segundo os critérios do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo). E estão a um passo de perder tal condição. Se fossemos avaliar os países do ponto de vista da sua história, a Bélgica, uma das destacadas democracias liberais da atualidade, teria de ser julgada pelo passado do Império Colonial Belga sob o rei Leopoldo II (1865-1909).

Os democratas têm a ver com os regimes que melhor atendem aos indicadores de democracia, que são chamados de full democracies (os EUA são uma flawed democracy) ou liberal democracies. Regimes como — segundo o V-Dem, a The Economist Intelligence Unit e a Freedom House (as três mais conceituadas instituições que monitoram a democracia no mundo) — os que vigem na Alemanha, na Austrália, no Chile, na Dinamarca, na Finlândia, na Holanda, na Irlanda, em Luxemburgo, na Noruega, na Nova Zelândia, na Suécia e na Suíça.

Tudo indica que Lula e o PT vão avançar em direção à autocracia, mesmo na ausência de condições objetivas. Sim, é o equivalente a (ou um substituto de) uma “revolução” à revelia das condições objetivas. Porque, subjetivamente, os populistas de esquerda lulopetistas concluiram que é agora ou nunca. No entanto…

Uma perigosa linha foi ultrapassada

Nas falas, nos gestos e atitudes, de Lula na China, uma perigosa linha foi ultrapassada de modo irreversível. Lula não pode, como Bolsonaro, desdizer o que disse (ainda que já tenham começado a pressioná-lo para fazer isso). Mas não há para quem fazer uma cartinha pedindo desculpas.

Embora Lula sempre tenha pensado assim — e relativizado e desvalorizado as democracias diante das ditaduras de esquerda, que supostamente cuidam do seu povo (melhor do que as democracias, segundo ele) — isso nunca foi explicitado como tomada de posição diante de um conflito definidor de alinhamento a campos em disputa.

E Lula alinhou definitivamente o PT (e temporariamente o governo brasileiro) ao bloco das maiores autocracias do planeta contra as democracias liberais. Derrubou até mesmo o biombo dos interesses comerciais, afirmando que seu propósito é político: mudar a geopolítica mundial.

A viagem à China é um marco na trajetória de um partido que nunca conseguiu sair do ambiente tóxico da primeira Guerra Fria e que sonha “fazer a revolução” nas novas condições do mundo após a queda do muro de Berlim, usando a via eleitoral contra a democracia liberal.

Dirigentes e militantes do PT acompanham em peso Lula nessa deriva autocrática. Basta conversar com qualquer um deles ou examinar as suas postagens nas mídias sociais para comprovar isso. Estão unificados no combate ao imperialismo americano e ao neocolonialismo eurocrata.

Como os interesses comerciais do país e os interesses políticos do PT foram imbricados, mesmo que houvesse arrependimento pelo mau passo, não haveria volta. As megaditaduras que compõem majoritariamente os Brics (embrião do bloco autocrático) não assimilariam tal guinada.

Só um novo governo — que se alinhasse à coalizão das democracias liberais — poderia tentar consertar o malfeito. Enquanto o neopopulismo lulopetista estiver no governo, não há reparação possível, nem por ato de vontade, nem por imposição das circunstâncias.

No entanto, antes disso, as forças democráticas (não populistas) que restaram no Brasil devem se articular para resistir a essa investida aberta de caráter antiliberal. Ou fazem isso agora, ou vão desaparecer como atores minimamente relevantes da cena pública.


Lula não está cometendo nenhum “erro”

Crusoé (28/04/2023)

O presidente e o PT, além de se alinharem às autocracias contra as democracias liberais, também se colocam contra tudo que diga respeito à autonomia da sociedade diante do governo

Pelo menos duas dezenas de colunistas que tentam salvar Lula e o PT de si mesmos repetem: “Lula errou nesse ponto (quer dizer, pontualmente) no caso da Ucrânia“. Não, não errou. Acertou de acordo com sua concepção.

Sim, Lula não errou em nenhuma de suas declarações sobre a Ucrânia. Acertou em todas, segundo a sua concepção. Que é exatamente a mesma concepção dos partidos populistas europeus (de direita ou de esquerda) que são pró-Putin. Ele não inventou nada. Repetiu. Poderia até assinar com eles uma declaração conjunta.

E não é só sobre a Ucrânia, mas também sobre as privatizações, sobre a autonomia do Banco Central e das agências reguladoras e sobre a contraposição entre responsabilidade fiscal e social. Sobre esses pontos, o governo Lula não está cometendo nenhum erro. É isso mesmo o que pensa a esquerda lulopetista.

Todavia, o caso da Ucrânia continua sendo o “erro” mais escandaloso porque Lula insiste em cometer os mesmos disparates, ou seja, em reafirmar suas concepções.

A declaração desastrosa mais recente (no momento em que escrevo este artigo) foi a entrevista ao jornal português Público. Respondendo ao jornalista que lhe perguntou sobre as violações dos direitos humanos na China (mencionando os campos de concentração de Xinjiang onde se pratica a tortura e a lei de segurança nacional imposta a Hong Kong), ele disse:

Todos os países do mundo têm problemas. Nós precisamos aprender a respeitar a autodeterminação dos povos. A China encontrou um jeito de resolver os seus problemas, e um jeito que permitiu que a China logo logo se transforme na primeira economia do mundo“.

É uma barbaridade do ponto de vista da democracia. É como se o progresso material justificasse a prisão, a tortura, a morte, as restrições das liberdades civis e dos direitos políticos. Ela revela o Lula nu e cru (sem a maquiagem dos passapanistas).

Mas antes, em entrevista à RTP portuguesa, Lula já havia voltado a falar:

É preciso construir uma narrativa que convença Putin e Zelensky de que a guerra não é a melhor maneira para resolver os problemas.”

Do jeito que Lula insiste em falar, parece que Zelensky optou pela guerra como modo de resolver os problemas. É falso. A Ucrânia foi invadida e está sendo massacrada pelas tropas do ditador russo. Para ela, a alternativa a resistir é desaparecer.

No tal “clube da paz“, proposto por Lula, além de EUA e União Europeia (que Lula considera, falsamente, como envolvidos na guerra), estão três regimes antidemocráticos (que seriam “neutros“): China (ditadura pró-Rússia), Índia e Turquia (ambas autocracias eleitorais, segundo a classificação do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo). Ainda bem que – além do Lavrov, cachorro de Putin (“cachorro” no sentido de A revolução dos bichos, de George Orwell) – ninguém deu bola para esse disparate, a não ser por educação.

E antes, logo que chegou a Portugal, Lula mentiu mais uma vez. Reafirmou que os países da União Europeia que socorrem a Ucrânia entraram na guerra. Para exemplificar disse que se devolvesse as munições (do Leopard 2) recebidas da Alemanha, o Brasil entraria na guerra. É falso também. Segundo a ONU socorrer um povo agredido não é entrar em guerra.

Ora, todos sabem que não haverá paz na Ucrânia enquanto ela continuar sendo agredida. Cessar fogo, até pode ser. Para tanto, o invasor tem de se retirar do território ucraniano. O Brasil deveria estar empenhado nisso. Exigir a retirada das tropas invasoras do ditador Vladimir Putin. Para parar o atentado.

Ocorre que esta não é só a posição de Lula e sim do governo como um todo. O chanceler Mauro Vieira, presente na comitiva que foi a Portugal, afirmou em entrevista ao mesmo jornal português Público:

Nós nunca estabelecemos nenhuma condição prévia. O que queremos é que as partes se sentem e discutam possibilidades de paz“.

Ou seja, é oficial: o governo Lula não exige a retirada das tropas invasoras.

Repetindo o que já escrevi em outros artigos na Crusoé. A política externa do governo é a política externa do PT. E a política externa do PT é o PT. É nela que tudo se revela.

O que, porém, se revela?

Bem, em primeiro e último – poder-se-ia dizer, único – lugar, o que chamei de “antiliberalismo estrutural“.

A cabeça de Lula e do PT ainda funcionam na Guerra Fria. Por isso, seu namoro com as autocracias (como as que estão nos Brics, por exemplo) não é acidental e sim, digamos, “estrutural“.

O alinhamento (explícito ou in pectore) de Lula e do PT com Rússia, China, Índia, Irã (e certa simpatia dos seus militantes por Hezbollah e Hamas), Cuba, Venezuela, Nicarágua e Angola é consequência de um “antiliberalismo estrutural“. Ou seja, esse apoio preferencial às autocracias – contra as democracias liberais – não tem razões conjunturais (sobretudo econômicas) embora isso seja frequentemente usado como biombo para esconder opções políticas. É uma expressão do seu caráter político estruturalmente antiliberal.

Quer dizer, o pensamento lulopetista se estrutura (e é estruturado) pela ideia de que há uma (única) clivagem no mundo (que o define politicamente): os imperialistas e neocolonialistas, chefiados pelos Estados Unidos e representados pelos seus aliados europeus (da UE), asiáticos (Coréia do Sul, Taiwan e Japão) e da Oceania (Austrália e Nova Zelândia), com três exceções na América Latina imersa em populismos (Costa Rica, Chile, Uruguai) versus o países em desenvolvimento do chamado Sul Global, onde se destacam autocracias fechadas (como Cuba, China, Coreia do Norte), autocracias eleitorais (como Rússia, Índia e Irã) e democracias eleitorais parasitadas pelo populismo de esquerda (como Brasil, Bolívia, Argentina, México, Peru). Ou seja, para esse pensamento, exilado na primeira grande guerra fria, essas contraposições não são conjunturais, mas estruturais. Elas não mudam porque o mundo é (estruturalmente) assim (e só assim pode ser apreendido politicamente).

Como, de um lado, estão as democracias liberais, segundo o V-Dem (ou as democracias plenas, segundo a The Economist Intelligence Unit; ou os regimes livres do ranking da Freedom House), esse pensamento é antiliberal. Fundamentalmente, essa visão é contra a ideia (fundante da democracia liberal) de que democracia não trata propriamente da capacidade do governo de controlar (e conduzir e educar) a sociedade e sim, ao contrário, da possibilidade da sociedade de controlar o governo.

Todo o restante, todos os “erros” de Lula (e do PT), deriva daí.

Por isso que Lula e o PT, além de se alinharem às autocracias contra as democracias liberais, também se colocam contra tudo que diga respeito à autonomia da sociedade diante do governo (seja a autonomia do Banco Central e das agências reguladoras, sejam as privatizações e as normas para proteger as estatais do aparelhamento político-partidário, sejam as regras fiscais que limitam a gastança governamental etc).

Não há erro algum. Lula e o PT acertam em tudo: de acordo com essa visão.

Um programa de aprendizagem da democracia baseado em livros e filmes distópicos

Timothy Snyder. Explosão sobre o Kremlin: o que isso significa