Para começar, vamos assistir um vídeo, gravado no terceiro decanato de março de 2023, que está dando o que falar.
O erro dos que acham que Lula cometeu um erro – ao acusar Moro, sem provas, de armar uma conspiração com a juíza Gabriela Hardt, a Polícia Federal e outros procuradores – é que esse aparente erro não é (simplesmente) um erro. É uma consequência da existência de um organismo com as características do PT que, por razões estratégicas, se confundiu com uma pessoa: Lula. E é claro que, mesmo sendo Lula, essa pessoa, como toda pessoa, tem problemas e limitações.
Há 20 anos venho tentando explicar isso. Talvez daqui a 20 anos alguns analistas políticos comecem a entender. Mas não custa tentar mais uma vez.
Razões estratégicas? Sim, o PT sabia desde o início que, sem Lula, jamais conseguiria implementar sua estratégia de conquistar hegemonia sobre a sociedade brasileira, delongando-se indefinidamente no governo até alterar o genoma da nossa democracia. Precisava e ainda avalia que precisa de um Duce com alta gravitatem para deformar o campo interativo de sorte a permitir uma ligação direta com as massas, bypassando as mediações institucionais que protegem a democracia da tirania da maioria.
Problemas e limitações? Sim, problemas. Há deficiências de percepção de riscos e de avaliação de possibilidades que afetam qualquer pessoa. E há limitações naturais, inclusive as provocadas pela idade: a cabeça de Lula vem piorando com o tempo (como a de todos ou quase todos nós da sua geração). Mas, no seu caso, a incapacidade (dupla) de aprender e esquecer tem a ver com essa fusão da personalidade com o organismo.
O PT é esse organismo. Como escrevi na Revista Crusoé (17/03/2023):
“A manutenção do organismo é sempre o maior imperativo. Organismos desse tipo (o único partido no Brasil “com cabeça, tronco e membros”, como disse Lula sobre o PT — e a metáfora é reveladora), uma vez conformados, adquirem certa autonomia em relação às circunstâncias. Eles criam uma réplica do mundo, como percebeu Hannah Arendt (1951) estudando o totalitarismo (em Origens do Totalitarismo), para dar “a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões”. Porque seu fim último é “organizar” toda a população “como simpatizante”.
Na mesma Crusoé, uma semana depois (24/03/2023), voltei ao tema:
“O fato de o PT ter ficado 13 anos no governo e não ter tentado dar um golpe de Estado não é prova de sua conversão cabal à democracia. Golpe nunca foi mesmo a estratégia do PT. Ele quer ganhar eleições sucessivamente até se tornar hegemônico. No limite, até que toda a população vire simpatizante do PT, embora saiba que isso não é possível (mas, para todos os efeitos práticos, é como se fosse: um tipo de organismo como o PT precisa de utopias totalizantes)”.
Ao se identificar com esse tipo de organismo o líder é atravessado pelas mesmas pulsões totalizantes que percorrem o organismo. Ele passa não apenas a querer representar todo o povo, mas a ser a síntese do próprio povo, ou seja, a ser um substituto para o povo e, pior, para cada um do povo.
Começa então a acreditar que é “um ser humano diferente”. Que ele não é (só) ele, mas “a encarnação de um pedacinho de célula de cada um” dos membros do “povo” (ou seja, na prática, dos que o seguem). Não foi por acaso que Lula tuitou (em 21/02/2018) a seguinte pérola:
“Eles estão lidando com um ser humano diferente. Porque eu não sou eu, eu sou a encarnação de um pedacinho de célula de cada um de vocês”.
Parece óbvio – mesmo para um leigo em psiquiatria – que isso tem alto potencial de gerar transtornos de personalidade. Esse tipo de fama (e de experiência extática de glória) é uma patologia da interação e, assim, pode ter efeitos patológicos severos sobre o indivíduo.
Observem a foto acima. É o corpo todo que está envolvido, não apenas o rosto que revela um gozo em processo… tudo indica uma espécie de êxtase em que o sujeito está transportado para fora de si e, ao mesmo tempo, está absorto em si mesmo, vítima da pegajosidade de uma ideia-fixa: neste caso, a de que Lula é o Lula. Não o Luiz Inácio da Silva de Caetés, mas a entidade que se criou num poço de potencial, na deformação do campo gerada pela sua presença ansiada, expectada, misticamente invocada.
Depois de experimentar as emoções associadas a (e suscitadas por) essa condição, uma pessoa não é a mais a mesma, embora o indivíduo, fora desse campo, tenha de continuar (su)portando todos os problemas e limitações comuns a qualquer ser humano. Aí surge o transtorno que consiste em superestimar suas próprias habilidades e exagerar suas realizações, entremeado com o medo de que, talvez, essas habilidades, por algum motivo, possam não estar mais presentes ou de que não seriam mais capazes de produzir as almejadas realizações. É uma afecção narcísica, alguns poderiam dizer, com mais ou menos propriedade do que autor deste artigo.
O fato é que, para uma pessoa fora dessa condição, seria normal avaliar os riscos de levantar publicamente hipóteses conspirativas, que poderiam ser facilmente refutadas pela realidade, com evidentes prejuízos para sua credibilidade e para seus propósitos. Quem, em seu perfeito juízo, não pensaria duas vezes antes de fazer afirmações como as que Lula fez no vídeo que abre este artigo? E quem desprezaria riscos e prejuízos como esses a não ser que se julgasse, em alguma medida, onipotente?
Foi a pergunta que, significativamente, o Reinaldo Azevedo fez quando entrevistou Lula no início deste mês:
“O senhor foi preso, condenado, sem provas, por um juiz incompetente, suspeito. E voltou à presidência: terceiro mandato. Essa trajetória, espetacular, o senhor pode [ininteligível]… Mas a minha pergunta é: como é que o senhor faz para não ter um certo senso de onipotência, assim de, ‘ah! eu sou o Lula, eu posso tudo’? Porque seria difícil alguém em seu lugar não ter isso”.
Sim, Reinaldo acertou na avaliação: seria difícil alguém, no lugar de Lula, não ter isso, mesmo que, no caso, o jornalista não saiba bem que lugar é esse. Se soubesse, é possível que não tivesse virado, da noite para o dia, um ardoroso neomilitante lulopetista.
Mas o lugar da onipotência não é a psique do indivíduo Luiz Inácio da Silva e sim a sua interseção com o organismo. Eis a base da onipotência:
‘Se eu fizer uma besteira, minha legião de seguidores, ativada pelos meus fieis escudeiros (os dirigentes e militantes petistas), consertará’.
‘Se eu errar, eles dirão que não foi erro’.
‘Se eu me comportar indaquedamente, eles justificarão’.
‘Se eu falar uma mentira, eles repetirão ad nauseam a mesma mentira até transformá-la em verdade’.
Nada disso é especulação. Está acontecendo agora, neste exato momento, no Brasil.
E também não é de agora que Lula apela para teorias da conspiração. Pablo Ortellado, hoje (25/03/2023), em O Globo, faz uma lista com vários exemplos de “teorias especulativas, inverossímeis e sem provas, muitas vezes alucinadas”, usadas por Lula. Ele escreve que “as declarações conspiratórias de Lula são abundantes. Quando perde, Lula tende a explicar o sucesso dos adversários pela orquestração de um pequeno grupo de agentes superpoderosos que agem em segredo — por uma teoria da conspiração”.
Lançar mão desses recursos indevidos é próprio dos populismos, inclusive do neopopulismo (o novo populismo de esquerda que assola a América Latina desde o início do presente século). Maduro diz que todos os problemas da Venezuela são causados pela intervenção do imperialismo norte-americano, pelas forças da CIA que agem clandestinamente no país. Os ditadores cubanos explicam a pobreza da população da ilha alegando que ela se deve a um bloqueio (inexistente) dos Estados Unidos (o que existe, na verdade, é um embargo comercial, muito limitado por sinal). Por que Lula não diria que a Lava Jato, que o julgou, condenou e prendeu, não foi também uma ação dos americanos para destruir nossas empreiteiras (aquelas mesmas que o beneficiaram fartamente)?
O neopopulismo precisa de líderes perturbados (ou perturbáveis). Só funciona assim. Precisa de um brecha na alma, pela qual penetra um cabo conectado, em geral, a uma organização originalmente marxista (ou cujos principais dirigentes foram marxistas ou ainda são) – mas este é um aspecto que não poderá ser desenvolvido aqui, até porque já o foi em outro lugar. O fato é que o neopopulismo não vingaria na Venezuela sem um Chávez, na Nicarágua sem um Ortega, na Bolívia sem um Evo, no Equador sem um Correa, no Paraguai sem um Lugo, em Honduras sem um Zelaya, em El Salvador sem um Funes, no México sem um Obrador, na Argentina sem uma Cristina. E não funcionaria no Brasil sem um Lula.
Portanto, não adianta ficar tentando alertar Lula para não cometer tantos erros, dando tiros nos próprios pés e prejudicando o seu governo. Esse tipo de erro, não é bem erro. É uma condição.