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O que é ser um agente democrático

Por que é tão fundamental reconhecer padrões autocráticos quando eles ainda estão meio escondidos

Isso é o que diferencia um agente democrático de outros agentes políticos (não suficientemente convertidos à democracia ou, mesmo, antidemocráticos). Quando os padrões autocráticos são explícitos, é fácil percebê-los. Por exemplo, ataques às instituições judiciais e parlamentares, restrições de direitos políticos e liberdades civis (como a liberdade de imprensa). Quando não são, entretanto, é mais difícil – para quem não aprendeu democracia, quer dizer, não desaprendeu autocracia suficientemente – antever a ameaça embutida no comportamento de forças políticas, candidatos ou governantes autocráticos.

A linguagem (ou o discurso) é um dos campos de reconhecimento desses padrões, como mostrou Victor Kemplerer (1947) no livro “Lingua Tertii Imperii – A linguagem do Terceiro Reich”. A recorrência a uma linguagem de guerra e a identificação de certas expressões deslizadas da arte militar para a política indica, em quase todos os casos, as tendências autocráticas de um líder ou militante hostil à democracia, seja considerado de direita ou de esquerda. Em especial o conceito de “inimigo interno” é chave para desvelar índoles individuais ou coletivas antidemocráticas.

Ademais, quando a linguagem política é vazada por palavras (conceitos) como estratégia, tática, ofensiva, defensiva, correlação de forças, vitória, derrota, exterminação ou neutralização de adversários (sempre tomados como inimigos da pátria ou do povo), pode-se concluir que estamos diante de um presente ou iminente ataque à democracia.

‘Povo’, aliás, é a mais cruel dessas palavras, na medida em que os clássicos adversários da democracia no século 20 (como os fascistas e comunistas) transformaram-se nos novos populistas do século 21. E os populistas, quando falam ‘povo’, estão se referindo sempre à parcela da população que concorda com suas posições e não à população em geral. ‘Povo’, assim como seu original latino ‘populus’ era uma designação para “contingente de tropas”. E a própria palavra democracia, definida como governo, poder ou ordem (kratos) do povo (demos), na verdade já deturpa o conceito original: democracia era o poder do demos (distrito, circunscrição territorial para a formação de uma polis, comunidade política) para quebrar o poder do genos (a ordem de filiação estabelecida pelas famílias da aristocracia fundiária na Atenas do século 6 AEC).

No caso brasileiro (assim como no americano) a dificuldade de perceber os ovos da serpente na campanha de Bolsonaro (e de Trump) levaram a uma certa leniência com a ameaça que eles representavam (e essa leniência se converteu em conivência de parte do sistema político). Em ambos os casos houve déficit de democratas, que desvelassem e denunciassem o perigo mortal para a democracia contido nos discursos autocratizantes desses líderes populistas-autoritários.

O campo de reconhecimento de padrões autocráticos não é só a linguagem, mas o comportamento político como um todo. No caso brasileiro (mas que também se aplica ao americano, mutatis mutandis) podemos listar vários indicadores de ameaças ao processo de democratização. Na verdade eles se aplicam hoje, com adaptações, às diversas tentativas de enfrear o processo de democratização patrocinadas em todo mundo pelos populismos-autoritários. Vejamos um exemplo:

1 – Existem e são significativas, por parte do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de demonizar os meios de comunicação não-alinhados ao governo?

2 – Há algum tipo de coação sobre veículos de comunicação que criticam o governo, usando critérios político-ideológicos para distribuir verbas públicas destinadas à comunicação governamental ou fazendo campanha nas mídias sociais contra órgãos específicos de comunicação, acusando-os de divulgarem fake news ou de serem “os inimigos” e estarem traindo a pátria?

3 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de priorizar ou hierarquizar os sujeitos dos direitos humanos, como, por exemplo, as que afirmam que os direitos humanos devem ser destinados principalmente aos “humanos direitos” em detrimento dos “humanos tortos” ou dos “bandidos”?

4 – Há tentativas de estabelecer uma associação automática – mesmo que feita somente através de discursos das forças políticas que apoiam um candidato ou governante – entre crime, corrupção e adesão a alguma ideologia considerada exótica?

5 – O candidato, ou governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem que o combate às visões ideológicas julgadas perversas (por uma ideologia particular, tal como esposada pelo candidato ou pelo governo) será o mesmo (ou da mesma natureza) que o combate aos crimes?

6 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de instalar uma guerra cultural (entre crenças, valores, costumes, cuja adesão cabe à decisão privada dos cidadãos)?

7 – O governante comporta-se mais como chefe de facção do que como chefe de Estado e de governo (governando prioritariamente para seus eleitores ou seguidores do que para toda a população)?

8 – Há em curso cruzadas de limpeza (étnica, religiosa ou mesmo ética) apoiada pelo candidato, pelo governante ou pelas forças políticas que o apoiam?

9 – Em nome do combate à corrupção, o governo tenta centralizar, comandar, dirigir ou coordenar as ações do Judiciário e do Ministério Público selecionando alvos de investigação e dirigindo o oferecimento de denúncias criminais?

10 – O candidato, o governante e as forças políticas que o apoiam, divulgam ideias ou apresentam projetos capazes de levar à ereção de um Estado policial?

11 – Há medidas, propostas pelo candidato, pelo governo ou pelas forças políticas que o apoiam, que ensejem, favoreçam, premiem ou incentivem a violência policial e leve à políticas exterministas, como a licença para matar, a legítima defesa preventiva e a justiça-policial preemptiva?

12 – O candidato, o governante ou a forças políticas que o apoiam, difundem preconceitos contra os direitos humanos (por exemplo, os de que “bandido bom é bandido morto”)?

13 – O governante ou as forças políticas que o apoiam, qualificam como terroristas grupos sociais e forças políticas que se opõem ao governo?

14 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, apresentam ou defendem propostas de armamentismo popular, que prevejam ampliar a permissão do porte de arma nas ruas (como política de segurança pública ou de defesa pessoal)?

15 – Existem projetos de lei, de iniciativa do governo, prevendo a facilitação abusiva ou o estímulo e incentivo à compra de armas e munições no varejo?

16 – Há algum tipo de relação ou aliança tácita do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, com a indústria de armas e munições?

17 – Há algum tipo de relação, apoio ou aliança tácita do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, com milícias e com a banda podre das polícias?

18 – Há algum tipo de tutela militar sobre o poder civil?

19 – É alto o grau aparelhamento do governo por oficiais das forças armadas (a porcentagem de militares da ativa ou da reserva que ocupam cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões)?

20 – Oficiais das forças armadas, da ativa ou da reserva, emitem declarações políticas tentando intimidar ou pressionar as instituições civis (como os tribunais superiores e o parlamento)?

21 – Há, por parte do candidato, do governo ou das forças políticas que o apoiam, manifestações de algum tipo de xenofobia e de fundamentalismo nacionalista (mesmo que disfarçado de patriotismo)?

22 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, a defesa de algum tipo de controle estatal da expressão artística, mesmo a pretexto de combater a zoofilia, a pedofilia, a sexualização precoce ou a indução ao gayzismo (que afetaria crianças e jovens)?

23 – Se não há, o candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, emitem declarações ou organizam ações de propaganda a favor desse tipo de controle?

24 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, defendem algum tipo de intervenção estatal no ensino escolar a pretexto de coibir a doutrinação com alguma ideologia considerada exótica – ou com alguma ideologia com a qual não se identificam – em sala de aula?

25 – O candidato, o governante ou as forças políticas que o apoiam, estimulam a militarização da educação com a adoção de algum tipo de “religião patriótica”, que instaure um culto aos heróis da pátria?

26 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, tentativas de reescrever a história (e, sobretudo, de ensinar tais falsificações históricas nas escolas ou em cursos paralelos de deformação política), enaltecendo regimes autocráticos do passado ou promovendo antigos violadores de direitos humanos (por exemplo, conhecidos torturadores) como heróis da pátria?

27 – Há, por parte do candidato, do governante ou das forças políticas que o apoiam, alegações de que não faz sentido, em uma sociedade tradicionalmente cristã (ou hindu, ou islâmica, ou judaica), que o Estado seja laico?

28 – O candidato ou o governante se apresenta – e assim é visto pelas forças políticas que o apoiam – como escolhido ou guiado por deus para cumprir uma missão redentora? Apresenta-se como defensor da civilização contra algum inimigo universal que quer destruir os seus valores e instituições – a família, a religião, a pátria ou a nação (conferindo-lhe o status de entidade acima de tudo e colocando acima de todos um deus capaz de intervir na história ou na política) contra a qual haveria uma conspiração?

A lista acima, ainda que não exaustiva, já é capaz de captar ameaças ao processo de democratização por parte de candidatos ou governantes, alinhados, sobretudo, a forças políticas populistas-autoritárias ora em ascensão no mundo e no Brasil.

Agentes democráticos são pessoas capazes de fazer essas perguntas para perceber os padrões autocráticos associados ao comportamento político de líderes e militantes de forças políticas perigosas para a democracia.

Quando dizemos que há déficit de democratas (de agentes capazes de fazer esse desvelamento e de tomar providências para impedir que os ovos da serpente sejam chocados) não estamos nos referindo aos eleitores ou filiados de partidos que se dizem democráticos e nem mesmo às pessoas que, quando perguntadas, respondem que preferem a democracia a outros regimes.

Estamos falando de agentes democráticos ativos, fermentadores do processo de formação da opinião pública. Ou seja, agentes que conseguem, com sua atuação, que um público mais amplo perceba o perigo – não toda a população, por certo, mas aquela sua parte que pode ser ativada para impedir que uma alternativa autocrática se construa e se estabeleça. Foram agentes democráticos que, no Brasil do final dos anos 70 e início dos anos 80, conseguiram fermentar uma opinião pública (que não é a mesma coisa que a soma das opiniões privadas dos cidadãos) contrária à ditadura militar. Essa parcela fecundada ou catalisada por razões e emoções compatíveis com a democracia não precisa ser maioria numérica: basta que sua resultante seja pública (quer dizer, composta por emergência, pelo entrechoque de miríades de opiniões que se polinizam mutuamente a partir da interação).

Claro que esses agentes democráticos não são indivíduos iluminados pelo conhecimento. São pessoas que participam de conversações democráticas recorrentes e, portanto, são nodos de redes que se articulam na sociedade. Portanto, são agentes de uma cultura que, como toda cultura, reproduz, de modo “não-natural”, certo tipo de comportamento. Para tanto, estão conectados a clusters de, digamos, “pegajosidade antropológica” fortes o suficientes para que seus membros se reconheçam e se reforcem mutuamente por meio de múltiplos laços de feedback positivo. Se a presença desses clusters é insuficiente para produzir tal efeito – em todo lugar: nas mídias tradicionais e sociais, nos partidos e sindicatos, nos parlamentos, nos tribunais e no ministério público, nos órgãos de governo, nas organizações da sociedade civil, nas empresas, nas famílias e grupos de amigos, nas comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem e de projeto – para influir no processo de formação da opinião pública, então dizemos que há déficit de democratas. Por isso, talvez, Ralf Dahrendorf tenha constatado, em meados dos anos 1990, que “não há democracia sem democratas”.

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