Depois de algumas décadas tratando do assunto cheguei à conclusão de que, para aprender democracia, é importante ler os principais clássicos (Althusius, Spinoza, Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson e os Federalistas, Paine, von Humboldt, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper, Arendt, Berlin, Havel, Lefort, Bobbio, Castoriadis, Maturana, Rawls, Dahrendorf, Sen, Dahl, Rancière etc.). E que também é necessário, para ficar atualizado, ler artigos nas revistas especializadas (como o Journal of Democracy), e se manter em dia com os relatórios anuais dos principais centros que monitoram a democracia no mundo (Freedom House, The Economist Intelligence Unit, V-Dem etc.).
Tudo isso é muito útil, por certo, mas como aprender democracia é desaprender autocracia o fundamental é aprender a reconhecer padrões autocráticos de comportamento onde quer que eles se manifestem. Por isso é fundamental estudar as distopias – as ficcionais (como o Nós de Zamyatin, o 1984 de Orwell, o Duna de Herbert, o Star Wars: Manual do Império de Wallace e até O conto da aia de Atwood) e as reais, quer dizer, as ditaduras mais tenebrosas que surgiram na história (a URSS sob Stalin, a China de Mao, a Alemanha de Hitler, o Camboja de Pol Pot, a Coreia do Norte sob a dinastia Kim) – porque é nesses lugares imaginários ou concretos que os padrões autocráticos aparecem em estado puro (ou quase).
Depois será possível percebê-los quando – e no exato momento em que – eles se manifestam na nossa vida política cotidiana e saber o que fazer para desconstituí-los.
Agentes políticos democráticos são capazes de reconhecer padrões autocráticos imediatamente e tomar providências para evitar que a democracia seja ferida. Sem isso pode-se dizer que é praticamente inútil a aprendizagem da democracia.
Temos agora um caso concreto para mostrar que aprender democracia é desaprender autocracia, ou seja, ser capaz de reconhecer padrões autocráticos onde quer que eles se manifestem ou permaneçam escondidos. Pessoas que têm dificuldades de perceber e identificar esses padrões não veem o perigo a que a humanidade está exposta neste momento.
A reeleição de Trump, por exemplo, significará a vitória do que há de mais tenebroso no mundo: os programas patriarcais que vêm se replicando há milênios na chamada civilização por meio da guerra contra o diferente, transformando diferenças em separações. O objetivo desses programas é instalar um estado de guerra permanente nas sociedades.
Nos Estados Unidos e, mutatis mutandis, no Brasil e em outros países, pessoas carregadas de matrizes da cultura patriarcal não domesticadas pela democracia frequentavam clusters pequenos e meio isolados (com poucos atalhos) que foram se conectando por meio das mídias sociais (1), mas que só ganharam expressão política com a emergência do populismo-autoritário. De repente, tudo isso coalesceu.
Quem são? Numa lista não exaustiva podemos citar:
Supremacistas brancos,
Neonazistas (e neofacistas),
Antifeministas e homofóbicos,
Fundamentalistas neopentecostais (tipo dispensacionalistas),
Monarquistas tradicionalistas e hierarcas ocultistas,
Ultranacionalistas (antiglobalização e anti-imigração),
Conspiracionistas (tipos QAnon, movimentos contra a Nova Ordem Mundial)
Militantes anti-ciência (terraplanistas, anti-vax, negacionistas da pandemia e das mudanças climáticas),
Cruzados da limpeza: étnica ou nacional (vertentes radicalizadas do ultranacionalismo), ética (moralismo punitivista restauracionista), ou religiosa (fundamentalistas evangélicos que pregam o fim do Estado laico),
Armamentistas (tipo NRA).
Todos esses – e vários outros não citados acima – acabaram sendo liderados por populistas-autoritários (i-liberais e majoritaristas) como Trump (via Bannon) e, no Brasil, Bolsonaro (via Olavo).
Havia uma base para a crescente homogeneização das narrativas e das posições em todas essas capsulas do tempo onde estavam guardadas matrizes da cultura patriarcal. Mas foi um fenômeno de rede, paradoxalmente contra a emergência da sociedade-em-rede.
A exploração que inspirou este artigo começou com algumas perguntas: por que tanta gente diferente, em vários lugares do mundo, resistem às medidas cautelares de saúde pública adotadas diante da pandemia do novo coronavírus (tipo distanciamento social, uso de máscaras e vacinas)? Não poderiam, pelo menos alguns, ser de extrema-direita e, mesmo assim, acharem que vale a pena retardar o avanço da infecção? Como é possível que as respostas de gente que convive em bolhas tão díspares sejam praticamente as mesmas, nos Estados Unidos, no Brasil, na Europa e até na Índia?
A homogeneização das respostas tem uma dinâmica epidemiológica (as pessoas são infectadas por ideias-implante). Talvez não seja um conteúdo que está se espalhando e sim um programa…
Pois bem (ou mal). Toda essa lama depositada no fundo do poço da cultura patriarcal, hierárquica e guerreira, permanecerá turvando a água e ganhará alento para continuar espalhando inimizade no mundo se Donald Trump foi reeleito (2).
(1) Neste artigo estou, em parte, expandindo uma hipótese do Nilton Lessa, numa conversa na trigésima-terceira Quarentena da Democracia (01/11/2020): uma reunião dominical pelo zoom, de pessoas de vários países envolvidas com o projeto Casas da Democracia, que começou a acontecer com o isolamento social no Brasil, em março de 2020.
(2) Vale a pena reler o artigo que escrevi em 2016, quando Trump foi eleito: Boçal.