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Por que João Dória tem só 2%?

Publiquei ontem a tarde, no Facebook e no Twitter, uma pergunta-provocação:

“Estamos aguardando que os especialistas (marqueteiros, cientistas políticos, palpiteiros) nos expliquem a rejeição astronômica de João Dória. Seu governo foi péssimo? Não. Prejudicou (mais do que outros) os pobres? Não. Foi pego cometendo corrupção? Não. Então, qual a razão?”

No Facebook recebi 204 respostas. No Twitter 235. Até às 19h30 de ontem 08/04/2022. Hoje esses números devem ter dobrado, mas ainda não contei.

Meu amigo Willame Leal, tem uma hipótese interessante. Segundo ele, a política está tribalizada. Dória não tem tribo nenhuma. Dentre todas as outras tentativas de explicação que recebi (a maioria das quais, não por acaso, com ataques ao candidato), essa é a que faz mais sentido.

Will me disse o seguinte (no Messenger):

“Dória, Tebet, Jereissati, Hartung… Todas são pessoas que não têm uma massa social por trás. Não há os dorianas, tebetianos, jereissatianos, hartunguianos floodando as timelines do Facebook e Twitter os defendendo.

É mais um sinal dos tempos do que uma qualidade ou defeito desses nomes. Pelo menos parte da explicação passa pela extrema tribalização da política.

Não que não houvesse algo assim antes, mas estava restrito às torcidas. Com o esfacelamento da esfera pública, esse fenômeno espraiou.

Nos EUA tá parecido. Pelo menos, nos próximos anos, nunca que um/a presidente democrata, por exemplo, terá taxas de aprovação acima dos 45%, por melhor que seja. Parte do eleitorado de lá não o aprovará simplemente pelo fato dele/a não ser trumpista”.

Sim, no momento atual, não há a tribo dos bidenistas. Assim, o Willame parece estar certo. Nada do que Biden faça, nem mesmo descobrir a cura do câncer ou inventar uma formula mágica para conter o aquecimento global, adiantará. Mutatis mutandis, o mesmo vale para Doria. Todo seu esforço na aquisição de vacinas e na adoção de medidas sanitárias (distanciamento social e máscaras), acabou virando-se contra ele. Porque não havia quem o defendesse, quem interpretasse e reinterpretasse continuamente o significado do que fez, enquanto estava fazendo. Havia, entretanto, pelo contrário, quem sistematicamente reinterpretasse o que ele fez atribuindo a tudo um caráter negativo.

Lula e Bolsonaro têm suas tribos. Eles sabem que, sem essas tribos, perdem completamente tração, muque de campanha, sistemas de defesa contra cancelamentos e contra swarm attacks. No momento em que perderem suas tribos, viram um Dória. Ou um Temer.

Ciro e Moro têm lá suas tribos. Por isso chegam a patamares de intenção de voto próximos dos dois dígitos. Mas como suas tribos são muito pequenas e o cirismo e o lavajatismo concorrem, cada qual, em campos já dominados por grandes tribos, à esquerda e à direita (ou extrema-direita), desse patamar não passam.

A pergunta título deste artigo não é trivial. Não pode ser respondida com “explicações” como a calça apertada, a camisa polo e o sapatênis, o jeito de riquinho da elite paulista, a falta de empatia com os pobres, a soberba, o exagero no marketing (errado), a quebra da promessa de não abandonar o mandato de prefeito para concorrer ao governo, a traição a Alckmin e a luta interna dentro do PSDB, o bolsodória e a traição a Bolsonaro et coetera. Procedentes em alguns casos e, em outros, não, essas respostas já são, em grande parte, alegações pré-fabricadas, usadas nos ataques organizados que Doria recebeu das hostes lulopetistas e bolsonaristas.

Claro que Doria foi vítima desses ataques organizados. Assim como ocorreu com Temer (sim, os diversos Fora Temer marcaram o sucessor constitucional de Dilma com o signo da traição, criando um invólucro que impediu a visão de qualquer aspecto positivo de seu governo), Dória foi escolhido como alvo principal da rejeição universal, alcançando a impressionante marca de 63% entre março e abril de 2022.

Claro que as duas joias mais cobiçadas da coroa são a presidência da república e o governo de São Paulo. Mas essa é uma explicação eleitoral tradicional que não chega à raiz do problema. Não dá conta de explicar por que Doria está empatado com André Janones, um falso caminhoneiro, aventureiro das mídias sociais sem realizações políticas, praticamente desconhecido no estado e no país.

Para entender o fenômeno é necessário investigar por que esses ataques (partidos originalmente da militância lulopetista, igualmente ao caso de Temer) “colam” com tanta facilidade em Dória. Em outras palavras, por que Dória é tão vulnerável?

A resposta que faz mais sentido é aquela que leva em conta uma configuração particularíssima da rede que se conformou – ou se deformou. A deformação do campo interativo que explica a dominância persistente de Lula no imaginário político do século 21 também explica a alocação de Dória na vala profunda dos caídos em desgraça na percepção da população. Ou seja, o que explica a aprovação, também explica a rejeição. Em termos de rede é o mesmo fenômeno.

Claro que a rede está perturbada. Para causar tal perturbação é necessária a ação de um número suficiente de agentes. Ou, para voltar à hipótese inicial do Willame Leal, uma tribo aguerrida – que Dória não tem.

Acabou-se o tempo em que se conquistava simpatias eleitorais a partir da demonstração de realizações político-administrativas. Não é mais um concurso de feitos, um festival de talentos, uma feira de exposições de quem fez mais ou melhor ou de quem construiu mais. Agora é uma guerra em que vence quem for capaz de destruir mais. E nada, nada em política é capaz de destruir tanto como o populismo.

Meu objetivo com a pergunta era investigar como o processo de formação da opinião pública foi falsificado. Parto da hipótese de que, pelo menos no Brasil, isso ocorre em razão da polarização, não entre dois extremismos e sim entre dois populismos. Sim, ao contrário do que diz um influente neoconvertido ao lulopetismo, não é preciso dois extremismos para instalar uma polarização. Basta dois populismos – ou até um, desde que seja capaz de deformar o campo interativo, fazendo os agentes escorrerem por creodos, valas já sulcadas no espaço-tempo dos fluxos.

Do ponto de vista de rede a polarização é a existência de centros de alta gravitatem que deformam o campo social de sorte a selecionar previamente (ex ante à interação) caminhos, inviabilizando que outros emaranhados se formem. Mas a existência de apenas um centro com tais características é capaz também de polarizar (monopolarização), afetando o comportamento dos outros agentes do sistema.

Não há populismo sem tribo. Pouca gente presta atenção a essa característica do populismo, fixando-se mais no líder carismático. Sim, o Duce é necessário. Mas não existe Duce sem tribo.

Por isso Lula e Bolsonaro se preocupam tanto em agradar as suas militâncias, em muitos casos causando a si mesmos prejuízos eleitorais. Sim, o voto é importante, mas ele não substitui a tribo. Com muito ou pouco voto, o lulopetismo e o bolsonarismo continuarão destruindo. É a sua forma de construção.

E é o que os define como forças políticas populistas. Sim, os populismos contemporâneos – tanto o neopopulismo dito de esquerda, quando o populismo-autoritário de extrema-direita – têm pouco a ver com o velho populismo caracterizado pela demagogia, pelo assistencialismo, pelo clientelismo e pela irresponsabilidade fiscal. São alternativas guerreiras.

A despeito de todos os seus defeitos e dos seus muitos erros, que o tornaram extremamente vulnerável, os 2% de Dória são o resultado da guerra contra ele, movida em duas frentes, pelos populismos lulopetista e bolsonarista.

A Via Democrática

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