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A dominância persistente de Lula no imaginário político do século 21

Como se explica a dominância persistente de Lula no imaginário político do século 21?

É um fenômeno. Acontece. Mas não totalmente por acaso. Quer dizer, não acontece se não houver uma configuração particular do ambiente social e esforços voluntários de uma força política organizada nesse sentido.

Alguns fatores poderiam explicar o fenômeno Lula: seu carisma como líder populista (desde 1979); a organização do petismo como lulopetismo – um partido com líder supremo, único e eterno (desde 1980); a vacilação, a leniência e a conivência dos tucanos (desde 2003 – e, talvez, antes, bem antes); a ascensão do morolavajatismo e o parcialismo reacionário de Moro (a partir de 2014); a ascensão do bolsonarismo como movimento autoritário (a partir de 2015) e o desastre do governo Bolsonaro (de 2019 aos nossos dias). Claro que além dos fatores mencionados há um fator pouco percebido, mas talvez o mais relevante de todos: o nosso acentuado deficit de democratas liberais. Por falta de compreensão da democracia, tanto acadêmicos, quanto analistas e jornalistas políticos, em grande parte, nunca entenderam o caráter de Lula e a natureza do PT, mesmo tendo 40 anos para observá-los.

Examinemos, neste primeiro artigo (talvez nem haja um segundo), os dois primeiros desses fatores.

O LÍDER POPULISTA

Lula é um líder populista, nos sentidos antigo (Perón, Getúlio) e moderno do termo (um neopopulista de esquerda ou “socialista do século 21” – como dizia o teórico da autocracia disfarçado de teórico da democracia chamado Boaventura de Sousa Santos – tipo Chávez, Evo, Correa).

Os populismos requerem monoliderança. Não existe líder populista sem altos índices de popularidade. Para a democracia, entretanto, isso – por si só – não lhe confere legitimidade. Do contrário os maiores ditadores da história, muitos deles notáveis pelos altíssimos índices de aprovação popular, não teriam sido também os maiores malfeitores da humanidade.

Sim, qualquer líder populista com alta-gravitatem, capaz de mesmerizar as massas, terá um alto número de intenções de votos nas pesquisas e de votos nas urnas. Por isso é tão difícil remover populistas do governo apenas por processos eleitorais. Eles dominam a tecnologia eleitoral a tal ponto, transformando-a em guerra, que seria necessário constituir forças políticas de combate preparadas para removê-los (via de regra também populistas). O que leva necessariamente à polarização.

A polarização erige e alimenta o líder populista. A carreira de Lula foi, toda ela, construída a partir da polarização, inicialmente com a ditadura militar, em seguida com o tucanato que disputava (o que ele achava que era) a mesma clientela – embora não fosse exatamente a mesma, como se viu depois. Na maior parte da sua vida política, Lula demonizou o PSDB, tratando-o como neoliberal e representante das elites. Ele, Lula, era o único representante legítimo do verdadeiro povo (o famoso “true people” dos populistas) composto por aqueles que aceitam sua liderança. FHC – que nunca foi populista – tornou-se o inimigo principal do PT. Ainda hoje, tantos anos depois, se bobear, para o núcleo duro do PT, composto pelos velhos petistas-raiz ideológicos, o neoliberalismo tucano (sendo que o PSDB quase não existe mais e FHC esteja bem avançado nos anos) é mais odiado do que, por exemplo, Bolsonaro – e também considerado um perigo estratégico maior (não para o país, mas para as pretensões partidárias: sim, o PT é autocentrado e vê o mundo a partir das suas próprias conveniências).

É preciso entender o que é polarização. Não é apenas quando duas forças extremistas se confrontam. Há polarização toda vez que duas forças que baseiam sua política no “nós” contra “eles” entram em disputa. Por exemplo, quando dois populismos entram em luta, há polarização, ainda que um deles seja mais moderado do que o outro (como é Lula em relação a Bolsonaro – ambos populistas, ainda que de tipos diferentes: o primeiro é neopopulista e o segundo populista-autoritário).

E não só. Pode haver polarização mesmo que uma das forças beligerantes não seja populista. A polarização não precisa ser promovida publicamente pelos líderes que disputam o poder (os chefes mais espertos raramente fazem isto: preferem não aparecer conclamando à guerra).

Mas a polarização pode ser causada por um único polo, arrastando o outro (ou os outros) para uma espécie de degeneração da política como continuação da guerra por outros meios. É uma configuração do campo que caracteriza a polarização. Quando há polarização, os agentes escorrem por creodos, valas já sulcadas no espaço-tempo dos fluxos. E não precisam ser exatamente dois (bipolarização). Pode também haver polarização com mais de dois polos em disputa: basta que cada um deles (“nós”) considere os demais (“eles”) como ilegítimos ou menos legítimos. Do ponto de vista de rede a polarização é a existência de centros de alta gravitatem que deformam o campo social de sorte a selecionar previamente (ex ante à interação) caminhos, inviabilizando que outros emaranhados se formem. Mas a existência de apenas um centro com tais características é capaz também de polarizar (monopolarização), afetando o comportamento dos outros agentes do sistema.

Os que gostam de ser cavalgados por líderes, ainda que docemente, e os que querem fazer do líder um cavalo para os conduzir por um caminho em direção aos seus objetivos, deveriam prestar atenção a esse alerta. Líderes com alta-gravitatem abrem uma espécie de ferida no espaço-tempo dos fluxos. Não deveria ser normal esse tipo de fenômeno. Só acontece em campos sociais perturbados. Ou melhor, talvez: perturbam os campos sociais onde acontecem. Do ponto de vista da rede são uma espécie de doença. Sim, Lula – assim como qualquer outro líder, Duce, Condottiere ou Führer, com características semelhantes – é sintoma de uma doença da rede.

Uma vez consolidados por uma longa trajetória de tentativas e realizações, líderes populistas dificilmente serão apagados do imaginário popular. Mesmo quando fracassam várias vezes, líderes populistas perduram por longo tempo como espécies de entidades imárcidas, às vezes até fantasmagóricas. Ainda depois de mortos, vários líderes permanecem influenciando comportamentos políticos (inclusive de gente que se recusa a aceitar seu passamento). Enquanto as configurações de rede continuarem perturbadas – pelo mesmo tipo de perturbação que gerou o líder como uma espécie de afecção no campo interativo da convivência social – o líder continua presente no imaginário, mesmo que sofra sérios reveses, como perder disputas, ser deposto, ser preso etc. Não raro tudo isso retroalimenta a liderança.

A ORGANIZAÇÃO DO PETISMO COMO LULOPETISMO

Diz-se que Lula é maior do que o PT, mas em geral considerando-se que ele tem mais votos do que qualquer outro petista, mas Lula é maior do que o PT, antes de qualquer coisa, porque o petismo se organizou como lulopetismo.

Os marxistas (leninistas ou gramscistas ou teólogos da ideologia da libertação) que pensaram o caminho organizativo e a estratégia do PT não apostam em Lula em razão das suas ideias próprias (que não sabem bem quais são) ou do seu comportamento político (que muitas vezes até reprovam). Apostam nele por um motivo muito simples. Ele é a chance de o PT chegar ao governo e, estando no governo, tentar tomar o poder (ainda que aos poucos, homeopaticamente).

Apostam em Lula porque sabem que ele é o único que pode dar um curto-circuito no que consideram a política das elites, elegendo-se com um discurso democrático formal para, depois, abrir caminho para a implantação da estratégia neopopulista de conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido, para se delongar no governo por tempo suficiente e introduzir alterações no DNA da democracia, enfreando o processo de democratização para que a democracia eleitoral não consiga se converter em uma democracia liberal. É para isso que Lula serve, não para elaborar planos de governo, desenhar estratégias que não sejam eleitorais; por exemplo, para formular políticas públicas e pensar a política econômica, todo mundo concorda que ele não serve. Apostam em Lula porque ele é populista e porque ele é estatista. Apostam em Lula porque sabem que ele tem uma visão pedestre da democracia, majoritarista e i-liberal.

Como na saga Highlander, “só pode haver um”. Na sua trajetória sindical Lula aprendeu a formar patotas, manobrar para ficar em evidência, dar pequenos e grandes golpes nos próprios companheiros e, sobretudo, evitar as sombras, ou seja, ser sombreado por alguém. É por isso que nenhuma liderança jamais cresceu ou crescerá perto de Lula: ele dá ou dará um jeito de eliminar o mal pela raiz. Foi assim com Olívio, foi assim com Suplicy, foi assim com Erundina, foi assim com Tarso Genro, foi assim, até, com o inconsistente Mercadante. Só não foi assim com Haddah porque esse prestou-lhe continuada vassalagem e porque, estando preso, Lula precisava mesmo de alguém que o representasse ou mantivesse o petismo, ou melhor, o lulopetismo, vivo. Aliás, foi exatamente por isso que Lula escolheu Dilma para sucedê-lo. Seria, a seu ver, alguém que não ofereceria perigo de se projetar demais por suas próprias luzes (embora ele, Lula, tenha se enganado e se surpreendido com a resistência de Dilma a ceder-lhe a candidatura de 2014).

Lula disputou e vai disputar muitas reeleições. Disputou pela primeira vez em 2006 e venceu. Não disputou em 2014 porque Dilma bateu o pé. Não disputou em 2018 porque foi condenado e estava preso. Disputará a segunda vez em 2022. Vencendo ou não disputará a terceira vez em 2026. Se tivesse idade disputaria uma quarta e uma quinta vezes em 2030 ou 2034 ou 2038… É a profissão dele. Ou melhor, é a via neopopulista sendo percorrida pelo líder. Lula é um democrata eleitoral populista. Por certo, existem democratas eleitorais que não são populistas. Não é o caso de Lula, que não é um democrata liberal e sim, pelo contrário, i-liberal (estatista) e majoritarista.

Este artigo talvez continue.

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