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Liberdade para ser livre por Hannah Arendt

Liberdade para ser livre: condições e significado da revolução

Hannah Arendt

Palestra datada de 1966-7, publicada originalmente sob o título “‘The Freedom to Be Free’: The Conditions and Meaning of Revolution” (1).

Tradução de Pedro Duarte.

Receio que meu assunto hoje seja embaraçosamente atual. Revoluções se tornaram acontecimentos cotidianos desde que, com a falência do imperialismo, muitos povos se ergueram “para assumir, entre as potências da Terra, a posição separada e igual a que as leis da natureza e a natureza de Deus lhes dão direito”. Assim como o resultado mais duradouro da expansão imperialista foi a exportação da ideia do Estado-nação para os quatro cantos da Terra, também o fim do imperialismo, sob a pressão do nacionalismo, levou à disseminação da ideia de revolução por todo o globo. Todas essas revoluções, não importa quão violentamente antiocidentais sejam suas retóricas, permanecem sob o signo das tradicionais revoluções ocidentais. O atual estado das coisas foi precedido pela série de revoluções que ocorreram após a Primeira Guerra Mundial na própria Europa. Desde então, e de forma mais acentuada depois da Segunda Grande Guerra Mundial, nada parece tão certo quanto uma mudança revolucionária da forma de governo – o que é distinto de uma alteração da administração – seguir-se à derrota em uma guerra entre as potências restantes, se não for o caso de um total aniquilamento. Mas é relevante notar que, mesmo antes de os desenvolvimentos tecnológicos fazerem das guerras entre as grandes potências literalmente uma luta de vida ou morte, portanto autodestrutivas, elas já tinham se tornado um assunto de vida ou morte, falando em termos políticos. Isso não era de modo algum uma coisa óbvia, mas significa que os protagonistas das guerras nacionais tinham começado a agir como se estivessem envolvidos em guerras civis. E as pequenas guerras dos últimos vinte anos – Coreia, Argélia, Vietnã – foram claramente guerras civis, nas quais grandes potências se envolveram: seja porque a revolução ameaçava seu domínio, seja porque criara um perigoso vácuo político. Nesses casos, não foi mais a guerra que provocou a revolução; a iniciativa mudou da guerra para a revolução, que em alguns casos, embora certamente não em todos, foi seguida de intervenção militar. Era como se, de repente, estivéssemos de volta ao século XVIII, quando a Revolução Americana foi seguida por uma guerra contra a Inglaterra, e a Revolução Francesa, por uma guerra contra as forças da realeza aliadas da Europa.

E, mais uma vez, a despeito das circunstâncias extremamente diferentes – tecnológicas e outras –, as intervenções militares parecem relativamente impotentes diante do fenômeno. Um grande número de revoluções durante os últimos duzentos anos fracassou, mas relativamente poucas foram eliminadas pela superioridade na aplicação de meios violentos. De outra parte, as intervenções militares, mesmo quando foram bem-sucedidas, têm constantemente se mostrado ineficientes em restaurar a estabilidade e preencher o vácuo de poder. Mesmo a vitória parece incapaz de substituir o caos pela estabilidade, a corrupção pela honestidade, a decadência e a desintegração pela autoridade e confiança no governo. A restauração, consequência de uma revolução interrompida, em geral não fornece muito mais do que uma cobertura fina e obviamente provisória sob a qual os processos de desintegração continuam sem controle. Mas há, por outro lado, um grande potencial de estabilidade futura inerente aos novos corpos políticos conscientemente formados, dos quais a república americana é o melhor exemplo; o problema principal, claro, é a raridade de revoluções bem-sucedidas. Contudo, na atual configuração do mundo, em que, bem ou mal, as revoluções se tornaram os eventos mais significativos e frequentes – e talvez continue sendo assim por décadas ainda –, seria não apenas mais sábio, como também mais relevante se, em vez de nos vangloriarmos de sermos a maior potência da Terra, afirmássemos que desfrutamos de uma extraordinária estabilidade desde a fundação de nossa república, e que essa estabilidade foi o desdobramento direto da revolução. Pois, já que a disputa entre as grandes potências não pode mais ser decidida pela guerra, ela pode muito bem ser decidida, a longo prazo, por qual lado compreende melhor o que são as revoluções e o que está em jogo nelas.

Creio que não é segredo para ninguém, pelo menos desde o incidente da Baía dos Porcos (2), que a política externa deste país se mostrou pouco experiente, até mesmo mal informada, no julgamento de situações revolucionárias e na compreensão do impulso dos movimentos revolucionários. Embora o incidente da Baía dos Porcos seja com frequência atribuído a informações imprecisas e a defeitos nos serviços secretos, na verdade a falha é muito mais profunda. Ela residia na incompreensão do que significa quando pessoas atingidas pela pobreza em um país atrasado, no qual a corrupção atingiu o nível da podridão, de repente são libertadas, não de sua pobreza, mas da obscuridade e, logo, da incompreensibilidade de sua miséria; do que significa quando escutam pela primeira vez sua condição sendo discutida abertamente e se veem convidadas a participar nessa discussão; e do que significa quando são levadas à sua capital, que elas nunca tinham visto antes, e lhes dizem: essas ruas, esses prédios e essas praças, tudo isso é seu, suas posses e portanto seu orgulho. Isso, ou algo da mesma natureza, aconteceu pela primeira vez durante a Revolução Francesa. Curiosamente, foi um velho homem na Prússia Oriental – que jamais abandonou sua cidade natal em Königsberg, um filósofo e amante da liberdade pouco famoso por pensamentos rebeldes, Immanuel Kant – quem compreendeu isso de imediato. Ele afirmou que “tal fenômeno na história humana nunca será esquecido”. E de fato não foi – ao contrário, desempenhou um papel majoritário na história do mundo desde que ocorreu. E, embora muitas revoluções tenham terminado em tirania, também tem sido sempre lembrado que, nos termos de Condorcet, “a palavra ‘revolucionário’ pode ser aplicada apenas a revoluções cujo objetivo é a liberdade”.

A palavra “revolução”, como qualquer outro termo de nosso vocabulário político, pode ser utilizada em um sentido genérico, sem levarmos em conta a sua origem e o momento temporal em que foi aplicada pela primeira vez a um fenômeno político específico. A suposição de tal utilização é que, não importa quando e por que o termo apareceu pela primeira vez, o fenômeno ao qual ele se refere é coetâneo da memória humana. A tentação de utilizar a palavra em termos genéricos é especialmente forte quando falamos de “guerras e revoluções” em conjunto, pois as guerras, de fato, são tão antigas quanto a história registrada da humanidade. Talvez seja difícil utilizar a palavra “guerra” sem ser em seu sentido genérico, mesmo porque sua primeira aparição não pode ser datada no tempo ou localizada no espaço, mas inexiste tal desculpa para a utilização indiscriminada do termo revolução. A palavra revolução era pouco proeminente no vocabulário da prática ou do pensamento políticos antes das duas grandes revoluções no fim do século XVIII e do sentido específico que ali adquiriu. Quando o termo aparece no século XVII, por exemplo, ele se atém estritamente a seu significado astronômico original, que significava o movimento eterno, irresistível e sempre recorrente dos corpos celestes; seu uso político era metafórico, descrevendo um movimento de regresso a algum ponto preestabelecido, e portanto um movimento, uma oscilação, de volta a uma ordem preordenada. A palavra não foi utilizada pela primeira vez quando o que estamos acostumados a chamar de revolução irrompeu na Inglaterra e Cromwell ascendeu como uma espécie de ditador, mas ao contrário, em 1660, por ocasião do restabelecimento da monarquia, depois da derrubada do Parlamento Coto (3). Contudo, mesmo a Revolução Gloriosa – o evento por meio do qual, de forma um tanto paradoxal, o termo encontrou seu lugar na linguagem histórico-política – não foi concebida como uma revolução, e sim como a restauração do poder monárquico às suas antigas retidão e glória. O real significado da revolução anterior aos eventos do fim do século XVIII talvez esteja indicado com mais clareza na inscrição sobre o Grande Selo da Inglaterra, de 1651, segundo a qual a primeira transformação da monarquia em uma república significava: “liberdade pela graça de Deus restaurada”.

O fato de que a palavra revolução originalmente significava restauração é mais do que uma estranheza semântica. Mesmo as revoluções do século XVIII não podem ser compreendidas sem que se perceba que elas irromperam primeiramente quando a restauração era seu objetivo; e o conteúdo dessa restauração era a liberdade. Na América, segundo as palavras de John Adams, os homens da revolução tinham sido “chamados sem expectativa e compelidos sem inclinação prévia”; o mesmo é verdade para a França, onde, segundo as palavras de Tocqueville, “podia-se acreditar que o objetivo da revolução por vir era a restauração do antigo regime, ao invés de sua derrubada”. E, no curso de ambas as revoluções, quando os atores se deram conta de que estavam embarcando em uma empreitada inteiramente nova, em vez de retornar para qualquer coisa que a precedera, quando a palavra “revolução” consequentemente foi adquirindo seu novo significado, foi Thomas Paine, entre todas as pessoas, quem, ainda fiel ao espírito da época passada, propôs com toda seriedade chamar as Revoluções Americana e Francesa de “contrarrevoluções”. Ele queria salvar os eventos extraordinários da suspeita de que um início inteiramente novo havia sido feito e do ódio violento ao qual tais eventos estavam inevitavelmente ligados.

É provável que ignoremos o horror quase instintivo manifestado na mentalidade desses primeiros revolucionários diante do inteiramente novo. Em parte, isso se deve ao fato de estarmos muito familiarizados com a ansiedade dos cientistas e filósofos da era moderna por “coisas nunca antes vistas e pensamentos nunca antes pensados” (4).

E, em parte, porque nada no curso dessas revoluções é tão evidente e notável quanto o destaque enfático da novidade, repetido inúmeras vezes tanto por atores quanto espectadores em sua insistência de que nada comparável em relevância e grandeza jamais acontecera antes. O ponto crucial e difícil é que o enorme pathos da nova era, o novus ordo seclorum, que ainda está inscrito em nossas notas de dólar, veio à tona apenas depois que os atores, contra sua vontade, atingiram um ponto sem retorno.

Assim, o que de fato aconteceu no fim do século XVIII foi que uma tentativa de restauração e recuperação de antigos direitos e privilégios resultou exatamente em seu oposto: um progressivo desenvolvimento e a abertura de um futuro que desafiava todas as demais tentativas de agir ou pensar em termos de um movimento circular ou giratório. E, enquanto a palavra “revolução” foi radicalmente transformada no processo revolucionário, alguma coisa similar, porém infinitamente mais complexa, aconteceu com a palavra “liberdade”. Na medida em que isso significava apenas liberdade “pela graça de Deus restaurada”, estavam em questão aqueles direitos e liberdades que hoje associamos ao governo constitucional e que são devidamente chamados de direitos civis. O que não se incluiu neles foi o direito político de participar nos assuntos públicos. Nenhum desses outros direitos, mesmo o de ser representado para finalidades tributárias, era, nem na teoria nem na prática, o resultado da revolução. Não “vida, liberdade e propriedade”, mas sim a reivindicação de que seriam direitos inalienáveis de todas as criaturas humanas – sem importar onde viviam ou que tipo de governo possuíam – é que era revolucionária. E mesmo nessa nova e revolucionária ampliação para toda a humanidade, a liberdade não significava mais do que a libertação de limitações injustificáveis, ou seja, alguma coisa essencialmente negativa. Liberdades no sentido dos direitos civis resultam da libertação, mas não são de modo algum o conteúdo real da liberdade, cuja essência é a admissão no âmbito público e a participação nos assuntos públicos. Se as revoluções aspirassem apenas a garantir os direitos civis, teria sido suficiente a libertação de regimes que tinham exacerbado seus poderes e infringido direitos bem estabelecidos. E é verdade que as revoluções do século XVIII começaram reivindicando esses antigos direitos. A complexidade aparece quando a revolução se refere tanto à libertação quanto à liberdade; e, na medida em que a libertação é realmente uma condição da liberdade – embora a liberdade não seja, de modo algum, um resultado necessário da libertação –, é difícil ver e dizer onde o desejo por libertação, de ser livre da opressão, termina e começa o desejo por liberdade, por viver uma vida política. O importante é que a libertação da opressão poderia muito bem ser realizada sob um governo monárquico, embora não tirânico, enquanto a liberdade do modo de vida político requeria uma forma de governo nova ou, antes, redescoberta. Exigia a constituição de uma república. Com efeito, nada é mais claramente corroborado pelos fatos do que a alegação retrospectiva de Thomas Jefferson “de que as disputas daquele dia foram disputas de princípio entre os defensores do governo republicano e aqueles do governo da realeza”. A equação de um governo republicano com liberdade e a convicção de que a monarquia é um governo criminoso adequado para escravos – embora tenha se tornado lugar-comum tão logo as revoluções começaram – estiveram completamente afastadas das mentes dos próprios revolucionários. Ainda assim, embora estivessem almejando uma nova liberdade, seria difícil sustentar que não tivessem uma noção prévia dela. Pelo contrário, foi uma paixão por essa nova liberdade política, embora ainda não equiparada a uma forma republicana de governo, que os inspirou e preparou para concretizar uma revolução sem saber plenamente o que estavam fazendo.

Por mais que tenha aberto seus portões às massas e aos oprimidos – les malheureux, les misérables, les damnés de la terre, como os conhecemos a partir da grande retórica da Revolução Francesa –, nenhuma revolução foi alguma vez iniciada por eles. E nenhuma revolução jamais foi resultado de conspirações, sociedades secretas ou partidos abertamente revolucionários. Falando em termos genéricos, nenhuma revolução é sequer possível onde a autoridade do corpo político está intacta, o que, sob condições modernas, significa uma sociedade na qual se pode confiar que as Forças Armadas obedecem às autoridades civis. Revoluções não são respostas necessárias, mas possíveis, à desagregação de um regime; não a causa, mas a consequência da derrocada da autoridade política. Onde quer que se tenha permitido que esses processos de desintegração se desenvolvessem sem controle, em geral por um período prolongado, as revoluções podem acontecer, sob a condição de existir um número suficiente do populacho preparado para um colapso do regime e disposto a assumir o poder.

Revoluções sempre parecem obter sucesso com surpreendente facilidade em seus estágios iniciais, e a razão é que aqueles que supostamente “fazem” a revolução não “tomam o poder”, mas antes o apanham onde foi deixado pelas ruas.

Se os homens das revoluções Americana e Francesa tinham alguma coisa em comum antes dos eventos que viriam a determinar suas vidas, moldar suas convicções e finalmente os distinguir, era um desejo ardente de participar nos assuntos públicos e um desgosto não menos ardente em relação à hipocrisia e à tolice da “boa sociedade” – aos quais se deve acrescentar um desprezo inquieto e mais ou menos franco pela mesquinharia dos assuntos meramente privados. No sentido da formação dessa mentalidade muito especial, John Adams estava inteiramente certo quando afirmou que “a revolução foi efetuada antes que a guerra começasse”, não por causa de um espírito especificamente revolucionário ou rebelde, mas porque os habitantes das colônias estavam “dispostos pela lei em corporações ou corpos políticos” com o “direito de se reunir […] nas sedes de seus próprios municípios, para lá deliberar sobre assuntos públicos”, pois foi de fato “nessas assembleias municipais ou distritais que os sentimentos do povo foram formados em primeiro lugar”. É claro que não existia na França nada comparável às instituições nas colônias, mas a mentalidade, ainda assim, era a mesma; o que Tocqueville chamou, na França, de “paixão” e “gosto” era, na América, a experiência patente desde os tempos mais antigos da colonização, na verdade desde que o Pacto do Mayflower (5) fora uma verdadeira escola de espírito público e liberdade pública. Antes das revoluções, esses homens nos dois lados do Atlântico eram chamados de hommes de lettres e é típico deles passarem seu tempo de lazer “vasculhando os arquivos da Antiguidade”, ou seja, voltando-se para a história romana, não porque estivessem romanticamente enamorados pelo passado como tal, mas com o propósito de recuperar as lições políticas, tanto espirituais quanto institucionais, que tinham sido perdidas ou em parte esquecidas durante os séculos de uma tradição estritamente cristã. “O mundo tem estado vazio desde os romanos, e está cheio apenas com sua memória, que é agora nossa única profecia de liberdade”, exclamou Saint- Just, assim como, antes dele, Thomas Paine previra que “aquilo que Atenas foi em miniatura, a América será em magnitude”.

Para compreender o papel da Antiguidade na história das revoluções, teríamos de recordar o entusiasmo pela “prudência antiga” com o qual Harrington e Milton saudaram a ditadura de Cromwell e como esse entusiasmo tinha sido revivido no século XVIII pelas Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência, de Montesquieu. Sem o exemplo clássico do que a política poderia ser e do que a participação nos assuntos públicos poderia significar para a felicidade humana, nenhum dos homens das revoluções possuiria a coragem para o que apareceria como uma ação sem precedentes. Falando em termos históricos, foi como se, de súbito, o ressurgimento renascentista da Antiguidade recebesse novo fôlego de vida, como se o fervor republicano das efêmeras cidades-Estado italianas, destinadas à ruína com o advento do Estado-nação, tivesse apenas permanecido adormecido, por assim dizer, para dar às nações da Europa o tempo de crescer sob a tutela de príncipes absolutos e déspotas esclarecidos. Os primeiros elementos de uma filosofia política que corresponde a essa noção de liberdade pública são enunciados pelos escritos de John Adams. Seu ponto de partida é a observação de que

“onde quer que homens, mulheres ou crianças se encontrem, sejam velhos ou novos, ricos ou pobres, elevados ou baixos […] ignorantes ou instruídos, repara-se que todo indivíduo é fortemente movido por um desejo de ser visto, ouvido, comentado, aprovado e respeitado pelas pessoas ao seu redor e de seu conhecimento.”

Adams viu sua virtude no “desejo de excelência em relação aos outros” e chamou seu vício de “ambição”, que “procura o poder como um meio de distinção”. E essas duas estão, de fato, dentre as principais virtudes e vícios do homem político. Pois a vontade de poder enquanto tal, independente de qualquer paixão por distinção (em que o poder não é um meio, mas um fim), é característica do tirano e não é mais sequer um vício político. É, antes, a qualidade que tende a destruir toda a vida política, seu vício não menos do que suas virtudes. É precisamente porque o tirano não tem mais o desejo de excelência e carece de toda paixão pela distinção que ele considera tão agradável dominar, excluindo-se, desse modo, da companhia dos outros; ao contrário, é o desejo de excelência que faz com que os homens amem a companhia de seus pares e os incitem ao âmbito público. Essa liberdade pública é uma realidade mundana tangível, criada pelos homens para que a desfrutem juntos em público – para serem vistos, ouvidos, conhecidos e lembrados por outros. E esse tipo de liberdade exige igualdade, é possível apenas entre pares. Falando em termos institucionais, é possível apenas em uma república, que não conhece súditos e, rigorosamente falando, nem governantes. Essa é a razão pela qual discussões sobre as formas de governo desempenharam um papel tão central no pensamento e na escrita dos primeiros revolucionários, em contraste nítido com as ideologias posteriores.

Sem dúvida, é óbvio e de grande importância que essa paixão pela liberdade, por si mesma, tenha despertado em homens com tempo livre e tenha sido cultivada por eles, por hommes de lettres que não tinham mestres e não estavam sempre atarefados ganhando a vida. Em outras palavras, eles gozavam dos privilégios dos cidadãos atenienses e romanos sem participarem nesses assuntos de Estado que tanto ocuparam os homens livres da Antiguidade. Desnecessário acrescentar que, onde os homens vivem em condições verdadeiramente miseráveis, essa paixão pela liberdade é desconhecida. E, se precisamos de provas adicionais da ausência de tais condições nas colônias, da “adorável igualdade” na América, onde, como disse Jefferson, “o indivíduo mais ostensivamente miserável” estava melhor do que 19 dos 20 milhões de habitantes da França, precisamos apenas lembrar que John Adams atribuiu esse amor pela liberdade a “pobres e ricos, elevados e baixos, ignorantes e instruídos”. Essa é a principal e talvez a única razão pela qual os princípios que inspiraram os homens das primeiras revoluções foram triunfalmente vitoriosos na América e fracassaram de maneira trágica na França. Visto com olhos americanos, um governo republicano na França era “tão antinatural, irracional e impraticável quanto seria governar com elefantes, leões, tigres, panteras, lobos e ursos no zoológico real de Versalhes” (John Adams). A razão pela qual, mesmo assim, a tentativa foi feita é que aqueles que a fizeram, les hommes de lettres, não eram tão diferentes de seus colegas americanos; foi apenas no curso da Revolução Francesa que eles aprenderam que estavam agindo sob circunstâncias radicalmente diferentes. As circunstâncias diferiam em aspectos políticos e sociais. Mesmo o governo do rei e do Parlamento na Inglaterra era um “governo moderado” em comparação com o absolutismo francês. Sob seus auspícios, a Inglaterra desenvolveu um regime de autogoverno intrincado e funcional, que precisava apenas da fundação explícita de uma república para confirmar sua existência. Ainda assim, essas diferenças políticas, embora bastante importantes, eram desprezíveis quando comparadas ao formidável obstáculo à constituição da liberdade inerente às condições sociais da Europa. Os homens das primeiras revoluções, embora soubessem muito bem que a libertação tinha de preceder a liberdade, ainda ignoravam o fato de que tal libertação significa mais que libertação política do poder absoluto e despótico; que estar livre para a liberdade significava, antes de mais nada, estar livre não apenas do medo, mas também da necessidade. E as condições da pobreza desesperada das massas do povo, aquelas que pela primeira vez irromperam abertamente quando tomaram as ruas de Paris, não podiam ser superadas pelos meios políticos; o forte poder coercitivo sob o qual trabalhavam não sucumbiu diante da investida da revolução, como aconteceu com o poder nobre do rei. A Revolução Americana teve a sorte de não ter que enfrentar esse obstáculo à liberdade e, de fato, deveu uma boa medida de seu sucesso à ausência da pobreza desesperada entre os homens livres e à invisibilidade dos escravos nas colônias do Novo Mundo. Mas é claro que havia pobreza e miséria na América, comparáveis às condições dos “trabalhadores pobres” europeus. Se, nas palavras de William Penn, “a América era o país do bom homem pobre” e permaneceu o sonho de uma terra prometida para a Europa empobrecida até o início do século XX, também é verdade que essa bondade dependia em grau considerável da miséria negra. Em meados do século XVIII, viviam mais ou menos 400 mil negros junto com aproximadamente 1,85 milhão de brancos na América, e, a despeito da ausência de informações estatísticas confiáveis, é possível duvidar que nessa época a porcentagem de completa indigência fosse mais alta nos países do Velho Mundo (embora ela fosse se tornar consideravelmente mais alta durante o século XIX). A diferença, então, era que a Revolução Americana – por causa da instituição da escravidão e da crença de que escravos pertenciam a uma “raça” diferente – desconsiderou a existência dos miseráveis e, com isso, a tarefa formidável de libertar aqueles que estavam constrangidos não tanto pela opressão política quanto pelas meras necessidades da vida. Les malheureux, os indigentes, que desempenharam um papel tão tremendo no curso da Revolução Francesa, que os identificou com le peuple, não existiam ou então permaneceram em completa obscuridade na América.

Uma das principais consequências da revolução na França foi, pela primeira vez na história, trazer le peuple para as ruas e torná-lo visível. Quando isso aconteceu, mostrou-se que não apenas a liberdade, mas a liberdade para ser livre, sempre tinha sido um privilégio de poucos (6). Da mesma forma, porém, a Revolução Americana permaneceu sem muita consequência para a compreensão histórica das revoluções, enquanto a Revolução Francesa, que terminou em um fracasso retumbante, determinou e ainda determina o que agora chamamos de tradição revolucionária.

O que aconteceu em Paris em 1789? Primeiro, a liberdade em relação ao medo é um privilégio do qual poucas pessoas gozaram, apenas em períodos relativamente curtos da história, mas a liberdade em relação à necessidade foi o grande privilégio que distinguiu uma porcentagem muito pequena da humanidade através dos séculos. O que tendemos a chamar de história documentada da humanidade é, em sua maior parte, a história desses poucos privilegiados. Apenas aqueles que conhecem a liberdade em relação à necessidade podem apreciar por completo o significado da liberdade em relação ao medo, e só aqueles que estão livres de ambos – necessidade e medo – têm condições de conceber uma paixão pela liberdade pública, de desenvolver em si próprios aquele goût pela liberté e o gosto particular pela égalité que a liberté traz consigo (7).

Em termos esquemáticos, pode-se dizer que cada revolução passa primeiro pelo estágio de libertação antes de alcançar a liberdade, o segundo e decisivo estágio da fundação de uma nova forma de governo e de um novo corpo político. No curso da Revolução Americana, o estágio da libertação significava libertação do limite político da tirania ou da monarquia, ou de qualquer palavra que se tenha usado. O primeiro estágio foi marcado pela violência, mas o segundo foi questão de deliberação, discussão e persuasão, em suma, de aplicar a “ciência política”, como os pais fundadores entendiam o termo. Mas, na França, alguma coisa completamente diversa aconteceu. O primeiro estágio da revolução é muito mais marcado pela desintegração do que pela violência, e, quando o segundo estágio foi alcançado e a Convenção Nacional declarou que a França era uma república, o poder já se deslocara para as ruas. Os homens que haviam se reunido em Paris para representar la nation, em vez de le peuple, cuja preocupação principal – fosse seu nome Mirabeau ou Robespierre, Danton ou Saint-Just – era o governo, a reforma da monarquia e depois a fundação da república, viram-se de súbito confrontados com outra tarefa de libertação, a saber, a libertação das pessoas da indigência: libertá-las para serem livres. Isso não era ainda o que tanto Marx quanto Tocqueville considerariam como o aspecto inteiramente novo da revolução de 1848, a substituição da alteração de governo pela tentativa de mudar a ordem da sociedade por meio da luta de classes. Só depois de fevereiro de 1848, depois “da primeira grande batalha […] entre as duas classes que dividem a sociedade”, Marx percebeu que a revolução agora significava “a derrubada da sociedade burguesa, enquanto antes significava a derrubada da forma do Estado”. A Revolução Francesa de 1789 foi o prelúdio disso, e embora tenha terminado em um lúgubre fracasso, permaneceu decisiva para todas as revoluções posteriores. Ela mostrou o que significava na prática a nova fórmula, a saber: todos os homens são criados iguais. E foi essa igualdade que Robespierre tinha em mente quando disse que a revolução afirma a grandeza do homem contra a mesquinhez dos grandes; assim como Hamilton, quando declarou que a revolução inocentava a honra da raça humana; e também Kant, ensinado por Rousseau e pela Revolução Francesa, quando concebeu uma nova dignidade do homem. O que quer que a Revolução Francesa tenha ou não alcançado – e ela não alcançou a igualdade humana –, ela libertou os pobres da obscuridade, da não visibilidade. O que parece irrevogável desde então é que aqueles que eram dedicados à liberdade jamais poderiam permanecer reconciliados com um estado de coisas no qual a liberdade em relação à necessidade – liberdade para ser livre – era um privilégio de poucos.

A propósito da constelação original dos revolucionários e das massas de pobres que eles acabaram por trazer à luz, deixem-me citar a descrição interpretativa feita por Lord Acton da marcha das mulheres a Versalhes, um dos mais destacados pontos de inflexão da Revolução Francesa. As manifestantes, ele afirmou,

“desempenharam o papel genuíno de mães cujos filhos estavam passando fome em lares miseráveis e, sendo assim, arcaram com motivações que não partilhavam nem entendiam (isto é, a preocupação com o governo) – o auxílio de uma ponta de diamante à qual nada podia resistir”.

O que le peuple, como os franceses entendiam, trouxe à revolução e que estava totalmente ausente do curso dos eventos na América foi a irresistibilidade de um movimento que o poder humano não era mais capaz de controlar. Essa experiência elementar de irresistibilidade – tão irresistível quanto os movimentos das estrelas – produziu um imaginário inteiramente novo que ainda hoje, de modo quase automático, associamos a nossos pensamentos sobre eventos revolucionários: quando Saint-Just exclamou, sob o impacto do que viu diante dos olhos, “Les malheurueux sont la puissance de la terre”, ele queria designar a grande “torrente revolucionária” (Desmoulins), em cujas rápidas ondas os atores foram levados e arrebatados, até que sua ressaca os tragou da superfície e eles pereceram com seus inimigos, os agentes da contrarrevolução; ou a corrente tempestuosa e poderosa em Robespierre, que foi cultivada pelos crimes da tirania, de um lado, e pelo progresso da liberdade, de outro, constantemente aumentada em rapidez e violência; ou o que espectadores relataram – um “fluxo majestoso de lava que não poupa nada e que ninguém pode conter”, um espetáculo que caíra sob o signo de Saturno, “a revolução devorando seus filhos” (Vergniaud). As palavras que estou citando aqui foram todas proferidas por homens profundamente envolvidos na Revolução Francesa e testemunham coisas presenciadas por eles, ou seja, não se tratava de algo que eles tinham feito ou propunham fazer de modo intencional. Isso foi o que aconteceu e ensinou aos homens uma lição que nem na esperança nem no medo jamais foi esquecida. A lição, que era tão simples quanto nova e inesperada, é que, como afirmou Saint-Just, “caso se deseje fundar uma república, primeiro se deve tirar o povo da condição de miséria que o corrompe. Não há virtudes políticas sem orgulho e ninguém pode se orgulhar quando está na indigência”.

Essa nova noção de liberdade, baseada na libertação da pobreza, mudou tanto o curso quanto o objetivo da revolução. Liberdade, agora, passou a significar antes de tudo “roupas, alimentos e a reprodução da espécie”, como os sans-culottes distinguiram conscientemente seus próprios direitos da linguagem esotérica e, para eles, sem sentido da proclamação dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em comparação com a urgência de suas demandas, todas as deliberações sobre a melhor forma de governo de repente pareciam irrelevantes e fúteis. “La République? La Monarchie? Je ne connais que la question sociale”, afirmou Robespierre. E Saint-Just, que no começo tinha o maior entusiasmo pelas “instituições republicanas”, acrescentaria que “a liberdade das pessoas está na vida privada. Deixe-se o governo ser apenas a força a proteger este estado de simplicidade contra a força em si mesma”. Ele não devia saber, mas esse era precisamente o credo de déspotas esclarecidos que sustentavam, como Charles I da Inglaterra em seu discurso no cadafalso, que “a libertação e a liberdade” das pessoas “consiste em ter um governo com leis pelas quais suas vidas e seus bens pudessem de fato ser seus; e isso não para ter participação no governo, o que não lhes pertenceria” (8). Se fosse verdade que o objetivo das revoluções era a felicidade das pessoas – le but de la Révolution est le bonheur du people –, como de súbito todos os participantes movidos pela miséria do povo concordavam, então de fato ele poderia ser proporcionado por um governo despótico suficientemente esclarecido, em vez de uma república.

A Revolução Francesa terminou em desastre e se tornou um ponto de inflexão na história mundial; a Revolução Americana foi um sucesso triunfante e permaneceu um assunto local: em parte, claro, porque as condições sociais no mundo em geral eram muito mais parecidas com as da França; e, em parte, porque a tão propalada tradição pragmática anglo-saxã impediu gerações subsequentes de americanos de pensar sobre sua revolução e conceituar sua experiência de modo adequado. Portanto, não é surpreendente que o despotismo – na verdade, o retorno à era do absolutismo esclarecido, que se anunciou claramente no curso da Revolução Francesa – tenha se tornado a regra para quase todas as revoluções subsequentes, ou ao menos para aquelas que não terminaram restaurando o status quo ante, e tenha até dominado a teoria revolucionária. Não preciso acompanhar esse desenvolvimento em detalhes; ele é bastante conhecido, sobretudo pela história do Partido Bolchevique e da Revolução Russa. Além disso, ele era previsível: no final do verão de 1918 – após a promulgação da constituição soviética, mas antes da primeira onda de terror provocada pela tentativa de assassinato de Lênin –, Rosa Luxemburgo, em uma carta privada, mais tarde publicada e hoje famosa, escreveu o seguinte:

“Abafando a vida política em todo o país […], a vida se estiola em qualquer instituição pública, torna-se uma vida aparente na qual a burocracia subsiste como o único elemento ativo. A vida pública adormece progressivamente, algumas dúzias de chefes, partidários de uma inesgotável energia e de um idealismo sem limites, dirigem e governam; entre eles, a direção é assegurada, na realidade, por uma dúzia de espíritos superiores, e a elite do operariado é convocada de tempos em tempos para reuniões, com o fim de aplaudir os discursos dos chefes e de votar unanimemente as resoluções propostas. […] Trata-se de uma ditadura, é verdade, não a ditadura do proletariado, mas a ditadura de um punhado de políticos.” (9)

Bem, ninguém pode negar que tenha acontecido dessa forma – exceto o regime totalitário de Stálin, pelo qual seria difícil responsabilizar seja Lênin, seja a tradição revolucionária. Mas o que talvez seja menos óbvio é que seria preciso mudar apenas umas poucas palavras para obter uma descrição perfeita dos males do absolutismo antes das revoluções.

Penso que uma comparação entre as duas primeiras revoluções, cujos inícios foram tão semelhantes e os fins tão tremendamente diferentes, demonstra de maneira clara não apenas que a vitória sobre a pobreza é um pré-requisito para a fundação da liberdade, mas também que a libertação da pobreza não pode ser tratada da mesma maneira que a libertação da opressão política. Pois, se a violência contra a violência leva à guerra, externa ou civil, a violência contra as condições sociais tem sempre levado ao terror. O terror, e não a mera violência, o terror liberado após se dissolver o antigo regime e se instalar o novo regime, é o que condena as revoluções à ruína, ou as deforma tão decisivamente que elas descambam para a tirania ou o despotismo.

Afirmei antes que o objetivo original das revoluções era a liberdade no sentido da abolição do governo particular e da admissão de todos no âmbito público, da participação na administração dos assuntos comuns a todos. O próprio governo teve sua mais legítima fonte não em um impulso para o poder, mas no desejo humano de emancipar a humanidade das necessidades da vida, cuja realização exigia violência, os meios de forçar os muitos a suportar os fardos dos poucos para que ao menos alguns pudessem ser livres. Isso, e não a acumulação de riqueza, era o cerne da escravidão, ao menos na Antiguidade, e é apenas em virtude da ascensão da tecnologia moderna – mais do que da ascensão de quaisquer noções políticas modernas, incluindo as ideias revolucionárias – que essa condição humana se modificou, ao menos em algumas partes do mundo. O que a América alcançou com grande sorte, muitos outros estados nos dias atuais, embora provavelmente nem todos, podem adquirir em virtude de esforço calculado e desenvolvimento organizado. Esse fato é a medida de nossa esperança. Ele nos permite levar em conta as lições das revoluções deformadas e ainda nos atermos não apenas à sua inegável grandeza, mas também à sua promessa intrínseca.

Permitam-me, a título de conclusão, apenas indicar mais um aspecto da liberdade que veio à tona durante as revoluções e para o qual os próprios revolucionários estavam despreparados. É que essa ideia de liberdade e a experiência real de fazer um novo início na continuidade histórica deveriam coincidir. Deixem-me lembrar a vocês, mais uma vez, do novus ordo seclorum. A frase surpreendente é retirada de Virgílio, que, em sua quarta Écogla, fala do “grande ciclo de períodos (que) nasce novamente” no reino de Augusto: Magnus ab integro sæclorum nascitur ordo. Virgílio fala aqui de uma grande (magnus), mas não de uma nova (novus) ordem, e é essa mudança, numa sentença muito citada através dos séculos, que é típica das experiências da era moderna. Para Virgílio – agora na linguagem do século XVII –, era uma questão de fundar Roma de novo, mas não de fundar uma “nova Roma”. Dessa forma, ele escapou, de um jeito tipicamente romano, dos riscos assustadores da violência inerentes à quebra da tradição de Roma, ou seja, da história legada (traditio) da fundação da eterna cidade pela sugestão de um novo início. Agora, é claro que poderíamos argumentar que o novo início, ao qual os espectadores das primeiras revoluções pensaram estar assistindo, era apenas a reaparição de alguma coisa bastante antiga: o renascimento de um âmbito político secular que enfim emerge do cristianismo, do feudalismo e do absolutismo. No entanto, não importa se é uma questão de nascimento ou renascimento, o decisivo na sentença de Virgílio é que ela é extraída de um hino de natalidade, não profetizando o nascimento de um filho divino, mas em louvor do nascimento enquanto tal, a chegada de uma nova geração, o grande evento de salvação ou “milagre” que irá redimir a humanidade sempre de novo. Em outras palavras, é a afirmação da divindade do nascimento e a crença de que a salvação potencial do mundo reside no próprio fato de que as espécies humanas se regeneram constantemente e sempre.

Penso que os homens da revolução voltaram a esse poema da Antiguidade em particular, independentemente de sua erudição, não apenas porque a ideia pré-revolucionária de liberdade, mas também a experiência de ser livre coincidia, ou antes estava intimamente entrelaçada, com o início de alguma coisa nova – falando em termos metafóricos, com o início de uma nova era. Ser livre e iniciar alguma coisa nova eram sentidos como iguais. E, obviamente, este misterioso dom humano, a capacidade de começar algo novo, tem a ver com o fato de que cada um de nós veio ao mundo como um recém-chegado ao nascer. Em outras palavras, podemos iniciar alguma coisa porque somos inícios e, portanto, iniciantes. Na medida em que a capacidade de agir e falar – e falar não é senão outro modo de agir – nos torna seres políticos, e uma vez que agir sempre teve o significado de pôr em movimento algo que não estava lá antes, o nascimento, a natalidade humana – que corresponde à mortalidade humana – é a condição ontológica sine qua non de toda política. Isso era conhecido tanto na Antiguidade grega quanto romana, embora de modo implícito. Veio à tona nas experiências da revolução e influenciou, embora mais uma vez de maneira um tanto implícita, o que se poderia chamar de espírito revolucionário. De todo modo, a cadeia de revoluções, que bem ou mal se tornou a marca registrada do mundo em que vivemos, sempre e de novo desvela para nós a erupção de novos inícios dentro da continuidade histórica e temporal. Para nós, que devemos isso a uma revolução e à fundação daí resultante de um corpo político inteiramente novo no qual podemos caminhar com dignidade e agir em liberdade, seria sábio relembrar o que uma revolução significa na vida das nações. Quer termine em sucesso, com a constituição de um espaço público para a liberdade, ou em desastre, o significado da revolução, para aqueles que se arriscaram por ela ou nela participaram contra sua inclinação e expectativa, é a atualização de uma das maiores e mais elementares potencialidades humanas, a inigualável experiência de ser livre para fazer um novo início, a partir do qual surge o orgulho de ter aberto o mundo a uma novus ordo seclorum.

Para resumir: Nicolau Maquiavel, a quem se pode chamar de “pai das revoluções”, desejava com fervor uma nova ordem de coisas para a Itália, mas dificilmente poderia falar com algum grau de experiência sobre esses assuntos. Assim, ele ainda acreditava que os “inovadores”, ou seja, os revolucionários, encontrariam suas maiores dificuldades no início, quando tomassem o poder e considerassem fácil mantê-lo. Sabemos através de praticamente todas as revoluções que se trata do contrário – que é até fácil tomar o poder, porém infinitamente mais difícil conservá-lo –, como uma vez sublinhou Lênin, que não é má testemunha nesses assuntos. Ainda assim, Maquiavel sabia o suficiente para afirmar o seguinte: “Não há nada mais difícil de realizar, nem de sucesso mais duvidoso, nem mais perigoso de lidar, do que iniciar uma nova ordem de coisas”. Suponho que ninguém que entenda o mínimo de história do século XX vá discordar dessa sentença. Além disso, os perigos que Maquiavel esperava que surgissem provaram ser bastante reais até os nossos dias, apesar do fato de que ele não estava ainda ciente do grande perigo das revoluções modernas – o perigo que emerge da pobreza. Ele menciona o que, desde a Revolução Francesa, tem sido chamado de forças contrarrevolucionárias, representadas por aqueles que se “beneficiam com a velha ordem”, e o “desânimo” daqueles que poderiam se beneficiar com a nova ordem, por causa da “descrença da humanidade, daqueles que não acreditam verdadeiramente em nada de novo até que o tenham experimentado”. Contudo, o cerne da questão é que Maquiavel percebeu o perigo apenas na derrota da tentativa de fundar uma nova ordem de coisas, ou seja, no mero enfraquecimento do país no qual a tentativa é feita. Isso também se mostrou pertinente, pois tal fraqueza, ou seja, o vácuo de poder do qual falei antes, pode muito bem atrair conquistadores. Não que esse vácuo de poder não existisse antes, mas ele pode permanecer oculto por anos até que um evento decisivo aconteça, quando o colapso da autoridade e a revolução o tornam manifesto por apelos dramáticos em público, onde pode ser visto e conhecido por todos. Soma-se a tudo isso que temos testemunhado o perigo supremo de que, da tentativa frustrada de fundar instituições de liberdade, pode crescer a mais completa abolição da liberdade e de todas as libertações.

Precisamente porque as revoluções colocam a questão da liberdade política em sua forma mais verdadeira e radical – liberdade para participar nos assuntos públicos, liberdade de ação –, todas as outras liberdades, tanto políticas quanto civis, estão em risco quando as revoluções fracassam. Como sabemos agora, revoluções deformadas, como a Revolução de Outubro na Rússia com Lênin, ou revoluções frustradas, como os vários levantes entre as potências europeias centrais após a Primeira Guerra Mundial, podem ter consequências que, no puro horror, são quase sem precedentes. O cerne da questão é que as revoluções raramente são reversíveis, que elas não podem ser esquecidas, uma vez que tenham acontecido – como Kant observou sobre a Revolução Francesa em uma época na qual o terror dominava a França. Isso não quer dizer que, por esse motivo, seja melhor evitar revoluções, pois, se as revoluções são consequências de regimes em plena desintegração e não o “produto” de revolucionários – estejam eles organizados em seitas conspiratórias ou em partidos –, então evitar uma revolução implica mudar a forma de governo, o que em si é efetuar uma revolução, com todos os perigos e riscos que isso acarreta. O colapso da autoridade e do poder – que via de regra surge com surpreendente rapidez não só para os leitores de jornais, mas também para todos o serviços secretos e seus especialistas que observam tais coisas – torna-se uma revolução no pleno sentido da palavra apenas quando há pessoas dispostas e capazes de apanhar o poder, de se movimentar e penetrar no vácuo de poder, por assim dizer. O que então acontece depende de muitas circunstâncias, e não é a menor delas o grau de perspicácia das potências estrangeiras sobre a irreversibilidade das práticas revolucionárias. Entretanto, depende, acima de tudo, das qualidades subjetivas e do êxito ou fracasso político-moral dos homens que estão dispostos a assumir responsabilidades. Nós temos pouca razão para esperar que, em algum momento do futuro não muito distante, tais homens se igualarão em sabedoria prática e teórica aos homens da Revolução Americana, que se tornaram os pais fundadores deste país. Receio, porém, que essa pequena esperança é a única que possuímos de que a liberdade em sentido político não será novamente varrida da face da Terra, sabe Deus por quantos séculos.

Notas

1. N. do T.: Em Thinking Without a Banister, org. de Jerome Kohn. Nova York: Schoken Books, 2018, p. 362-80.

2. N. do T.: Tentativa de invasão de Cuba, em abril de 1961, por um grupo de exilados cubanos, com o apoio da CIA.

3. N. do T.: Referência ao expurgo no Parlamento, em 1648, que marca o fim da fase radical da Revolução Inglesa. No original em inglês, “Rump Parliament”.

4. N. do E.: Cf. Hannah Arendt, A condição humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 241.

5. N. do T.: O Pacto do Mayflower, assinado em 11 de novembro de 1620, foi o primeiro documento governamental das colônias inglesas na América.
6. N. do E.: A escola de história francesa dos Anais e sua publicação Anais de história econômica e social tenta retificar isso.

7. N. do E.: Arendt brinca com a palavra francesa liberté, que significa tanto liberdade quanto libertação.

8. N. do T.: Discurso de Charles I antes de sua execução em 1625.

9. N. do E.: Tradução brasileira por Isabel M. Loureiro, A revolução russa, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 94.

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