O que de melhor aconteceu a propósito dessa polêmica sobre um artigo do Antônio Risério, intitulado Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo (Folha de São Paulo, 15/01/2022), foi a robusta reação democrática à tentativa de linchamento a Risério, por parte de alguns jornalistas da Folha, a maioria de esquerda, e de outros identitaristas militantes.
Também escrevi dois artigos sobre isso: Notas sobre identitarismo e liberdade (Dagobah, 19/01/2022) e Qual é a estrutura do racismo estrutural? (Dagobah, 20/01/2022).
Mas quero agora reunir alguns artigos que achei muito importantes, tanto sobre a polêmica, quanto sobre o tema em si do identitarismo. Seguem reproduzidos abaixo.
Dois problemas democráticos da política identitária
Wilson Gomes, Revista Cult (21/01/2022)
Mesmo o cidadão mais distraído já deve ter-se dado conta de como tem aumentado na discussão pública a militância que faz de identidades sociais específicas, como raça, gênero, orientação sexual, religião e etnia, o centro da disputa política. Assim como das controvérsias em torno desse assunto.
Mas o que são os tais identitários?
Os militantes identitários são pessoas que decidiram, ao longo das últimas três décadas, trocar a razão principal do engajamento na disputa política típica da esquerda marxista, a luta de classes, pela ideia de um conflito fundamental entre elites opressoras e privilegiadas e minorias historicamente oprimidas. O militante da esquerda tradicional está na política por acreditar que a luta de classes – o conflito estrutural inconciliável no capitalismo, que separa os que possuem os meios de produção e os que só têm a força de trabalho – perpetuará a “exploração do homem pelo homem” se não houver quem entre na disputa do lado dos explorados. Um militante identitário, por sua vez, está na política por que há uma opressão histórica contra uma determinada minoria, que tem que ser enfrentada politicamente por quem está do lado do oprimido a fim de se restabelecer alguma justiça ou impedir que a iniquidade se perpetue.
Até aqui, tudo certo. A chamada “política identitária”, a luta política cujo motor central consiste em enfrentar a opressão sofrida por uma determinada identidade social, tem frequentemente conseguido avanços em direitos, reconhecimento e inclusão no processo político para os seus representados. Além disso tem sido bem-sucedida em aumentar a percepção social das diversas formas de opressão, em incrementar a consciência da própria identidade (o análogo à “consciência de classe”) em suas bases sociais de referência e em mobilizar uma formidável força política em defesa de pautas do interesse dos seus representados.
Mas nem tudo são flores. Os problemas aqui são, principalmente, dois.
Primeiro, como as identidades não são entes da natureza, mas socialmente construídas, e como o identitarismo é apenas um conjunto de premissas e táticas, há tanto identitários de esquerda quanto de direita, como se pode imaginar, assim como há identitários para lutar contra a opressão quanto para oprimir. Aliás, todos se acham lutadores contra a opressão mesmo quando oprimem.
Claro, a esquerda se acostumou a pensar que os movimentos baseados em política de identidade são só ou principalmente as novas versões do feminismo, dos grupos antirracistas e a luta dos LGBTs. Mas mesmos os pesquisadores simpáticos à política identitária reconhecem que são igualmente identitários os movimentos anti-imigrantes europeus como o Pegida (acrônimo alemão para Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente), muitos dos movimentos nacionalistas e separatistas em toda parte do mundo, ou, para não dizer que não falamos do Brasil, as forças dos ultraconservadores evangélicas organizadas e mobilizadas para lutar contra o que consideram o cerco e a opressão dos progressistas e esquerdistas. Sim, o “malafaismo” é um identitarismo sob todos os aspectos.
Afinal, também eles entendem que a luta política é basicamente travada em nome de identidades sociais e pelos que são parte dela, também eles entendem que os militantes são guerreiros da justiça atuando em nome de uma minoria oprimida. Eles tampouco têm qualquer dúvida de que não há opressão reversa, posto que a estrutura social é desenhada para perpetuar a opressão de que são vítimas e não o contrário. Todos alimentam narrativas mestras sobre a opressão exercida contra eles pelos liberais e secularistas, nas sociedades modernas que crescentemente desrespeitam os seus valores e o seu estilo de vida.
São assim também os obscurantistas com suas histórias sobre doutrinação ideológica e infiltração esquerdista, liberal e globalista de todas as instituições do Estado e da sociedade. E usam a gramática identitária até, pasmem, a “minoria sexual” (sic) dos heterossexuais, numa representação cada vez mais popular, cercados pela ditadura gayzista e feminazi por todos os lados. Sim, há grupos identitários que se consideram oprimidos por outros grupos identitários, do outro lado do segmento ideológico.
Claro, estou assumindo o valor de face das reivindicações dos identitários de direita, do mesmo modo como se faz com as reivindicações dos grupos minoritários de esquerda que se expressam na gramática e nas táticas identitárias.
O fato, porém, é que todo identitarismo, de esquerda ou de direita, é um vitimismo, todos os membros da identidade estão sitiados, todos precisam denunciar a opressão estrutural, todos sentem que o seu grupo precisa se tornar autoconsciente da opressão sofrida e precisa reagir. De forma que, neste caso, reivindicar superioridade moral faz parte da gramática identitária, mas não significa automaticamente que essa superioridade se verifique sempre.
O segundo problema é que, para além do que os próprios militantes identitários pensam de si mesmos, e levam os outros a pensar que são, há um sistema de consequências das suas premissas e de características das suas táticas que encerram problemas sérios para a vida democrática. Boas intenções e discursos de autojustificação nunca deveriam ser aceitos ao pé da letra e, apesar da enorme complacência dos progressistas e dos conservadores com os seus próprios identitários, as fissuras são cada vez mais claras.
Aliás, o fato de que existam identitários do outro lado do espectro ideológico nos ajuda a investigar, de modo menos benevolente, o que esses movimentos realmente produzem e o valor democrático de seus métodos e premissas.
As dificuldades sob este aspecto aqui são muitas, mas uma questão muito evidente nos dias que correm é a capacidade que esses movimentos têm de silenciar os críticos e de se blindar contra qualquer objeção ou dissenso, seja a crítica apresentada sobre uma tática ou ação específica, seja esta formulada com relação a intenções e premissas gerais dos movimentos. Nessas circunstâncias, percebe-se como são movimentos de um autoritarismo desconcertante, alérgico a opiniões e a fatos dissonantes, intolerantes ao menor desafio intelectual.
Temos vários exemplos disto, pois praticamente toda semana há uma expedição punitiva patrocinada pelos identitários para calar um crítico ou um dissonante. “O cala a boca, divergente” é simplesmente a versão oferecida pelo autoritarismo identitário ao “cala a boca, subversivo” ou “cala a boca, herético” de outros tempos, e ele é cada vez mais constante.
Para quem os sofre, são processos dolorosos, com julgamentos automáticos em ambiente digital, sem chance de defesa, seguido de ataques pesados à reputação e de assédio coletivo acusados e condenados. Para quem os pratica, são uma chance de mobilizar as tropas para a guerra cultural e de reforçar os valores e os afetos tribais. O resultado, contudo, é o envenenamento da esfera pública, o silenciamento da opinião divergente e da crítica, a intimidação do atrito de pensamento, todas condições fundamentais de uma vida pública democrática
Resumi em cinco passos o que considero serem os protocolos para se calar os críticos e invalidar o dissenso sobre as táticas e as premissas identitárias mormente adotadas neste momento. Eu os chamo de Manual para Calar os Críticos e Proibir o Dissenso, e funcionam mais ou menos assim.
1 – Faça com que a opinião pública confunda o movimento identitário com a minoria que ele reivindica representar e use esta minoria como escudo. Assim, toda crítica a uma tática ou premissa dos identitários negros será considerada um insulto e uma ofensa aos negros, do mesmo modo que uma crítica ao malafaismo será recebida como um ataque contra o cristianismo.
2 – Mobilize a simpatia pública pela minoria representada e a use para o contra-ataque contra o crítico. Grite que os negros ou os cristãos estão sendo atacados que sairão guerreiros da justiça de todos os lados para proteger os negros e os cristãos – quando na verdade estão só calando os críticos dos identitários que usam as minorias como escudo.
3 – Desqualifique o crítico acusando-o de algum crime. Faça a opinião pública pensar que ninguém criticaria uma tática ou um dogma dos identitários negros ou dos malafaistas se não fosse por racismo ou cristofobia. Impeça assim que o teor da crítica seja considerado e vire o jogo. A acusação não precisa ser baseada em fatos, mas deve ser feita pelas autoridades tribais identitárias (duas ou três @ que se apropriaram da Autoridade Epistêmica sobre o tema ou o Baronato Identitário) e reiterada inúmeras vezes até que vire uma verdade indiscutível. Quando muita gente estiver gritando “supremacista” ou “cristofóbico”, não haverá mais ninguém lendo o texto criticado. Como vi por aí, “não preciso ler um texto racista para saber que ele é racista”. Não precisa mesmo, a voz do rebanho é quem diz o que você precisa saber.
4 – Desqualifique o crítico retirando dele a autoridade para opinar sobre o tema. Reivindique o monopólio moral e intelectual sobre a fala baseado na premissa da identificação existencial (só quem sente a dor é que pode gemer) e moral (por tempo demais os outros tiveram o monopólio das nossas questões). Não abra mão do lugar de fala. Não reconheça autoridade à razão, à lógica, ao conhecimento, à ciência, à condição humana, o lugar de fala deve ser só seu.
5 – Desqualifique o crítico acusando-o de estar lutando por interesses e privilégios e não pela verdade ou por valores como a democracia e a justiça. Se a crítica for, digamos, a uma ação, premissa ou tática dos identitários negros é bastante fazer notar que o crítico é branco, se for a uma minoria religiosa ultraconservadora é suficiente apontar que o crítico é esquerdista, pertence à elite intelectual ou é liberal.
O emplastro estrutural
Gustavo Nogy (01/2022)
Cheguei tarde ao julgamento que mobilizou as mais notáveis inteligências e imobilizou as mais esquecíveis burrices do país. Assim é melhor: posso divulgar minhas barbaridades sem a desleal concorrência do imediato.
Antônio Risério, escritor, poeta, antropólogo e, segundo nos autos consta, supremacista baiano, cometeu uma indiscrição imperdoável para o debate público: debateu publicamente.
A essa altura, toda a gente sabe do que se trata. Na Folha de S. Paulo, sem negar o racismo, negou que exista somente numa direção. Sem negar o racismo, negou que sua existência dependesse de um certo adjetivo – “estrutural” — que tem sido usado e abusado mais para fins que para começos de conversa.
Há racismo – que também pode ser cometido contra negros, brancos, índios, asiáticos, mongóis, baianos. Há racismo – que também se manifesta no varejo da vida privada, antes que no atacado das instituições.
É evidente que, no Brasil, o preconceito racial está entranhado na pele da cultura e nos ossos do Estado, dada a herança escravocrata, a desigualdade econômica e a geológica imobilidade social. Portanto, o que é recorrente e sistemático contra negros é eventual e aleatório contra brancos.
Mas suspeitar de uma das elaborações possíveis sobre o racismo – o que é o “racismo estrutural” senão uma das elaborações possíveis sobre o racismo? – não é suspeitar da realidade do racismo, assim como questionar a validade epistêmica de uma teoria econômica sobre a pobreza não é por em dúvida a realidade da pobreza ou a fome dos pobres.
Investigar as origens e motivações de movimentos e grupos, dentro e fora dos muros universitários, muitos deles inspirados em terminologia estrangeira, não faz de ninguém um inimigo do povo. Isso deveria ser óbvio mas não é.
Publicado o artigo, publicada a excomunhão: Risério é tudo de péssimo e mais um pouco de ruim porque ousou colocar em disputa não os fatos que, históricos, não se relativizam, mas as interpretações que, abstratas, se discutem.
Acontece que intelectuais (ou respectivos dublês) gostam do exagero – especialmente quando tem gente olhando. Houve quem invocasse, sem pudor nem rubor, o revisionismo antissemita para protestar que revisionismo algum seria aceito. No caso, o revisionismo “criminoso” do Risério. Ofensas e atribuições de crime foram distribuídas com o cuidado de quem se importa muito com o devido processo legal e com a democracia.
Nos dias seguintes, entre argumentos e exclamações, um sindicato pluralista manifestou à Folha seu desagrado porque, aparentemente, o pluralismo se tornou plural demais. Tem espaço pra todo mundo, mas nem todo mundo merece espaço. Esta opinião é opinião, aquela é crime. Esta objeção é aceitável, aquela é inaceitável. Quem decide? Os sommeliers de pluralidade, que só admitem a divergência que não diverge a sério.
Risério diverge a sério. Não é de hoje que o baiano, nascido e criado na contracultura e na cultura de esquerda, transforma em ponto de partida o que para muitos é ponto de chegada: nos ensaios de A utopia brasileira e os movimentos negros, questiona e lamenta a aclimatação dificultosa de reações, métricas e padrões raciais que não são nossos. Ironicamente, reclama do que há de colonizado em nossos movimentos sociorraciais.
Ele não perde tempo em deslegitimar a causa racial, mas se ocupa de apontar os erros de uma de suas possíveis elaborações acadêmicas. A diferença entre fato e ideia, entre história e teoria, faz diferença. Professores e jornalistas deveriam gostar de nuances. Deveriam, mas não gostam.
Mais do que racismo, a controvérsia gira em torno da apropriação do discurso sobre o racismo. Ou ainda: diz respeito à privatização teórica de qualquer discurso sobre o racismo – hoje, ontem, amanhã e depois de amanhã. Só podem falar de racismo os representantes da ideologia identitária porque têm lugar de fala. Os demais, ouçam caladinhos e ajoelhados no milho da reparação histórica.
A tese do racismo estrutural foi elevada à categoria de dogma, diante do qual não cabe dúvida, ortodoxia ante à qual não se admite capitulação. Questionar é incorrer em heresia. Não há perdão sem contrição sincera e retorno obediente à verdade.
Para encerrar a discussão que nem pôde começar, mais de um professor garantiu, de pés juntos e mãos postas, que o conceito de racismo estrutural está bem documentado na mais robusta e recente bibliografia. Acredito piamente que esteja.
Bibliografia essa que é produzida e manejada por mais de um professor que garantiu que o conceito de racismo estrutural está bem documentado na mais robusta e recente bibliografia. Ninguém discuta os livros sagrados nem duvide da palavra sacerdotal se quiser entrar no paraíso.
Eu, que prefiro entrar no inferno sozinho a entrar no paraíso acompanhado, discuto. Pretender que uma construção teórica esteja acima de qualquer avaliação, a não ser que tal avaliação seja feita por quem a produziu ou maneja, é tudo, menos atitude científica que se louve. Nem toda revisão é revisionismo, nem toda negação é negacionismo. O temor à fraude não pode justificar o temor à crítica.
De minha parte, meu ponto de discordância à provocação de Antônio Risério consiste no seguinte: até que ponto as narrativas dos movimentos negros ou identitários sobre o racismo, ainda que aparentemente radicais e exclusivistas, são de fato um problema?
Até que ponto o conflito racial, que se dá nas ruas, não pode ser aceito e absorvido nos departamentos, sem que isso gere qualquer tipo de ruptura mais grave que a proveitosa controvérsia?
O trabalho de Antônio Risério pode e deve ser discutido com todos os rigores da academia. Mas os rigores da academia podem e devem ser discutidos com todas as prevenções da boa-fé.
Jornal, substantivo plural
Eduardo Affonso, O Globo (22/01/2022)
Existiu, até os anos 60, o Index Librorum Prohibitorum, lista das publicações que iam contra os preceitos da Igreja Católica — motivo por que eram “canceladas” pela Inquisição e seus sucessores no departamento de censura religiosa. Heresia, concupiscência ou o que quer que desafinasse o coro canônico estava condenado à fogueira ou, no melhor dos casos, a ser banido das estantes. Eventualmente, o autor era queimado com a obra, como no caso do Giordano Bruno.
Censura e intolerância nunca foram monopólio de uma religião ou de Estados totalitários. Mesmo nas democracias, arrumam um jeito de dar as caras. E onde menos se esperaria: nas universidades (centros de produção e difusão do conhecimento) e na imprensa (que vive não só da notícia, mas também da informação crítica, da manifestação do pensamento).
Pluralismo e liberdade de expressão devem ser os princípios de qualquer publicação que pretenda ter alguma relevância. Não se espera de um folheto de sindicato que abra espaço à opinião do patrão, ou que o porta-voz oficial de um partido (principalmente se for do tipo partido único) permita o contraditório. Mas de que adianta uma imprensa livre se ela mesma se impuser tabus, lançar anátemas?
A tese de que discutir o racismo seja relativizá-lo é a desculpa de quem deseja que o tema seja interditado ao debate. Saem de cena os mandamentos do sagrado e entram os da ideologia. Divergência vira blasfêmia. O assunto passa a ser tão somente uma relação entre opressores e oprimidos — a velha luta de classes reloaded.
Usar a noção de raça para discriminar alguém — mesmo que de forma positiva — tem como efeito reforçá-la, e não o contrário. Acreditar que raças existem é a base de todo o racismo. E não é outra coisa o que fazem os devotos do identitarismo. Demétrio Magnoli já discorreu brilhantemente sobre o tema, em “Uma gota de sangue: história do pensamento racial”, e Antonio Risério, em suas obras mais recentes.
Porém, de algum tempo para cá, tudo o que diga respeito a essa questão (“racismo estrutural”, “racismo reverso”, “lugar de fala”) tomou ares de virgindade perpétua de Maria, estendendo a infalibilidade papal aos militantes da causa identitária. Discutir, debater, investigar ganharam, na novilíngua dos progressistas, o sentido de normalizar. Quem discorda ou questiona é automaticamente rebaixado a racista, supremacista — assim como os críticos da linguagem neutra são homofóbicos, transfóbicos, de masculinidade frágil, os que não se alinham à esquerda são isentões ou fascistas etc.
Ideias devem ser refutadas, não caladas. Ou o que se terá é autoritarismo sob a pele de justo combate às injustiças.
Imprensa livre é a que estimula o exercício da liberdade de expressão e abre espaço à pluralidade de pensamento. Quando um jornalista se transforma na D. Solange de si mesmo e dos colegas, e propõe um novo Index, ficamos todos mais burros.
Antirracismo sem corrimão
Paulo Fábio Dantas Neto, Democracia Política e Novo Reformismo (23/01/2022)
Foi um exercício de paciência esperar uma semana pela publicação de mais um artigo dessa coluna para dizer algo sobre o ruído causado em redes sociais e alguns espaços da imprensa pelo artigo de Antônio Risério “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo – FSP/Ilustríssima, 16.01.22)”. O impulso de me solidarizar com um intelectual que admiro, ademais um querido amigo, alvo, durante a semana, de toda sorte de injúrias morais, intelectuais e políticas teve de ceder a uma compreensão de um limite meu. Sou assumidamente ineficaz no manejo de ferramentas e estratégias de discussão em redes sociais, inaptidão e inapetência derivadas da lentidão (pecado capital em tais espaços) com que se processa em mim o circuito recepção-reflexão-opinião toda vez que o tema não faz parte das minhas cogitações rotineiras. Era precisamente esse o caso e só deixou de ser quando o embate resvalou do léxico cada vez mais esotérico que vem marcando o “campo” de estudos e a arena de disputa política em torno de questões raciais para adentrar explicitamente no terreno das práticas da (e contra a) democracia. Aí me sinto em casa, com todas as responsabilidades de alguém que precisa defendê-la. Antes estava certo de que o que eu pudesse dizer não teria outra relevância substantiva, além da moral. Agora o problema transcende Risério de uma forma tal que poderia ser tratado até sem mencioná-lo. Mas ainda assim vou cumprir as etapas, passar primeiro pelo fato gerador, conferindo os devidos créditos, mesmo avisando, a quem lê, sobre a distância entre o fato e os alvos das minhas preocupações.
Considero que o artigo em questão, pela sua forma e pelo seu conteúdo, não representa bem a consistente reflexão do seu autor sobre questões raciais e suas conexões (de caráter conceitual, ou contextual) com sociedade, cultura e política. Isso mesmo levando em conta que se trata de um texto publicístico e não de um livro ou de um artigo acadêmico. Ao fazer afirmação tão ousada para um quase leigo, aviso que não pretendo ignorar o conselho de pisar em chão tão movediço, a não ser devagarinho. Reivindico, porém, que minha afirmação afoita seja enquadrada, por Risério e pelos seus antagonistas, dentro dos limites do entendimento que seja possível esperar de um não especialista no “campo” e de um não proprietário de “lugar de fala” previamente legitimado por seus zelosos guardiães, que Risério costuma fustigar. Se me permitirem essa licença digo que achei o texto um ponto meio fora da curva ascendente de coisas que já li do autor, as quais, aliás, apesar da relação pessoal que temos, não cobrem a contento o seu grande elenco de obras. Vi que ele focou no problema enunciado no título, que é digno de atenção, mas fez isso isolando-o de questões sociais conexas tanto ao problema geral do racismo como ao tema dos movimentos identitários. Sobre esse último assunto Risério já escreveu bastante, com bem mais profundidade e precisão, mesmo quando assumiu posições fortes e controversas.
Risério tem criticado o conceito de racismo estrutural como um estratagema para amarrar a luta contra o racismo ao identitarismo negro. O conceito proporia a raça negra como credora de reparação estatal pela violência racista (histórica e atual) de que são vítimas os indivíduos negros. Seus defensores insistem numa demarcação de sentido. Racismo seria fenômeno sistêmico, logo, distinto de preconceito e de discriminação racial, ambos referidos mais ao plano de atitudes individuais ou de grupos específicos, o primeiro reportando-se ao pensamento, a segunda à ação. O foco principal das críticas mais sérias que vi ao artigo de Risério foi que ele tratou como racismo (de negros contra brancos) o que teriam sido manifestações pontuais de discriminação racial, ocorridas em alguns lugares fora do Brasil. Numa das matérias publicadas na rede li em que consistiria o enunciado do conceito, da lavra de Silvio de Almeida: “um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas”. Avisando logo que não li o livro de Silvio de Almeida, apresento o pouco que me foi dado entender até agora sobre a controvérsia que esse conceito suscitou, ou aguçou, durante a semana passada.
Se Risério apelou à indistinção para travar o embate frontal, terá cometido um erro intelectual e isso não seria trivial para um intelectual do seu porte. Mas quem quer criticá-lo por isso deve convir que esse erro é cometido amiúde, como arma de embate, pelos movimentos identitários, sujeitos dos quais ele se ocupou nesse texto. Tem-se visto, realmente, no varejo da cena pública, onde delitos raciais de variados calibres são cometidos contra negros tanto pela polícia como por clientes de supermercados, atores desses movimentos quererem enquadrar como racismo – com as implicações penais que isso hoje, felizmente, traz – toda manifestação de discriminação e mesmo as de preconceito, que não impliquem em atos. Apagam-se, no calor da luta desigual, as fronteiras entre preconceito, discriminação e racismo e tal “confusão conceitual” não passa, em geral, pelo crivo vigilante do campo intelectual que se liga, cada vez mais organicamente, aos movimentos (ao menos, um crivo não é visível para alguém que não seja do campo). Tudo muito compreensível no rigor da vida real. Mas o que não dá é para ser complacente com esses erros intelectuais “do bem” e xingar de racista quem eventualmente os comete na mão inversa. Julga-se os mentores intelectuais do movimento pelo metro da política, em si mais tolerante – e é compreensível que assim o seja; e julga-se os seus críticos pelo método da ciência, cobrando rigor intelectual em tempo integral e dedicação exclusiva, como se intelectuais “tradicionais” não pudessem acessar também, assim como os “orgânicos”, o plano da luta política. Nesse plano – e aqui já me aproximo da minha praia mais conhecida – o paternalismo de alguns e o oportunismo ou covardia moral de outros podem estar criando uma rede de proteção ao obscurantismo. Ainda que se concedesse a seus críticos que Risério errou na mão e escreveu um texto parcialmente equivocado, no calor da refrega, é fato que ele escreveu antes, de modo intelectualmente denso e suficiente, inclusive contra esse desmanche de fronteiras entre racismo, discriminação e preconceito. Não me consta que ele esteja pedindo que esqueçamos o que escreveu e nos atenhamos a esse seu recurso eventual ao panfleto.
Assim como em temas como direitos civis, reconhecimento, políticas afirmativas e o da tensão entre universalismo e identidade nacional, também no estudo e discussão do pensamento específico de um intelectual relevante (Antônio Risério, por exemplo) podem trafegar as gramáticas atitudinais da concessão e da moderação. Além de algumas críticas substantivas, como as que mencionei há pouco, o texto gerou, em muito mais número, reações agressivas, simplificadoras. Até um certo ponto era de esperar, tanto pelo teor de agito que ele mesmo contém, como por uma atitude política dogmática que está presente no movimento que ele fustigou, ainda que não se possa, nem se deva estigmatizar esse ambiente afirmando, superficialmente, ser essa, ali, uma atitude generalizada. Mas é fato que o “certo ponto” foi de longe ultrapassado se repararmos nos tipos de ataque de que o autor foi e está sendo alvo. Para economizar espaço e, também, o tempo dos leitores e ouvintes, não me deterei em grosserias diversas que grassaram nas redes, algumas alegando (outras nem isso) que Risério sacou primeiro. Ainda que tal fosse líquido e certo (e não é, pois o contencioso é antigo) cabe reprovar uma tentativa de incineração intelectual. Por isso associo-me às manifestações de desagravo que lhe foram dirigidas.
Falei há pouco na possibilidade de intelectuais visitarem o território da luta política aberta. Penso que Risério tem feito isso e a legitimidade dessa incursão não pode ser avaliada pelo critério do quem ele enfrenta, na geografia ideológica da política. Sim, ele tem enfrentado uma parte da esquerda (e não o conjunto do campo “progressista”, como li essa semana em algum lugar). Em outros momentos de sua vida viu-se em embates com o campo ideológico oposto aos dos seus adversários de hoje. É da natureza de intelectuais independentes essa oscilação, que nada tem de moléstia. Ao contrário, a pendenga constante com as certezas das ideologias é um indicador de pensamento são em intelectuais idem.
Também não é critério de legitimidade o como da intervenção publicística do intelectual ou, em outras palavras, o teor de agitação e propaganda abrigado em cada palavra ou gesto político seu. Nem sempre me vejo em paz com os modos de Risério debater um assunto político. Mais frequente é me inquietar. Ainda nos separam – e creio que assim será para sempre, sexagenários que somos – as nossas marcas de origem política. O reformismo prudencial de matriz comunista, no meu caso; o vanguardismo voluntarista, de matriz libertária, no dele. Mas somos afins. As adversidades de uma ditadura e os encantos de uma democracia agem como uma língua franca para construir diálogos, estejam as pessoas em partidos políticos, em organizações sociais, ou em movimentos por causas efêmeras; dediquem-se elas ao ofício acadêmico institucionalizado ou se aventurem em trajetória intelectual autônoma. O que no fim das contas importa mais não é quem enfrentam ou como. O que importa mais é o que defendem.
Nenhuma palavra falada ou escrita por Antônio Risério em público tem se afastado de uma decidida defesa da liberdade de pensamento e de ação para todos. É desse quilate – liberal, participativo e pluralista – a ideia de democracia com a qual ele se afina. Mas se bem interpreto seu modo de pensar e suas afinidades mais caras, a democracia é para ele um artefato que deve se manejar com sinal de alerta ligado para sua dimensão institucional, de poder político. A nação, mais que as instituições acima dela, dá sentido à democracia. Por isso, ele é capaz de saudar insurreições orientadas por temas planetários para os quais julga que o Brasil tem vocação. Mas ela, a nação, é também o que cuida de fazer dele um conservador. Tenho a impressão de que ele supõe seu pensamento como um fio terra, que se instala para a energia que conduz não escapar e produzir choques elétricos embaixo. Penso que é assim que ele recepciona as questões raciais. Há formas e formas de pensar o racismo e lutar contra ele. A dele é essa. Nela não há verdade dogmática (nenhuma verdade desse tipo há, nem precisa haver). Há só uma visão particular que prospera numa mente treinada para, como dizia Hannah Arendt, pensar sem corrimão.
Por isso é de uma miséria intelectual e moral desconcertante assistir, numa hora dessas em que o pensamento livre é hostilizado pelo poder mais poderoso dos poderes do Estado, trabalhadores da imprensa se dirigirem a seus patrões para pedirem, em nome de uma ideologia, o cerceamento do acesso de um intelectual às páginas de um jornal. Não! a vítima não é Risério, que é uma entre as mentes que podem ser cerceadas se a atitude obscurantista virar costume. Vítimas seremos todos nós.
Léxico da Violência
Demétrio Magnoli, Folha de São Paulo (21/01/2022)
Sentença 1: “O PT propõe revogar a reforma trabalhista conduzida pelo governo Temer”. Sentença 2: “A classe trabalhadora exige a derrubada da reforma trabalhista imposta pela burguesia”. A primeira menciona sujeitos específicos (PT, governo Temer). A segunda, que prefere indicar coletividades genéricas (classe trabalhadora, burguesia), pertence ao léxico da violência.
Quem é o “sujeito da História”? Segundo os marxistas, “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes”. Inflada até o limite, a ideia produziu extermínios de classes sociais inteiras: o Holodomor, na Ucrânia, pelo regime soviético; a implantação das comunas populares, pelo regime maoísta; a ruralização da população urbana pelo regime de Pol Pot no Camboja.
“Jihad: guerra aos infieis!”. Segundo os fundamentalistas, que existem em todas as religiões, o sujeito da História é a comunidade de fiéis. De Maomé às Cruzadas, e delas às guerras de religião na França, a fé produziu rios de sangue que atravessam os tempos. A pulsão do massacre chega aos nossos dias, nas formas do jihadismo, dos atos de terror de cristãos fanáticos, das limpezas étnicas contra muçulmanos.
O “fardo do homem branco”. Segundo Kipling, porta-voz do pensamento imperialista, o sujeito da História é a raça. O racismo branco serviu para justificar a divisão colonial da África, as leis de discriminação nos EUA, o apartheid na África do Sul. (Mas não a escravidão moderna, que prescindiu do conceito de raça). Numa interpretação singular, que identificou raça e nação, funcionou como alicerce para o nazismo.
Racismo não exige diferença de cor. “Baratas” –assim a ditadura hutu qualificou os tutsis, preparando um genocídio inteiramente baseado em teorias raciais. Na hecatombe de exterminismo em Ruanda, algozes e vítimas eram negros.
“A história do mundo não é a história de indivíduos, mas de grupos, não a de nações, mas a de raças – e aquele que ignora ou tenta borrar a ideia de raça na história humana ignora e borra o conceito central de toda a história”. W.E.B. Du Bois, pai-fundador do movimento negro nos EUA, concordava parcialmente com Kipling. Ele não acreditava na noção de hierarquias raciais, mas estava de acordo sobre a questão do “sujeito da História”.
Du Bois desenrolou um fio ideológico que se estende até os racialistas atuais. Dele, nasceu uma caricatura grotesca do Brasil. A sociedade divide-se em duas raças estanques: brancos e negros. Os brancos descendem de proprietários de escravos (sumiram a massa de brancos pobres e os imigrantes). Os negros descendem de escravos (sumiram os negros traficantes ou proprietários de cativos do Império). Os indivíduos do presente representam, pela cor da pele, escravizadores ou escravizados.
A Igreja distribui culpas – e as cobra, via confissão e dízimo. Os racialistas imitam seu método, cobrando da população branca “reparações de guerra” pelos crimes de antepassados imaginários. Mais: por meio da expressão “racismo estrutural”, acusam os brancos em geral de exercitarem o racismo. Divide-se a nação entre criminosos e vítimas – e sugere-se que a redenção depende de uma vingança. Os inventores dos sujeitos coletivos da História nomeiam inimigos igualmente abrangentes e difusos, compondo um léxico da violência.
Mas, paradoxalmente, o racialismo opera como anestésico, atrasando as mais vitais reformas sociais. Quando a polícia exercita o arbítrio na periferia, ignora-se o racismo institucional em nome do “racismo estrutural”: a culpa é dos brancos, não do aparato político que sustenta um policiamento racista. Quando exames internacionais constatam o fracasso perene da educação pública, circunda-se a chaga do apartheid educacional por meio da “solução” das cotas raciais. O léxico da violência é, também, a linguagem do entorpecimento.
Falta caridade ao debate público
Hélio Schwartsman, Folha de São Paulo (18/01/2022)
Princípio da caridade. O nome não é muito bom, já que evoca esmolas e favores, mas a ideia é das mais interessantes. E o que diz o princípio da caridade? Ele diz que, no curso de uma discussão intelectual, devemos conceder às declarações analisadas a mais generosa interpretação possível. Isso significa que devemos tratá-las em princípio como racionais e bem-intencionadas. Só poderemos considerá-las falaciosas e malévolas quando não houver outra leitura possível.
Se há algo em falta no debate público hoje, é o princípio da caridade. As pessoas preferem desenhar espantalhos em suas mentes e argumentar contra essa imagem a discutir o que de fato está escrito num texto. A tática funciona muito bem se o objetivo é “vencer” a discussão ou posicionar-se ideologicamente para ganhar pontos com os amigos, mas ela mata na origem a possibilidade de uma discussão intelectualmente profícua.
Li duas vezes o texto de Antonio Risério publicado no domingo na Ilustríssima e não vi nada de escandaloso nele. O autor não nega o racismo contra negros. Pelo contrário, diz logo na primeira frase que ele é real.
No mais, parte de um truísmo —a constatação de que qualquer ser humano pode em tese adotar atitudes racistas em relação a outros humanos— para fazer críticas a setores do movimento negro americano e as estende ao identitarismo.
Se essas críticas procedem e se podem ser generalizadas para o Brasil e para outras pautas identitárias é o que valeria a pena discutir. Numa sociedade aberta, ninguém, incluindo Deus, o papa, o presidente e movimentos sociais, está blindado de questionamentos.
Fico feliz que a Folha, apesar das patrulhas externa e interna, não tenha renunciado a tentar promover o debate de assuntos que estão se tornando tabu. Mesmo que apenas uma minoria de leitores tire proveito intelectual, os demais podem beneficiar-se dos efeitos catárticos, o que também é válido.