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Um fundamento para a democracia cooperativa em Althusius

Encontrei essas notas (redigidas provavelmente em 2007) nos meus arquivos antigos. Acho que podem ser úteis.

O pensador alemão Johannes Althusius (1577-1638), no livro “Política Methodice Digesta” (1603), apresenta um fundamento para a democracia cooperativa.

Depois dos gregos, talvez tudo (re)comece com Althusius (1577-1638) que, no seu livro “Política” (1603), apresentou pela primeira vez uma teoria abrangente do federalismo (do latim foedus, convenção), enraizada no conceito de associação simbiótica e na ideia do consenso. Como ressaltou o professor Daniel J. Elazar, da Temple University e da Bar-Ilan University, no prefácio da edição do “Política Methodice Digesta” (1603) de Johannes Althusius pelo Liberty Fund (2003), “o “Política” de Althusius foi o primeiro livro a expor uma teoria abrangente do republicanismo federal fundamentada numa visão conveniada da sociedade humana… O livro apresenta uma teoria para a construção da forma de governo com base numa associação política estabelecida por seus cidadãos, a partir de associações primárias entre eles, alicerçada no consentimento e não no Estado materializado e imposto por um mandante ou uma elite”.

Elazar faz uma observação importantíssima: “na luta para a direção que deveria ser tomada na construção dos estados europeus no século XVII, a visão de Althusius, que propugnava uma construção com base nos princípios federais – como associações políticas compostas –, perdeu para visão de [Jean] Bodin [“Os Seis Livros da Nação (ou da República, ou do Estado, ou da Commonweale enfim)”, 1576] e dos estatizantes, que pleiteavam a materialização de Estados centralizados onde todos os poderes ficassem concentrados nas mãos de um rei empossado pela vontade divina e que estivesse colocado no topo da pirâmide do poder ou num centro soberano. Embora o pensamento de Althusius tenha contado com a divulgação de porta-vozes até o final daquele século, depois disso desapareceu da principal corrente da filosofia política. Restou aos americanos a invenção do federalismo moderno com base no individualismo e, assim, a reintrodução da ideia do Estado como associação política, em vez do Estado materializado – um produto pronto e acabado – para o qual se supõe existência independente do povo que o constitui” (Elazar, 2003).

Embora, em termos científicos, não seja adequado fazer esse tipo de “reengenharia” do passado, especulando com a história, em termos heurísticos talvez seja útil supor que se Althusius tivesse prevalecido no lugar de Bodin, a política teria tomado outro caminho na modernidade e não estaríamos ainda aprisionados na estiolante disjuntiva autocracia x democracia liberal.

O fundo da questão – como coloca Frederick Carney (2003), o tradutor da versão americana da obra de Althusius – é saber onde reside a soberania da comunidade: “Jean Bodin, a quem Althusius deve muitas das características do seu sistema político, a atribui ao mandante. Althusius discorda. Sua posição… é de que a soberania é a vida simbiótica da comunidade que toma forma no jus regni, ou no direito fundamental, ou lei do reino… Portanto, a soberania reside no corpo organizado da comunidade, ou seja, nos processos simbióticos dela” (Carney, 2003).

Essa ideia de que a fonte da soberania não é nem o mandante, nem o indivíduo, mas flui da comunicação (no sentido de compartilhamento ou comunhão) que ocorre na comunidade talvez possa constituir o principal fundamento para uma nova política que agora começa a surgir com a emergência das redes sociais (não estamos falando aqui das mídias sociais, incorretamente chamadas no Brasil e em outros países, de redes sociais). A nova política democrática como modo de regulação (o “metabolismo”, a dinâmica) compatível com a forma de organização, ou melhor, com a topologia distribuída (o “corpo”, a estrutura) das redes sociais, tem a ver com essa noção de simbiose de Althusius (para o qual “a fundação de todas as associações, sejam privadas ou públicas, é a vida simbiótica”, alterando radicalmente a compreensão, induzida pela lei medieval romana, das diferenças entre público e privado). Esse último aspecto é vital para a reconstrução de uma nova teoria do público adequada à uma visão radicalmente democrática. O público nasce da associação, a qual depende do consentimento continuado dos simbióticos ou membros e tem início e é mantida por meio de uma convenção (foedus, pactum) entre esses membros (os simbióticos). Talvez se possam ouvir aqui os ecos no passado da concepção de público intentada por John Dewey no final da década de 1920.

Uma leitura seletiva – feita como quem garimpa – do primeiro capítulo do “Politica” de Althusius, intitulado “Das Acepções Gerais da Política” (na sua edição de 1614, traduzida para o inglês por Carney e do inglês para o português por Joubert Brízida), pode dar uma ideia do fundamento tomado por ele para a construção da sua teoria política:

“A política – escreve Althusius – é a arte de reunir os homens para estabelecer vida social comum, cultivá-la e conservá-la. Por isso, é chamada de “simbiótica”. O tema da política é, portanto, a associação (consociatio), na qual os simbióticos [siymbiotici: aqueles que vivem juntos], por intermédio de pacto explícito ou tácito, se obrigam entre si à comunicação mútua daquilo que é necessário e útil para o exercício harmônico da vida social. O fim do homem político “simbiótico” é a simbiose santa, justa, proveitosa e feliz, e uma vida para a qual não falte nada de necessário ou de útil. Para viver essa vida, nenhum homem é auto-suficiente ou bastante provido pela natureza… os esforços e a diligência de muitos homens são indispensáveis… Os simbióticos são co-trabalhadores que, unidos pela associação e com vínculo de pacto, comunicam entre eles aquilo que é conveniente para uma vida confortável de corpo e alma. Em outras palavras, eles são os participantes ou parceiros de uma vida em comum. A comunicação mútua, ou empreitada comum, envolve (1) bens, (2) serviços) e (3) direitos comuns (jura) pelos quais as numerosas e variadas necessidades de cada um e de cada simbiose são supridas, a auto-suficiência e a mutualidade da vida e da sociedade humana são conseguidas e a vida social é estabelecida e mantida… Claramente, por sua natureza gregária, o homem nasceu para cultivar a sociedade com os outros homens, não para viver solitário… E assim nasceu [com] a imposição da comunicação do que é necessário e útil, o que só pode ocorrer na vida social e política… [mas] as causas eficientes da associação política são o consentimento e o pacto entre os cidadãos que se comunicam… A matéria da política são os preceitos para a comunicação daqueles bens, serviços e direitos que estabelecemos, cada um justa e apropriadamente de acordo com suas habilitações, para a simbiose e o benefício comum da vida social… Segue-se que nenhum homem é capaz de, por si só, viver bem e com felicidade. A necessidade, portanto, induz à associação; e a busca das coisas necessárias à vida, que são adquiridas e comunicadas com a ajuda e a assistência de associados, a conserva. Por tal razão, é evidente que a comunidade, ou sociedade civil, existe por natureza, e que o homem é, também por natureza, um animal civil que procura avidamente pela associação” (Althusius, 1614).

Elazar sugere algumas linhas de investigação para resgatar aquelas bases do pensamento de Althusius que seriam capazes de fundamentar uma política pós-moderna; dentre elas: a) a ideia do pactum (convenção) como a única base para a organização política legítima (para Althusius, “a política, como tal, é completamente federal, baseada que é na união e na comunicação, expressando a ideia de simbiose entre seus membros… [onde] o compartilhamento [é o] seu princípio guia. A forma de governo, portanto, é uma associação simbiótica concretizada pelas trocas de comunicação”); b) a ideia de soberania atribuída ao povo (“que faz da boa forma de governo uma res publica ou comunidade… um consociatio consociatiorum, uma universitas composta de collegia”), em contraposição à ideia de Jean Bodin de soberania indivisível, monolítica, atribuída ao governante (o mandante autocrático) e abrindo um caminho – acrescentamos aqui – talvez um pouco diferente daquele que seria trilhado pelo federalismo americano 175 anos depois; c) a ideia de piedade e justiça como alicerces necessários para a sociedade civil, o que talvez possa evocar a compreensão atual de que algum grau de capital social inicial (ou de cooperatividade sistêmica) seja necessário para o exercício de uma política baseada na simbiose; d) as raízes da ideia de uma democracia mais ampliada (“Althusius propõe diferentes formas e alcances de participação nas diversas arenas do governo como possível modo de estender a participação na vida pública de grupos até então privados de direitos civis [como as mulheres, e. g.] e privilégios…)”; e) a ideia de simultânea conexão e divisão entre os domínios público e privado (afastando-se das “noções clássicas de uma polis que tudo abarca para admitir a legitimidade de uma esfera de atividade privada que é constitucional por direito, evitando então o totalitarismo”; sobre isso Elazar acrescenta, com argúcia, que “uma das vantagens da época moderna foi a possibilidade de separar com mais clareza as esferas públicas das privadas, porque tratou-se de um período que fomentou uma progressiva distância entre elas. Isso já não é mais o caso, uma vez que a tecnologia das comunicações pós-modernas requer mais trocas althusianas; o que quer dizer que, como tudo influencia tudo, mais compartilhamento se faz necessário”); e f) por último, a ideia de Althusius do político como âmbito comunicativo realizado ex parte populis (e a sua definição de política “como a ordenação efetiva da comunicação (de bens, serviços e direitos) [que] oferece-nos um ponto de partida para o entendimento dos fenômenos políticos englobados pela ciência política contemporânea”).

O trabalho sugerido por Elazar está por ser feito. Mas não deixa de ser espantoso verificar como uma concepção tão inovadora possa ter passado desapercebida pelos contemporâneos e pelos pósteros de Johannes Althusius. Mais espantoso ainda é constatar como tudo isso continua sendo ignorado no debate atual sobre a radicalização ou democratização da democracia.

A política althusiana como consociatio – e não como disputatio –, constitui um fundamento para a radicalização da democracia entendida como caminho em direção a uma democracia cooperativa: se o movimento primordial da política é se associar ao outro (tomando-o como possível parceiro simbiótico) e não combatê-lo ou se precaver contra ele (como se fosse um potencial inimigo), então, em termos políticos, é a cooperação – e não a competição – que funda o social. Esse, portanto, pode ser um fundamento para a democracia cooperativa.

Talvez seja possível estabelecer – ex post, evidentemente – uma linha coerente de pensamento que ligue esse fundamento althusiano (de Johannes Althusius: 1603, 1614) às bases deweyanas (John Dewey: 1929, 1937, 1939) e aos pressupostos maturanianos (de Humberto Maturana: 1973, 1984, 1985, 1988, 1991, 1993) da democracia cooperativa.

Notas

Em elaboração (achei o arquivo sem as notas – vou ter de refazer ou fazer).

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