Vale a pena ler o artigo de Cyril Lynch, publicado no último dia 14 de agosto, no seu Facebook. Segue reproduzido abaixo. No final teço alguns alguns (poucos) comentários.
O MÉTODO DO GOVERNO BOLSONARO: UMA TENTATIVA DE INTERPRETAÇÃO
Christian Edward Cyril Lynch, Facebook, 14 de agosto de 2019
Introdução
O atual governo em seu oitavo mês já dá alguns sinais de ter estabelecido um padrão regular de governança muito diferente do velho presidencialismo de coalizão da Nova República. Esse texto em duas partes tenta descrever a teoria de ação por ele adotada nos seus primeiros oito meses.
1 – Tempos de exceção, governo de exceção
Antes de mais nada, é preciso lembrar o que o governo Bolsonaro não é: um governo normal em tempos normais. Governos normais, eleitos em tempos de rotina republicana, são ancorados em maiorias parlamentares e balizados pelas instituições e valores constitucionais. Do ponto de vista político, tendem ao centro, sejam de direita ou esquerda; do ponto de vista administrativo, eles corrigem, expandem ou melhoram o existente, a fim de se manter no poder. Para isso lançam mão dos quadros de seus partidos, que presidem e aproveitam a burocracia técnica que serve ao Estado. Governos normais são compreendidos dentro dos modelos institucionalistas de ciência política, em que o mote segundo o qual “as instituições estão funcionando” não é diagnóstico, é pressuposto. Ocorre que, conforme referido, o governo Bolsonaro não é um governo normal, nem normais são os tempos que correm. Por isso ele se nos aparece tão singular ou insólito no seu cotidiano e sua análise exige, portanto, mais criatividade e interpretação. As principais causas dessa singularidade do governo Bolsonaro são três:
1. 1. Em primeiro lugar, é um governo que assume depois da desmoralização do desenvolvimentismo, da depressão econômica e da terra arrasada da classe política provocada pela “Revolução Judiciarista”, que liquidou o regime de 1994-2014. O Bolsonarismo encontra as instituições frágeis, vacilantes, conflagradas por dentro, diante de uma crise econômica imensa. Por outro lado, é um governo que quer se demarcar das práticas governativas anteriores, sendo desrespeitoso ou deliberadamente ignorante das liturgias e práticas estabelecidas. Ele se pretende abertamente disruptivo e nesse sentido é “revolucionário”. Fator que o faz potencialmente autoritário e interessado em explorar as fragilidades institucionais. A situação poderia abrir espaço para um governo bonapartista, no qual um chefe carismático tentasse reunificar a nação com discurso de conciliar autoridade e progresso. Mas não foi o que aconteceu, pela razão abaixo.
1.2. Segundo, em aparente paradoxo com o ponto anterior, o atual governo se acha na extrema direita do espectro político e ostenta um caráter reacionário inédito na história do Brasil; que deseja declaradamente fazer 50 anos em 5 para trás. Trata-se assim, do ponto de vista ideológico, de um governo animado por um espírito de “revolução”, é certo, mas de uma “revolução reacionária” voltada pelo restabelecimento da autoridade, da hierarquia, da religião, contra valores libertários e igualitários. Então, ele deseja pôr abaixo o mundo que a constituição de 1988 criou e encontra terreno propício para isso na fragilidade das instituições. Por isso Bolsonaro não desejou, nem pôde, adotar um figurino bonapartista. Um bonaparte é autoritário, mas não é reacionário; ele agrega, ao invés de polarizar.
1.3. Terceiro, é um governo que, ao contrário daqueles do PT e do PSDB, assumiu sem ter pessoal ou quadros administrativos. Chegaram ontem da poeira da estrada, como uma pequena trupe de circo: um deputado de baixo clero com pinta de apresentador de programa policial; seus três filhos com ares de galos de rinha; um general boquirroto de pijama; um ex-ator pornô; um príncipe destronado e um filósofo amador fugido da justiça. Só. O pessoal administrativo que poderia ampara-lo era aquele no regime militar, mas, depois de 30 anos sem conservadorismo assumido no Brasil, sua maioria já estava morta ou inválida pela idade avançada. Então será preciso organizar esse “partido” com sua respectiva administração, de modo autoritário e com base na intimidação, aproveitando o estado de acossamento das instituições republicanas.
2 – As diretrizes de um governo de exceção
Creio que essas características e circunstâncias explicam as linhas gerais da estratégia adotada até agora pelo governo Bolsonaro e o consequente padrão governativo por ele desenvolvido em substituição ao tradicional presidencialismo de coalizão.
Essas linhas gerais de ação estratégica do governo Bolsonaro tem sido quatro:
2.1. Um governo de ruptura reacionária, carente de raízes, precisa, em primeiro lugar, formar pessoal devotado, assustar os dissidentes e destruir os concorrentes. Daí os ataques virulentos ao vice-presidente, ao governador de São Paulo (aí incluindo a pernada simbólica da transferência do GP de F1 de volta ao Rio); as rusgas intermitentes com o Witzel; e a expulsão do Alexandre Frota do partido governista. A necessidade de deitar raízes explica igualmente o festival de asneiras e bofetadas na consciência jurídica do país, destinadas a colocar Bolsonaro diariamente como exclusivo protagonista midiático da vida política brasileira (até o Lula sumiu). A militância mantém-se acesa, e com ela, o clima de histeria e polarização indispensável à rotinização do radicalismo: “Quem não está comigo está com a esquerdalha comunista e corrupta”. A política externa segue a mesma linha: são amigos só os governos radicais de direita, que fazem parte da Internacional Direitista. Os demais, inimigos ou concorrentes. Tudo é apresentado polarizado em preto e branco; o centro liberal fica esmagado.
2.2. Na falta de um partido consolidado que lhe providencie pessoal administrativo, Bolsonaro eleva sua própria família (os três filhos galos-de-rinha e seus amigos) à condição de núcleo de confiança suprema da presidência. A fidelidade a essa camarilha familiar é o critério a partir do qual o presidente organiza o seu próprio partido de cima para baixo. Assim, se a base da administração tem que ser entregue em um primeiro momento aos militares, eles só podem ficar no governo subordinados ao “partido familiar” (o que explica a demissão de Santos Cruz). É o que explica também o nepotismo explícito na tentativa de nomear Eduardo Bolsonaro embaixador em Washington ou chanceler se a indicação falhar. Ou o compadrio de desejar nomear gente amiga dos filhos ou parentes. O prestígio da família como instituição começa com a própria e tudo é personalizado. Valores como república e pluralismo são banidos como espectros anacrônicos típicos de um tempo subversivo. Do ponto de vista ideológico, o “partido familiar” segue a interpretação do Brasil elaborado pelo Olavo de Carvalho, referência máxima do bolsonarismo enquanto ideologia de neo-reacionarismo popular.
2.3. Mas esse movimento de cima para baixo não basta para formar um grupo de apoio sólido. O governo precisa ampliar seu pessoal de baixo para cima, cooptando-a da sociedade civil. A perseguição à imprensa, os expurgos na administração do INPE, no MEC; a lambada na ANCINE são movimentos que desempenham duas funções. A primeira é a de reafirmar a autoridade do governo conforme seu radicalismo reacionário e advertir os subordinados para que não alimentem veleidades de crítica. A segunda tem por fim incentivar os moderados a aderirem ao radicalismo, abraçando o governo com manifestações de apoio. Ou seja, se tornam oportunidades para o adesismo. É assim que o Bolsonaro formará o seu pessoal e aparelhará o Estado, através desses dois movimentos: um de cima para baixo e o outro, de baixo para cima. A adesão ao extremismo ideológico é escada para os candidatos que desejarem assumir cargos na administração. O chanceler Araujo foi primeiro a dar o exemplo do mais escancarado adesismo, e são as vacilações do Moro em seguir o mesmo caminho de adesão irrestrita que estão criando fissuras entre ele e o chefe.
2.4. O contexto de ruptura reacionária com a rotina progressista da nova república e a exigência de construção de um verdadeiro “partido” no sentido gramsciano, com pretensões hegemônicas e duradouras no campo da extrema direita, explica por sua vez o pouco caso com as instituições e valores herdados de 1988-1994. O clima de terra arrasada deixou as instituições fragilizadas, e elas ainda estão acossadas pela desmoralização sistêmica denunciada pelo “judiciarismo”. Esse acossamento favorece, por parte do governo, uma postura de antagonismo belicoso em relação ao legislativo e ao judiciário, que visa a mantê-los acuados. No STF, a tática funciona desde o ano passado, com o Ministro Toffoli “negociando a constitucionalidade”, para usar a expressão do Conrado Hübner Mendes, e buscando atender a pauta de proteção ao “partido familiar” sob o argumento de ser a Corte um “poder moderador” (expressão que quer dizer muitas coisas, inclusive antagônicas). No congresso, a estratégia é governar por decreto e desferir caneladas na “corrupta classe política” a fim de atemorizar os opositores ou as veleidades de dissidência. Na PGR, a Dodge teve a ilusão de que bastaria seguir o método que seguiu com o Temer: contemporizar ou fazer a egípcia.
Com Bolsonaro o buraco é mais embaixo: adesão total ou nada. A intenção é a de aparelhar o tanto quanto possível as instituições de controle ou de regulação, autarquias e agências, numa extensão que o PT nunca quis ou conseguiu. Ao contrário do Temer, Bolsonaro não tem qualquer escrúpulo institucional: quer “procurador da República meu”; “ministro do STF meu”; “Lava Jato minha”; “Reitor meu”, etc. Sem expectativa de fidelidade canina a ele e ao “partido familiar”, as cabeças rolam, as fontes de dinheiro secam; investigações são abertas; assassinam-se moralmente reputações etc. É como na república velha: aos amigos pão, aos inimigos pau.
Conclusão
Este parece ser, em traços muito gerais, o modelo governativo do Bolsonarismo. Ele veio com um ânimo decidido para fincar raízes na política e na sociedade brasileira, explorando o que ela herdou de pior da colonização: o autoritarismo, a hierarquia mantida pela violência, a exploração predatória da natureza, a boçalidade intelectual, o sadismo a respeito dos mais fracos, o personalismo, o nepotismo etc. Fazem parte do seu arsenal de guerra política a intimidação, o espírito de vingança, a perseguição e o exercício da violência psicológica.
Nem por isso deixo de reconhecer que a estratégia do governo parece estar funcionando. Minha perspectiva crítica não pode se sobrepor ao meu dever de objetividade. A verdade é que só se fala em Bolsonaro dia e noite neste país e ele continua com seus famosos 30% de seguidores fiéis. Por quê? Porque são os males atávicos da sociedade brasileira que servem de vento para que a nau bolsonarista singre, imperturbada, por entre os destroços deixados, no mar das instituições republicanas, pela Revolução Judiciarista.
ALGUNS COMENTÁRIOS
O autor já explicou, em um artigo de 2017, intitulado Ascensão, fastígio e declínio da “Revolução Judiciarista” o que seria essa hipotética revolução. A tese é interessante, apesar de um pouco duvidosa, mas agora não é o caso de examiná-la. Tirando isso e o que vou comentar a seguir, o artigo é excelente. É uma boa interpretação do modo Bolsonaro de governar, ainda que não do bolsonarismo como fenômeno sócio-político e ainda que tenha faltado relacionar as hipóteses analíticas aventadas por Linch com a ascensão do populismo-autoritário no mundo, por variadas razões e, em particular, com o movimento bannonista. Não se pode interpretar o modo Bolsonaro de governar sem interpretar o bolsonarismo, o que exige a inclusão não somente de variáveis histórico-políticas da nossa própria história. Bolsonaro e o bolsonarismo ascenderam numa onda maior, mundial, de recessão e de desconsolidação democráticas.
E o que comento, mais uma vez, é a impressão de que Bolsonaro “continua com seus famosos 30% de seguidores fiéis”. Dependendo do que entendemos por fiéis, isso não é verdade. Hoje mesmo, em outro artigo – Sobre o tamanho da seita bolsonarista: por que devemos evitar as avaliações impressionistas – alertei para o perigo de superestimar o tamanho do bolsonarismo (como seita, como organização, como conjunto de ativistas-full) avaliando-o pelo número de eleitores, apoiadores e simpatizantes de Bolsonaro.
Tudo somado – bolsonaristas, eleitores, apoiadores e simpatizantes de Bolsonaro – pode, de fato, perfazer 30% (do eleitorado total ou da população em idade politicamente ativa?), mas é forçar um pouco a barra dizer que são todos fiéis. Fiéis, stricto sensu, são os membros da seita. E a seita existe. E existe uma organização bolsonarista que dirige a seita, formada em torno da família Bolsonaro – e do seu neo-familismo amoral, digamos assim, para evocar e recauchutar o velho conceito de Edward Banfield (1955) – do seu guru e seus sequazes mais chegados. Isso é importante porque, dependendo da evolução dos acontecimentos, a organização bolsonarista pode até substituir Bolsonaro ou sobreviver sem a sua liderança.


