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Educação militar para a democracia

A julgar pelas manifestações que vemos do Clube Militar, dos militares da reserva que ocuparam a presidência da República no Brasil a partir de 2019 e de alguns militares da ativa que não se envergonham em ocupar posições num governo civil, a educação militar precisa urgentemente ser reformada. Numa democracia os militares deveriam receber uma educação compatível com os fundamentos do regime.

Sete coisas que os militares deveriam aprender na caserna numa democracia:

1 – Forças armadas podem ser úteis (e necessárias) como instituições permanentes de Estado, para a defesa do país (conquanto existam países que não acabaram por não mantê-las).

2 – Nas democracias, os militares estão subordinados ao poder civil e não devem ter nenhum papel político. Se essa regra básica não for observada, a democracia corre risco, no mínimo, de ficar informalmente sob a tutela militar (ou sob a influência indevida de pessoas armadas).

3 – A ideologia militar não é útil nem necessária à sociedade democrática. As democracias admitem que os militares compartilhem interna corporis suas visões hierárquicas e autocráticas, desde que, na prática, obedeçam à Constituição e às instituições do Estado democrático de direito e que abram mão de tentar impor essa ideologia às instituições civis do Estado e da sociedade (como os órgãos de governo e as escolas, por exemplo).

4 – Ministérios e outros órgãos de um governo democrático (que é sempre civil, mesmo quando seu titular eleito tenha formação militar) não devem ser ocupados por militares (nem mesmo ministérios como o da Defesa). Militares, como agentes do Estado que são, não devem se aliar politicamente a governos, nem aparelhar (ocupar) governos, atuando como facção, não bastando para isso terem passado formalmente para a reserva.

5 – Militares não viram magicamente civis quando passam para a reserva. Enquanto mantêm entre si e com militares da ativa relações políticas e comungam visões ideológicas assumidas por suas corporações (ou por setores delas), continuam – para todos os efeitos – sendo militares.

6 – A força militar não se constitui como um poder válido do Estado democrático de direito (muito menos um poder moderador). Nenhum poder militar é legítimo em democracias, a não ser, em alguns casos (como, por exemplo, o de o país estar invadido ou ocupado por forças estrangeiras hostis), em estado de guerra deflagrada e declarada pelo poder civil (e nunca em termos preemptivos, como preparação para enfrentar uma imaginária guerra futura – eufemisticamente chamada de defesa).

7 – A não ser em situações de o território do país estar invadido ou ocupado por forças estrangeiras hostis, não existe inimigo interno (um conceito antidemocrático). Nas democracias os que divergem do governo por meios pacíficos e legais são adversários políticos, não inimigos e sua existência (como oposições válidas) é fundamental para a manutenção do regime democrático. Os que divergem do governo por meios violentos e ilegais devem ser coibidos, julgados e punidos de acordo com o devido processo legal, pelas instituições civis, policiais e judiciárias, não pela força militar e nem mesmo esses criminosos devem ser qualificados como inimigos do país ou da nação (ou da pátria) no sentido militar do termo.


NOTAS

(1) Ou seja, enquanto predominarem a forma Estado-nação e o sistema internacional do equilíbrio competitivo, os militares podem ser necessários, sim, sobretudo para países com grande extensão territorial ou inseridos em regiões coalhadas de Estados beligerantes (como, por exemplo, Israel) e, é claro, em tempos de guerra (quente ou fria).

E sim, mais de 20 países (Estados soberanos) não têm forças armadas regulares, como Andorra, Costa Rica, Islândia, Japão, Liechtenstein e Mônaco. Alguns desses países possuem forças de defesa com preparo militar, mas não força armada como estamento regular, investido de uma missão ideológica, cultor de uma espécie de “religião da pátria”, que vai muito além do que é necessário para manter a coesão de uma corporação profissional – o que os militares deveriam ser.

(2) Diz-se que militares são necessários para elaborar estratégias nacionais de defesa, segurança e desenvolvimento. Os militares põem-se então a urdir doutrinas nesse sentido (como a célebre, no Brasil, Doutrina de Segurança Nacional elaborada para o período 1949-1966 pela Escola Superior de Guerra e pelo Serviço Nacional de Informações – criado para identificar e caçar os “inimigos internos” do país). Essas doutrinas começam arbitrando quais seriam os verdadeiros “interesses nacionais” (ou seja, as “legítimas aspirações do povo” que devem ser identificadas não pelo próprio povo e sim pelos que teriam condições de fazê-lo em seu nome). Mas em democracias, quem define os “interesses nacionais” ou as “legítimas aspirações do povo” são os seus representantes legitimamente eleitos. Qualquer pretensão de fazer isso por parte de corporações ou estamentos do Estado ou por forças antidemocráticas organizadas na sociedade significa usurpação.

Em democracias, portanto, militares não podem interpretar quais são os interesses da nação ou os anseios legítimos da população. Eles não têm mandato para tal. Não custa repetir: não podem fazer política. Se fazem, violam a Constituição e sua ação deve ser considerada golpe (como ocorreu no Brasil em 1964 e 1968) ou tentativa de golpe de Estado. Sua missão, que é de Estado, é ser uma força profissional sob estrito controle do poder civil legitimamente eleito.

(3) Se o militares podem ser úteis e necessários, o mesmo não se pode dizer da sua ideologia, baseada no culto da ordem (que é um culto da morte). A ideologia militar é incompatível com a democracia porquanto, para ela, o sentido da política é a ordem e não a liberdade (ou seja, a democracia). Sobre isso convém ler os textos Algumas notas sobre a ideologia militar e O culto da ordem é um culto da morte.

(4) No caso do Brasil atual, a infestação militar no topo do governo (ou o aparelhamento militar das instituições civis) com milhares de oficiais das forças armadas em cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões (em proporção jamais encontrada em uma democracia, em qualquer lugar do mundo ou época da história) é, em si – queiram ou não violar a Constituição os militares (da ativa ou da reserva) que ocuparam o governo – uma ameaça à democracia. Estima-se hoje (16/07/2020) que, no Brasil, 8.450 militares da reserva estejam trabalhando em ministérios, comandos e tribunais e que militares da ativa sejam 2.930.

(5) Se um militar que passa para a reserva vira num passe de mágica um civil, então o Clube Militar deveria se chamar Clube Civil de ex-Militares. Mas não. Eles passam para a reserva e continuam exigindo serem tratados por suas patentes, alguns até posando para fotos de farda.

Não há muita diferença, em termos de concepção e de comportamento político, entre um militar da reserva e um militar da ativa. Passar para a reserva não tem o efeito de mudar concepções e comportamentos. E o que é pior é que as concepções dos militares (da reserva ou da ativa, pouco importa em termos práticos) que resolveram tomar o Palácio do Planalto e vários cargos-chave do governo por vias legais, assumindo posições de comando, têm um pensamento i-liberal em termos políticos: basta analisar suas declarações (passadas e recentes) para comprová-lo.

Repita-se mais uma vez. Não há, nem nunca houve, em qualquer democracia do mundo, um governo com tantos militares como no Brasil atual. Isso nada tem a ver com a capacidade técnica, a dedicação, a lealdade, a honestidade, o espírito público e outras características atribuídas aos militares. Tem a ver com o fato de que a entrada massiva de militares em cargos políticos, não foi obra do acaso e sim uma operação deliberada de ocupação do terreno mesmo, não importa o motivo: se foi para moralizar a vida pública e combater a corrupção, se foi para proteger o Estado-nação brasileiro da perigosa ameaça comunista (como eles, os militares, argumentaram em 1964) ou se foi para defenestrar da vida pública os democratas (como eles fizeram em 1968), se foi para impedir a volta do PT e manter Lula preso et coetera. O fato é que os militares estão seguindo a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin, ou seja, estão tomando a política como continuação da guerra por outros meios. Para tanto, estão fazendo uma guerra de posição (tal como na guerra de 1914-1918, estão cavando trincheiras em terreno supostamente ocupado pelos inimigos).

(6) Nas democracias existe força militar, não poder militar. Essa distinção é importantíssima. Poder militar é um poder de fazer guerra (mesmo quando isso é chamado eufemisticamente de defesa). Mas a guerra, como instituição (permanente) é sempre preemptiva.

Democratas não saem por aí matando autocratas. A não ser em legítima defesa ou em guerra movida contra eles por autocratas (sim, posto que duas democracias não guerreiam entre si). Mas não existe legítima defesa preemptiva, a não ser como ato de guerra. Democratas nunca tomam a iniciativa de iniciar guerra, nem mesmo contra autocratas.

Preemptivo (antecipado) diz-se – em teoria da computação – de um esquema de processamento computacional onde o kernel tem o controle do tempo que será usado por cada processo, e tem o poder de tomar de volta este tempo e dá-lo para outro processo segundo seu esquema de prioridades.

Na preempção o ator cava um sulco para fazer escorrer por ele as coisas que ainda virão. E ao fazer isso, acaba, inexoravelmente, crackeando outros caminhos possíveis. Pois o futuro não existe: é apenas um modo de narrar o presente. Não raro – eis o problema – esse modo repete presente (quer dizer, passado) na medida em que, desde agora, nunca é possível saber o que ocorrerá amanhã.

Não é por acaso que toda guerra é preemptiva. Ela se chama eufemisticamente de defesa porque imagina que o sujeito que a fabrica será ameaçado no futuro por algum inimigo (embora este inimigo possa, frequentemente, nem existir). É uma prevenção contra o outro-imprevisível, cuja simples (e hipotética) existência pode ameaçar o seu modo de ser. E por que há essa prevenção? Ora, porque, no passado, tivemos muitas experiências de que alguém que não se preparou adequadamente foi atacado por algum outro e sucumbiu.

O passado. Repetição de passado! Vejam que se está prevendo que o futuro será repetição de passado. Mas esse passado também é uma construção feita a partir do presente. Quem disse que a guerra era o estado “natural” de vida no passado? É óbvio que foi uma determinada leitura do passado. Se nos últimos seis milênios vivemos em um estado intermitente de guerra (com algumas exceções, como a Creta minoica, por exemplo, que ficou um milênio sem guerras até a chegada dos aqueus), isso não significa que tenhamos vivido assim durante os cerca de 150 mil anos de caminhada do Homo Sapiens sobre a Terra.

Aliás, desse ponto de vista, a guerra é um acidente raro e fugaz. Mas ao contrário do que reza o lema militar estampado no muro dos quartéis – Si Vis Pacem, Para Bellum – ao nos prepararmos para a guerra estamos fazendo guerra e não paz. Pois qualquer pessoa razoável há de entender que alguém só pode viver em paz preparando-se para a paz, quer dizer, desarmando a guerra (não encarando o outro, em princípio, como um provável inimigo e sim como um potencial parceiro). É preciso entender, ao contrário do que se repete, que a guerra não é o conflito violento para destruir inimigos e sim a construção de inimigos, justo para mantê-los como inimigos. Por que? Porque sem inimigos não se pode levantar muros (para separar “eles” de “nós”) e nem erigir fortalezas (que justifiquem um comando centralizado) ou palácios (para reinar sobre alguém); ou seja, a guerra é um engendramento que consiste em construir inimigos como pretexto para organizar cosmos sociais segundo padrões hierárquicos regidos por modos de regulação autocráticos (não democráticos).

Voltemos à definição computacional. Para que haja preempção é necessário que haja um kernel (um núcleo duro central, já dado como não desconstituível) que (acha que) tem o controle do tempo que será usado por cada processo e (que se arvora ao direito de exercer) o poder de tomar de volta este tempo e dá-lo para outro processo segundo seu esquema de prioridades. É, rigorosamente, um poder de julgar (o que ainda não aconteceu, mas pode acontecer no) futuro. Ou seja, é um poder de repetir passado, fazendo o mundo girar sempre em torno do mesmo eixo.

(7) O conceito mais nefasto para a democracia presente na ideologia militar é o de inimigo interno. Há razões para acreditar que esse construct tem como antepassados em linha direta padrões hierárquico-autocráticos da cultura patriarcal presentes no tribalismo dório. Talvez tenha sido esta a porta pela qual esses componentes patriarcais em estado puro entraram no chamado ocidente. Esparta e Creta (a pós-minoica, depois da chegada dos aqueus) e Siracusa, de algum modo supervivem na ideologia militar. É o conceito de inimigo interno que inspira as polícias políticas (e que levou, no Brasil, à criação do SNI).

Sim, padrões hierárquicos e autocráticos que estão presentes na cultura patriarcal há milênios foram identificados na cultura patriarcal do tribalismo dório. Encontramos vários deles na Krypteia (a polícia política espartana entre os séculos 6 e 4 a. C., uma polícia secreta que não apenas espionava os hilotas que “não conheciam seu lugar”, mas também assassinava os rebeldes e dissidentes potenciais que havia entre eles) e nas organizações secretas de oligarcas conhecidas como Synomosias, clubes aristocráticos que se identificavam como patriotas e que conspiravam contra a democracia em Atenas no mesmo período.

Em tempos mais recentes, a presença do conceito de inimigo interno é uma negação do Estado democrático de direito como fórmula encontrada pelos modernos para drogar o Leviatã (o Estado-nação, um fruto da guerra, da paz de Vestfália), sem o quê essa forma de Estado invadiria os direitos dos cidadãos, guerreando contra os do seu próprio povo.

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