in ,

O culto da ordem é um culto da morte

Não é  à toa que muitos autoritários adotam, como distintivo para seus grupos, o símbolo da caveira. Há um culto da morte.

Aliás, o culto da ordem é sempre um culto da morte. É preciso prestar atenção nos padrões.

Há muitos anos escrevi alguma coisa sobre isso. Foi no meu livro O Complexo Darth Vader, publicado em 1998 e logo depois recolhido. Trata-se de um pequeno capítulo, intitulado A Ordem separada do Caos, que reproduzo abaixo.

Claro que hoje teria alguns reparos a fazer no texto. Isso acontece com todos as coisas antigas que escrevemos. Mudaram as circunstâncias e mudamos nós. Mas o essencial da ideia já estava lá.

Os liberais, no sentido político do termo, o somos porque tomamos o sentido da política como a liberdade – como os democratas, desde o atenienses da passagem do século 6 para o século 5 a. C. – , não a ordem. A ordem preexistente e imposta top down – como queria a cultura do patriarcalismo dório, que se coagulou como padrão de organização e modo de regulação de conflitos em Esparta, Creta e Siracusa – se encarada como sentido da política, leva necessariamente à autocracia. Isso deveria fazer os que se dizem conservadores (mas que, na verdade, são retrogradadores ou reacionários) a refletir sobre o que de fato almejam.

Muito pior, entretanto, é o culto da ordem que alimenta as tendências anti-humanas presentes em diversas derivas da cultura patriarcal e que se manifesta – nas organizações militares e policiais – como exaltação do complexo: ordem, hierarquia, disciplina, obediência. Nesse sentido, o culto da ordem é um culto da morte.

A Ordem separada do Caos

O poder vertical foi introduzido na “terra dos homens” pelos próprios deuses, quer dizer, pela ideia que certos povos antigos tinham da divindade como instância superior à humanidade.

Os relatos mais antigos que encontramos falam de deuses que exigiam dos seres humanos trabalho e obediência às normas. Que aceitavam sacrifícios e instituíam intermediários na sua relação com o povo. Que diferenciavam-se dos seres humanos pelo conhecimento (tecnológico-mágico) e pela imortalidade (ou grande longevidade). Que separavam-se dos seres humanos, restringindo o acesso destes últimos aos seus espaços e equipamentos de circulação, moradia e vivência. Que mantinham a pureza de seus corpos e de sua descendência ocultando seus conhecimentos (em especial aqueles conhecimentos relativos à geração e manutenção da vida) e proibindo o manuseio de suas ferramentas e armas. Assim, os “deuses” sumérios forneciam o modelo para a vida na terra.

Os deuses sumérios forneciam o modelo para a busca espiritual dos seres humanos: ao invés de constituir humanidade, perseguir a super-humanidade. Ultrapassar os limites do humano (sobretudo o seu limite maior: a morte) tendo acesso aos conhecimentos que só os deuses possuíam. Para exercer a sabedoria, o poder e o domínio sobre as coisas, seres e pessoas, como os deuses exerciam. E para serem imortais, como os deuses o eram. Depois disso parece que todos querem subir para os céus – que é a casa dos deuses, isto é, a casa da vida, onde não se morre. Todos querem galgar os (de)graus (da escada) em busca de conhecimento e imortalidade. Até hoje esse modelo ainda vige em todos os sistemas de sabedoria da tradicionalidade. De modo que podemos dizer, sem medo de errar, que a mensagem-padrão foi transmitida com pleno êxito para as mais distantes regiões do tempo! Isto é o que se chama de tradição.

Isto é a tradição: ao nos transformamos naquilo que eram os deuses sumérios, repetimos o padrão concebido no passado, quer dizer, repetimos passado. Com isso, trancamos o futuro. É assim que nasce o poder! Sim. Os deuses sumérios são deuses necessários à ereção do poder vertical. Como todos os deuses não-humanizados, levam necessariamente à sistemas de dominação.

O que chamamos de poder é uma relação que transforma diferenças em separações. Poder vertical é aquele que estabelece uma ordem sagrada (hierarquia) na qual o futuro é afastado e colocado acima das possibilidades humanas. Sagrado queria dizer, no princípio sumeriano, restrito, reservado, separado. Para montar uma hierarquia é necessário separar o ser humano do seu futuro. Essa operação de separação do futuro foi realizada com a introdução, nas esferas espirituais da humanidade, de certa ideia de deus. Os sistemas de dominação do poder vertical só podem se instalar: a) se deus estiver fora da história, mas determinando a história; b) se deus estiver acima dos homens; c) se deus estiver no passado: como um criador, do mundo e do homem e como um ordenador do cosmos; d) se deus instituir intermediários humanos na sua relação com os seres humanos; e e) se deus exigir ou aceitar sacrifícios oferecidos por tais intermediários (que, inicialmente, eram os reis-sacerdotes).

A maneira pela qual o deus-do-Êxodo, dos profetas hebreus, teve que ser modificado para possibilitar o domínio dos reis e dos sacerdotes em Israel, constitui talvez o melhor exemplo histórico da necessidade, que têm os sistemas de dominação, de implantar uma certa ideia de deus (ou de futuro humano) para se instalar. Aquele deus dos profetas hebreus era um deus histórico, que não exigia culto e caminhava à frente do povo, estando pois, a rigor, no futuro. Ora, se deus estiver no futuro, então o poder vertical não consegue se materializar, uma vez que o seu Reino é utopia, não-lugar. Logo, os seres humanos não podem representá-lo num reino concreto, aqui e agora.

Acabamos nos transformando naquilo que eram os deuses sumérios, exceto por um “detalhe”: a imortalidade. Aqui parece estar o segredo! Ao falar da relação do homem com seu futuro estávamos falando da sua relação com a morte. Mas ao perseguir igualar-se ao modelo, super-humano, do ser que não morre, o homem envereda por um dos ramos da bifurcação que conduz ao poder vertical.

A ânsia de imortalidade, de escapar da transformação da morte para ser igual a um deus, leva o ser humano a querer paralisar o fluxo da vida, construindo para si um mundo imune à corrupção do tempo. Um mundo separado, reservado, conservado, no qual as possibilidades de futuro são congeladas. Nesse mundo a utopia vira mito e o mito vira crença e a crença repetida pelo rito cava um sulco por onde devem escorrer as coisas que ainda virão.

O ser humano constrói monumentos à perenidade, que ele mesmo não possui: sobretudo templos e túmulos. Cerca seus espaços de vivência. Separa-os dos demais espaços, para não ser contaminado pela impureza que pode apressar a dissolução da ordem que sustenta a sua vida biológica e social. É assim que nasce a cidade murada e fortificada, que é inicialmente um tempo mesmo. E, logo depois, também um túmulo. No templo o homem tenta, desesperadamente, comunicar-se com a fonte da vida – sempre em busca da imortalidade. Como não consegue, entrega-se ao túmulo consagrado, esperando alcançar outra vida.

É porque não aceita a transformação da vida que o ser humano resiste e tema a morte. Resiste ao fluxo que substitui e recombina os elementos vitais numa totalidade mais abrangente. Imaginando que a dissolução do seu ego seja a derrota suprema, o fracasso derradeiro, o ser humano luta para manter a integridade da ordem das coisas com o propósito de repetir as mesmas constelações de eventos e objetos que o sustentaram no passado. E aí repete indefinidamente o passado, desafiando os ritmos naturais. Tudo passa, mas eu não posso, porque não quero, passar. Assim fala o ego do predador.

Temendo a morte o ser humano passa a cultuar a morte. Cultua a morte porque quer ficar separado da morte. O culto da morte se exerce pelo sacrifício da vida. O medo da morte, que leva ao culto da morte, também leva o ser humano a matar.

O instrumento fundamental do culto da morte é a espada que tira a vida. Sim, a espada que separa, com a qual Marduk, o deus da ordem, cortou Tiamat, a deusa do caos. (Isto é: ordem separada do caos). A espada alquímica, símbolo da separatio, que corta o ovo que porta e alimenta a vida, levando à operação chamada coagulatio, através da discriminação e do julgamento. Com efeito, todas as obras que os seres humanos realizam para escapar da morte ou resistir ao fluxo transformador da vida são coagulações, materializações, cristalizações, congelamentos de fluxo. Sejam essas obras zigurates, pirâmides, muralhas colossais cercando templos-palácios e todas as organizações piramidais erigidas para manter a ordem (como o Estado, por exemplo).

O culto da morte é um culto da ordem. A ordem do mundo construído tem que ser mantida, custe o que custar. Para aplacar as forças ameaçadoras da dissolução, instaura-se o sacrifício, a oferenda ritual do sangue, do suor e das lágrimas de vítimas propiciatórias. Os sofrimentos infligidos a essas vítimas fornece a energia necessária para alimentar o sistema, mantendo “vivas” as realizações que o ego externalizou.

Os poderosos não torturam apenas porque querem obter informações estratégicas. A violação pela tortura é um ato ritual. A câmara de tortura é uma espécie de dínamo, central de energia, usina. É assim que o poder adquire uma característica maligna: quando impõe, de modo deliberado e instrumental, sofrimentos aos seres humanos para perpetuar um sistema de dominação. E é por isso que aliviar o sofrimento é a chave para a construção da humanidade ou a redenção do humano, isto é, para a formação da alma humana.

Darth Vader não tem alma. Ou seja, não formou a sua alma humana, o seu veículo para atravessar a morte. A sua nave (tecnológica) é o seu veículo-substituto. É um prisioneiro do seu império porque para manter esse império é obrigado a impor, continuamente, sofrimentos aos seres humanos. Mas Darth Vader faz tudo isso porque quer controlar o futuro. Significa que ele quer ser um deus, imortal. É para escapar da morte que ele constrói seu simulacro, seu veículo substituto para a alma humana. Mas se a alma humana é “feita” com a energia da compaixão, obtida nos atos gratuitos de promover a vida e a liberdade, compartilhar o alimento, aliviar os sofrimentos dos semelhantes, a sua nave-simulacro tem que se feita com a energia da violência, obtida nos atos instrumentais de tirar a vida, aprisionar os caminhos, se apoderar dos recursos vitais e infligir sofrimentos aos seres humanos julgados como diferentes.

Franco, Augusto. O Complexo Darth Vader. Brasília: Millennium, 1998. Capítulo 7.

A extrema-direita está descontente com Bolsonaro? Como, se ele é a extrema-direita?

Comentários a ‘O Fascínio de Platão’ de Karl Popper – Capítulo 10