A divulgação, no início deste outubro, da pesquisa Datafolha que revelou que a maioria dos brasileiros prefere a democracia, foi acolhida com entusiasmo por 11 entre 10 jornalistas e analistas políticos. Desde o início entrei em várias controvérsias ao dizer que as coisas não são bem assim. E, para mostrar que as coisas não são bem assim, lembrei dos levantamentos do Latinobarômetro – veja o Informe Latinobarometro 2017 – e das análises e classificações da Freedom House e da The Economist Intelligence Unit. A propalada adesão da imensa maioria dos brasileiros ao regime democrático tem a ver com sua interpretação do que seria democracia, confundida com regime eleitoral. Sobre isso, aliás, cheguei até a publicar a seguinte nota:
DEMOCRACIA NÃO É ELEIÇÃO
Para os que compram acriticamente a ideia de que a maioria esmagadora dos brasileiros prefere a democracia. Infelizmente, não prefere. É claro que se você perguntar a uma pessoa se ela prefere democracia ou ditadura, ela responderá que prefere a democracia. Quem não quer ter o direito de escolher seus governantes e legisladores? Mas ela responde assim porque confunde democracia com eleição. Ora… a maior parte das 60 ditaduras que existem hoje no mundo também promove algum tipo de eleição.
A legitimidade democrática depende da combinação de seis critérios: liberdade, eletividade, publicidade ou transparência (e accountability), rotatividade ou alternância, legalidade e institucionalidade. A eletividade não é o único critério (a não ser para os populistas i-liberais e majoritaristas). Se algum critério pudesse ser apontado como o mais importante, seria a liberdade. Ocorre que trata-se de um sistema em que uma variável depende das outras. As seis variáveis se combinam e podem estar todas (ou algumas, pelo menos) presentes em algum momento e, depois, de repente, ficarem, em parte, ausentes. Ou seja, o que há é um processo de democratização, sempre sujeito a idas e vindas, avanços e retrocessos, e não um modelo que se aplica ou que se constrói, como um jogo de montar. A legitimidade democrática é uma constelação de vários fatores, como mostra esquematicamente a imagem abaixo:
Ademais, lembrei que todas as pesquisas sobre a opinião dos brasileiros sobre indicadores de democracia são decepcionantes, pelo menos, no que tange às liberdades civis. Liberdades civis são, possivelmente, a chave para verificar o índice de democratização da sociedade (1) e (2).
Por último, um estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública baseado em pesquisa, também do Datafolha, e divulgado há um ano (em 06/10/2017), mostra que apoio dos brasileiros a posições autoritárias fica em 8,1 em uma escala de 0 a 10. Tratei do assunto no artigo (de 07/10/2017) O apoio popular a posições autoritárias.
Hoje cedo um amigo me mandou um post de Fabio Wanderley Reis no Facebook – intitulado “Onda fascista”, ou mais que uma onda? – lembrando que a população não está muito favorável aos direitos civis. Reproduzo abaixo:
“Onda fascista”, ou mais que uma onda?
Fábio Wanderley Reis, Facebook, 06/10/2018
A Folha de S. Paulo publicou ontem matéria sobre dados do Datafolha que mostram aumento do apoio à democracia no Brasil, justamente no momento em que o processo eleitoral passa a exibir o que alguns, como Ciro Gomes, chamaram de “onda fascista”. Velhas pesquisas do Latinobarômetro, de Santiago do Chile, caracterizam o Brasil antes como atrasado quanto a esse apoio em comparação com os outros países da América Latina – e em 2002, na verdade, revelava que nada menos de 63 por cento dos brasileiros declaravam não saber ou simplesmente não respondiam diante da pergunta sobre o significado de democracia, contra 46 do segundo colocado, El Salvador.
Mas dados de pesquisas brasileiras mostram há tempos um quadro de maior complexidade. Por um lado, há, sim, apoio à democracia quando ela é posta, sem mais, em termos eleitorais ou de mero confronto abstrato com ditadura ou regimes autoritários. Mas, por outro lado, quando as perguntas se referem à face da democracia relacionada com os direitos civis (expressa, note-se, em termos de temas dramáticos e violentos como a ação de “esquadrões da morte”, o linchamento de bandidos pela população e o recurso à tortura pela polícia), o que aparece é o fascismo, indicando que nosso caso não é o de uma “onda” fascista momentânea. Isso surge com clareza nos dados de pesquisa que eu mesmo coordenei, feita em 1991-1992, com base em amostra geral da população de Belo Horizonte e amostras especiais de trabalhadores de Minas e São Paulo. Em vez da defesa dos direitos civis das pessoas, a disposição dos entrevistados é bem outra: a categoria dos altamente favoráveis à defesa dos direitos civis não vai além do nível dos 18 por cento; e vamos encontrar, por exemplo, proporções que variam de 59 a 51 por cento ao passarmos de pessoas de nível primário de escolaridade para as de nível correspondente ao antigo ginasial concordando com a ação dos esquadrões da morte e com o linchamento de bandidos, concordância esta que alcança ainda os 30 por cento mesmo no nível universitário.
Mas há algo mais. Indagou-se dos entrevistados se concordavam com um enunciado que, talvez com alguns reparos, se diria inspirado em Bolsonaro: “em vez de partidos políticos, o que a gente necessita é um grande movimento de unidade nacional dirigido por um homem honesto e decidido” (registro que a redação foi de Guillermo O’Donnell, com quem colaborei durante algum tempo). Não obstante o claro ânimo anti-institucional e autoritário do enunciado, ele conta com proporções altíssimas de concordância nas amostras estudadas, que variam, por exemplo, entre 79 e 86 por cento nos níveis de escolaridade iguais ou inferiores ao antigo ginasial, alcançam 65 por cento entre as pessoas de nível colegial e correspondem ainda a 36 por cento mesmo entre as de nível universitário – a única categoria em que não se tem a concordância de uma ampla maioria.
Assim, parece que o que fez Bolsonaro foi servir como catalisador de disposições que já se encontravam presentes, apesar de não termos prestado muita atenção nelas. E há pouca razão para dúvida de que o apoio a ele vem inequivocamente do que ele exibe de ruim e violento no que diz e faz. É melhor estarmos preparados.
Não chamaria isso de fascismo, stricto sensu, ainda que essa lama da cultura patriarcal, que está depositada no fundo do poço da consciência (ou inconsciência) social da população, favoreça a comportamentos fascistoides. Bolsonarismo e fascismo são fenômenos diferentes ainda que haja isomorfismos entre ambos, não propriamente nos seus aspectos políticos e sim sociais. Já mostrei, em artigo recente, que Bolsonaro não pode ser caracterizado como fascista, ainda que – repito – haja inegáveis isomorfismos.
O fascismo e o comunismo foram fenômenos políticos datados. Hoje são remanescências, vestigiais. Os que querem ressuscitá-los para se afirmar a pretexto de combatê-los, transformam esses comportamentos políticos em universais e eternos. Então a esquerda chama de fascista qualquer um que a contrarie. E o mesmo faz a direita, chamando de comunistas os que a ela se opõem. Se criticamos a esquerda, sempre algum militante petista nos chama de fascistas. Se criticamos a direita, sempre algum militante bolsonarista nos chama de comunistas. Se fazemos as duas coisas somos, ao mesmo tempo, fascistas e comunistas. Para resolver essa contradição, alguns ideólogos da “nova direita” começaram a dizer que o fascismo é a mesma coisa que o comunismo, pois ambos seriam de esquerda. O truque é parecido com aquele usado por alguns ideólogos da “velha esquerda”: eles diziam que o fascismo é a face mais brutal do capitalismo (segundo Stalin, “o fascismo é a ditadura explícita e terrorista dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro”). Vejam como ideologia é droga pesada.
Bolsonaro não é fascista e sim populista-autoritário, na linha Recep Erdogan ou Viktor Orban. Assim como Haddad não é comunista e sim neopopulista (3). Isso é mais perigoso do que o populismo-autoritário bolsonarista? Do ponto de vista político, pode ser, sim. Mas o maior perigo bolsonarista é social: abrir as comportas para a subida da lama da cultura patriarcal que estava contida no fundo do poço.
Notas
(1) Já havia percebido isso quando fiz a experiência de reordenar o ranking Democracy Index 2017 (da The Economist Intelligence Unit) usando apenas esse indicador (ou seja, Liberdades Civis, deixando de lado todos os outros quatro: Processo Eleitoral e Pluralismo, Funcionamento do Governo, Participação Política, Cultura Política). Significativamente, a lista que resultou nos TOP 30 não foi tão diferente da lista fornecida com a aplicação dos cinco indicadores (New Zealand, Ireland, Canada, Australia, Norway, Iceland, Finland, Luxembourg, Uruguay, Sweden, Germany, Mauritius, Lithuania, Denmark, Switzerland, Netherlands, United Kingdom, Austria, Costa Rica, Chile, Portugal, Botswana, Taiwan, Spain, Japan, Cabo Verde, Cyprus, Jamaica, Malta).
(2) O indicador Civil Liberties, no Democracy Index da The Economist Intelligence Unit é composto a partir do seguinte levantamento:
1. Existe uma mídia eletrônica gratuita?
1: Sim
0,5: A mídia pluralista, mas controlada pelo estado, é muito favorecida. Um ou dois proprietários privados dominam a mídia
0: Não
2. Existe uma mídia impressa gratuita?
1: Sim
0,5: A mídia pluralista, mas controlada pelo estado, é muito favorecida. Existe um alto grau de concentração da propriedade privada dos jornais nacionais
0: Não
3. Existe liberdade de expressão e protesto (ou apenas restrições geralmente aceitas, como proibir a defesa da violência)?
1: Sim
0,5: Os pontos de vista minoritários estão sujeitos a algum assédio oficial. As leis de difamação restringem muito o escopo para liberdade de expressão
0: Não
4. A cobertura da mídia é robusta? Existe discussão aberta e livre de questões públicas, com uma diversidade razoável de opiniões?
1: Sim
0,5: Existe liberdade formal, mas alto grau de conformidade de opinião, inclusive por autocensura, ou desestímulo a opiniões minoritárias ou marginais
0: Não
5. Existem restrições políticas ao acesso à internet?
1: Não
0,5: Algumas restrições moderadas
0: Sim
6. Os cidadãos são livres para formar organizações profissionais e sindicatos?
1: Sim
0,5: Oficialmente livre, mas sujeito a algumas restrições
0: Não
7. As instituições oferecem aos cidadãos a oportunidade de solicitar com sucesso ao governo a reparação de queixas?
1: Sim
0.5: Algumas oportunidades
0: Não
8. Uso de tortura pelo Estado
1: Tortura não é usada
0: Tortura é usada
9. O grau em que o judiciário é independente da influência do governo. Considere-se as opiniões de observadores legais e judiciais internacionais. Os tribunais já emitiram um julgamento importante contra o governo ou um alto funcionário do governo?
1: Alta
0,5: Moderada
0: Baixa
10. O grau de tolerância religiosa e liberdade de expressão religiosa. Todas as religiões são autorizadas a operar livremente ou são restringidas? O direito ao culto é permitido tanto em público como em particular? Alguns grupos religiosos se sentem intimidados pelos outros, mesmo que a lei exija igualdade e proteção?
1: Alta
0,5: Moderada
0: Baixa
11. O grau em que os cidadãos são tratados de forma igual perante a lei. Considere se os membros favorecidos de alguns grupos são poupados do processo legal.
1: Alta
0,5: Moderada
0: Baixa
12. Os cidadãos desfrutam de segurança básica?
1: Sim
0.5: O crime é tão difundido que põe em risco a segurança de grandes segmentos
0: Não
13. Até que ponto os direitos de propriedade privada são protegidos e os negócios privados estão livres de influência indevida do governo.
1: Alta
0,5: Moderada
0: Baixa
14. Até que ponto os cidadãos gozam de liberdades pessoais. Considere a igualdade de gênero, direito de viajar, escolha de trabalho e estudo.
1: Alta
0,5: Moderada
0: Baixa
15. Percepções populares sobre a proteção dos direitos humanos; proporção da população que pensa que os direitos humanos básicos estão bem protegidos.
1: Alta
0,5: Moderada
0: Baixa
Se disponível, da World Values Survey: % de pessoas que pensam que os direitos humanos são respeitados em seu país
1 se mais de 70%
0,5 se 50% a 70%
0 se menos de 50%
16. Não há discriminação significativa com base em raça, cor ou credo das pessoas.
1: Sim
0,5: Sim, mas algumas exceções significativas
0: Não
17. Medida em que o governo invoca novos riscos e ameaças como desculpa para restringir as liberdades civis.
1: Baixa
0,5: Moderada
0: Alta
(3) O lulopetismo é um projeto neopopulista (bolivariano, mas à brasileira) que tem como objetivo não dar um golpe de Estado em termos tradicionais e sim homeopaticamente: conquistando hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para nunca mais sair do governo. O lulopetismo quer alterar o DNA da nossa democracia, mas não de uma vez, por meio de um putsch de cervejaria, e sim progressivamente, vencendo eleições sucessivamente para ganhar tempo e captar os recursos suficientes para operar essa revolução “por dentro” das instituições.
Deixe seu comentário