O caso Queiroz-Michele-Bolsonaro, até agora inexplicado, ao que tudo indica continuará inexplicado. Como não têm explicação plausível, os envolvidos apostam no esquecimento.
Os bolsonaristas falam do alto dos 58 milhões de votos que Bolsonaro obteve nas urnas de 2018 (parecem até os petistas defendendo Dilma no impeachment, com seus 54 milhões de votos, lembram?).
Os jornalistas, colunistas e analistas políticos – com honrosas exceções – ficam meio quietos para não serem confundidos com os petistas que não sabem perder. Contribuem, assim, para que o assunto morra. Há exceções, é claro. Reinaldo Azevedo é uma delas. E Celso Rocha de Barros é outra.
Reinaldo Azevedo faz uma interessante comparação entre o regime cubano, que sequestrava parte do salário dos médicos, com o regime da família Bolsonaro. Pode até não ser, mas muita coisa está – e ficará – sem explicação convincente, inclusive o cheque para a primeira-dama (a devolução de um suposto empréstimo que teria sido pago na conta de Michele porque Bolsonaro não tem tempo de sair para ir ao banco, como se fosse preciso ir fisicamente à agência para receber um depósito). Ele escreveu ontem (10/12/2018) no seu blog:
CUBANOS DE BOLSONARO?
Aposta de eleito e filhos é que imprensa e opinião pública vão esquecer caso do motorista de R$ 1,2 milhão
A aposta dos Bolsonaros — do pai, Jair, e dos filhos, Flávio em particular, é que o assunto da movimentação financeira de Fabrício Queiroz, ex-motorista e segurança do senador eleito da família, acabe morrendo, caindo no esquecimento da população e da imprensa. Queiroz movimentou, como se sabe, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017 mais de R$ 1,2 milhão. Neste domingo, o presidente eleito voltou a se referir ao assunto e afirmou que é o ex-assessor de seu filho quem tem de das explicações. Indagado se via a coisa toda com naturalidade, afirmou o presidente eleito: “Ele tem que explicar, pode ser, pode não ser”. Mas tentou minimizar a coisa, sugerindo tratar-se de pequenos valores transacionados entre pessoas próximas e familiares: “Um ao longo de um ano transferiu 800 reais. O outro transferiu 1.500 reais, poxa.”
Bem, as explicações, até agora, são muito fracas, e a família Bolsonaro precisa eliminar a desconfiança de que vigora entre os funcionários da turma uma espécie de regime castrista, à moda médicos cubanos, né? Vale dizer: o salário cheio é um, mas o que vai para o bolso de quem trabalha é muito menos em razão, naquele caso, do confisco aplicado pelo regime comunista, e, neste caso, do eventual confisco aplicado pelo regime bolsonarista — que seria, então, uma espécie de comunismo oligárquico e famiilista. Um cheque de R$ 24 mil foi para a conta de Michelle, mulher do presidente eleito. Ele disse que é pagamento de dívida. Nada declarou em seu Imposto de Renda.
Tanto o presidente eleito, Jair Bolsonaro, como seus filhos estão fazendo um esforço danado para que o imbróglio envolvendo Fabrício Queiroz, o ex-motorista de Flávio, não se pareça com aquilo que se parece: a suspeita óbvia é a de que Queiroz fosse um arrecadador, para a família Bolsonaro, de salário dos funcionários do agora senador eleito. E, por óbvio, sobra o questionamento se a prática não seria uma constante nos respectivos gabinetes dos quatro políticos: além de Jair e Flávio, também Eduardo e Carlos. Uma coisa e certa: a prática do motorista, amigo pessoal do presidente eleito, pode ser considerada tudo; corriqueira não é. Até porque a família inteira do ex-assessor, mulher e duas filhas, está enredada no caso.
Ora, nada menos de nove assessores de Flávio Bolsonaro depositaram dinheiro na conta de Queiroz, somando, em um ano, R$ 184 mil. Desse total, pouco mais de R$ 84 mil saíram da conta de Nathalia, uma de suas filhas, que estava lotada no gabinete de Flávio e depois foi transferida para o de Jair. No mesmo dia, 12 de junho de 2016, Evelyn, a irmã, foi nomeada. Nos seis dias seguintes, os saques em dinheiro da conta de Queiroz, o pai das duas, chegaram a R$ 58 mil. Além das filhas e da mulher — Márcia Oliveira Aguiar — repassaram dinheiro ao motorista os seguintes funcionários: Agostinho Moraes da Silva, Jorge Luís de Souza, Luiza Souza Paes, Raimunda Veras Magalhães, Wellington Rômulo da Silva e Marcia Cristina Nascimento dos Santos.
No sábado [09/12/2018], Jair Bolsonaro tentou ver a coisa toda com naturalidade. Disse:
“Se você pegar teu ciclo de amizade na imprensa, num quartel, num hospital, é normal entre aqueles funcionários um ajudar o outro, é normal acontecer isso daí. E não foi diferente na Câmara, na Assembleia Legislativa. A gente se socorre de gente que está ao lado e não de terceiros. Natural”.
Bem, não sei como é num quartel ou num hospital. Na imprensa, não é comum acontecer, não. Até porque, né?, se jornalista pretende ser bem-sucedido tomando empréstimo de amigo, o negócio é pescar em águas de outra categoria: a chance de pedir a um colega ainda mais duro do que ele próprio é razoável. Não! Bolsonaro fale, então, pelo quartel… Na imprensa, não é assim, não. E, quero crer, motoristas não atuam como bancos informais em nenhuma categoria.
O tom dos Bolsonaros em relação ao assunto, no entanto, está muito menos estridente e mais cuidadoso do que o empregado na sexta por Onyx Lorenzoni, que resolveu ter um chilique quando indagado a respeito, misturando, note-se, a investigação prévia de que ele próprio é alvo — acusado por delatores da JBS de recebimento de dinheiro por meio de caixa dois — com as suspeitas que recaem sobre a família do presidente eleito. Como havia sido ameaçado por Bolsonaro com a BIC da demissão, parece que Onyx lembrou ao chefe que todos, agora, estão no mesmo barco.
A questão, por enquanto, é mais política do que jurídica ou policial. Não é proibido transferir dinheiro para a conta de terceiros, não importa se a pessoa é motorista, presidente, assessor parlamentar ou camelô das insatisfações alheias. Só que esses recursos não podem ser oriundos de atividades ilícitas ou obtidos de forma fraudulenta. A eventual transferência de uma parcela do salário de funcionários de um deputado federal, estadual ou vereador para o titular do mandato constitui crime. Por enquanto, está caracterizado o que pode ser chamado de “acontecimento estranho”, acompanhado de “notáveis coincidências”. O Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) não acusa ninguém de nada porque não é a sua função. A bola, agora, estará com o Ministério Público Federal. Caso o órgão determine a abertura de um inquérito policial, certamente aqueles nove funcionários, incluindo os três membros da família de Fabrício Queiroz, serão chamados a prestar depoimento.
Uma nota: em processo de 2008, Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Bolsonaro, o acusou de ocultação de patrimônio em sua declaração oficial de 2006, quando foi candidato a deputado federal (e venceu). À Justiça Eleitoral, declarou bens no valor de R$ 433.943, mas Ana anexou uma relação de bens e de imposto de renda que somava um patrimônio real de R$ 4 milhões em valores da época. Ana também alegou no processo que a renda do deputado superava, então, os R$ 100 mil mensais, apesar de a soma de suas rendas conhecidas como deputado e militar da reserva ser de R$ 35.300. Não ficou clara a origem do resto do dinheiro. Ela acusou ainda o ex-marido — os dois fizeram as pazes depois — de ter furtado US$ 30 mil e mais R$ 800 mil (R$ 600 mil em joias e R$ 200 mil em dinheiro vivo) de um cofre em uma agência do Banco do Brasil, caso registrado em boletim de ocorrência no mesmo dia do furto (26 de outubro de 2007). Alberto Carraz, gerente do BB e amigo de Bolsonaro até hoje, confirma apenas que o conteúdo sumiu. Levantamento feito pela Folha no ano passado evidencia que os bens que estão em nome de Bolsonaro e de seus filhos chegam, em valores de mercado, a R$ 13 milhões”.
E Celso Rocha de Barros perguntou ontem, na sua coluna da Folha de São Paulo:
“Qual a probabilidade de aparecer uma denúncia de corrupção quente, antes da posse, que não tenha aparecido na campanha?
Pois é.
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) detectou que Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador recém-eleito Flávio Bolsonaro, movimentou em 2016 e 2017 muito mais dinheiro do que poderia, plausivelmente, ter ganho com suas fontes de renda conhecidas. Entre os vários depósitos suspeitos feitos por Fabrício, R$ 24 mil para Michelle Bolsonaro, nossa nova primeira-dama.
O presidente recém-eleito, aparentemente, achou que ainda não estava suficientemente envolvido no escândalo e resolveu dizer que ele, Jair Bolsonaro, emprestou dinheiro para Fabrício Queiroz e que o depósito para a primeira-dama seria pagamento do empréstimo.
Olha, sinceramente, se era para inventar um negócio desses, era melhor ter pedido ajuda ao Olavo. Ele teria contado que Queiroz era do Foro de São Paulo, que o dinheiro havia sido roubado por George Soros usando a Lei Rouanet, que Bolsonaro nasceu no Quênia, enfim, algo que tampouco nos convenceria, mas, ao menos, nos manteria entretidos.
Assessor de político depositando dinheiro para a família do chefe é o tipo de coisa que dispara todos os alarmes de quem investiga corrupção. Na mesma hora em que as denúncias foram publicadas, por exemplo, o cientista político Sérgio Praça lembrou do caso do esquema de distribuição de dinheiro de PC Farias no governo Fernando Collor”.
Não adianta retrucar que Reinaldo é temerista e gilmarista e Celso é petista. Porque restam questões que precisam ser respondidas, sem enrolação, independentemente de quem as formule. Por que o cheque do motorista Queiroz foi para a conta de Michele e não de Bolsonaro? Bolsonaro disse que é porque não pode sair de casa, mas por que ele precisaria ir à agência para receber um depósito em conta corrente? Ele não tem internet banking, cartão de débito, talão de cheque? Onde está o registro bancário do suposto empréstimo? Como um motorista conseguiu movimentar 1 milhão e 200 milhões em um ano? De onde veio esse dinheiro? Por que quem movimenta todo esse dinheiro precisa de um empréstimo de 40 mil? Por que o motorista fez mais de um saque em dinheiro a cada dois dias úteis? Para que ele precisava de tanto dinheiro vivo? Por que tantos funcionários da família Bolsonaro depositavam regularmente na conta do motorista?
Se essas questões não forem respondidas (e não serão, porque é impossível explicar), é óbvio que ficará claro, para quem quiser ver, que há corrupção.
Para completar – e agravar o caso – a Folha de hoje diz que “os maiores saques feitos em 2016 pelo policial militar Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), foram precedidos, geralmente na véspera, de depósito de valores de mesmo patamar. Essa movimentação é característica de uma conta de passagem, na qual o real destinatário do valor creditado não é o seu titular. O uso de dinheiro em espécie nas duas pontas da operação reforça esse indício”.
Montar uma quadrilha familiar de parlamentares para sequestrar e embolsar parte dos salários de assessores (pagos com dinheiro público) é corrupção. Quem faz isso é criminoso. Se, para disfarçar, ainda faz marketing – pessoal e familiar – denunciando a corrupção dos outros, é hipócrita e manipulador.
O fato é que caiu a máscara de honestidade dos Bolsonaro. Cá pra nós: isso não parece bem uma família normal. É uma organização política familiar que adota métodos duvidosos de enriquecimento. Pode até não ser, mas parece mais uma camorra. Bolsonaro, entretanto, foi sincero: a família em primeiro lugar.
Alguém, com picardia, poderia dizer o seguinte. Todo mundo conhece o Bolsa Família. Mas só agora ficamos sabendo que havia também outro programa: o Bolso Família. Um neologismo talvez tenha de ser cunhado: ‘bolsocorrupção’. É aquela que vai para o bolso da família.
Os bolsonaristas não sabem dizer outra coisa senão que o PT roubou mais. Ah! Se o PT roubou mais, tudo bem.
As pessoas pensavam e algumas diziam. Eles são broncos, têm ideias extremistas, mas pelo menos são honestos. Agora estamos vendo que isso não era bem assim: eles são apenas cínicos, imorais como todos os moralistas, mentirosos como todos os donos da verdade.
Agora que caiu a máscara de honestidade da família Bolsonaro, os bolsonaristas vão ter que popularizar a equação olavista: o comuno-larápio (porque todo comunista é corrupto e todo corrupto é comunista ou serve aos interesses globalistas). Então vai ficar assim: há o corrupto do bem (o corrupto anticomunista) e o corrupto do mal (o corrupto comunista). Os corruptos do mal são o problema. Os outros são um bem, porque ajudam a eliminar os corruptos do mal.