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Açoitando cavalos mortos

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AÇOITANDO CAVALOS MORTOS

O que Bolsonaro fez na pandemia é infinitamente mais grave do que os delitos de um capoeiro que estão vindo à luz agora.

Por isso, ele deveria ter sofrido impeachment nos anos 2020-2021. Entretanto, apesar das centenas de milhares de mortos adicionais em razão da irresponsabilidade, da incúria e da crueldade mesmo de quem chefiava o governo, Lula e o PT não se esforçaram para promover um movimento pelo impedimento do presidente inepto (e até se manifestaram contrariamente à medida constitucional) porque era conveniente, para eles, mantê-lo no governo como um adversário mais fácil de derrotar em 2022.

Entenda-se bem: o objetivo estratégico do PT não era remover Bolsonaro e sim substituí-lo por Lula. Num movimento pelo impeachment novas lideranças poderiam surgir, um centro democrático poderia se articular e seria mais difícil mistificar a vitória eleitoral do PT como a volta da democracia.

Claro que o bolsonarismo é um perigoso ataque antissocial às bases da nossa democracia. Mas – tirada a rede que o produziu e o casamento fortuito de pessoa com preparação – Bolsonaro, em si, é apenas um populista-eleitoreiro oportunista (que descobriu que repetir que “bandido bom é bandido morto” rendia votos no Rio) e, pelo que noticia fartamente a imprensa há anos, dado a ligações com o submundo do crime (e às milícias ou à banda podre da polícia) e a pequenos golpes: rachadinhas (aquele peculato “que todo mundo faz”), compras de imóveis com dinheiro em espécie (no mínimo para fraudar o erário), apropriação e venda de joias e outros bens do Estado brasileiro, sonegação de impostos e todo tipo de trambiques de um muambeiro.

Não foi a melhor saída para a democracia. Deram a Bolsonaro mais dois anos para continuar erodindo nossa democracia: atacando as instituições e cometendo crimes. Só para tomar o seu lugar em 2023. Ele ficou inelegível, sim, mas depois de perder a eleição (e com chances reduzidas de concorrer competitivamente num próximo pleito). Seus seguidores tentaram dar um golpe, sim, mas cenográfico (sem armas e sem articulação com quem possuia de fato as armas) depois que Lula já estava no governo. A justiça (retardatária) vem sendo celebrada numa vibe de vingança – não raro atropelando procedimentos próprios de um Estado democrático de direito.

É meio que uma farsa. Não há uma liderança bolsonarista realmente importante entre as centenas de manicures, pequenos comerciantes, donas de casa, aposentados e desocupados que estão sendo presos preventivamente e processados pela manifestação golpista de 8 de janeiro.

A militância lulopetista (inclusive nos grandes meios de comunicação) virou torcida organizada para Bolsonaro ser preso. Já há vários meses estamos tendo uma dose diária daqueles “dois minutos de ódio” (ampliado, porém, em muitas horas) do “1984” de Orwell. É óbvio que, comprovando-se os crimes que cometeu e, havendo razões para tanto, ele deve ser preso – assim como seus auxiliares, civis e militares, comparsas nos delitos. Mas isso agora de pouco adiantará para recuperar os terrenos erodidos pela passagem infeliz de Bolsonaro na presidência e para desconstituir a ameça antissocial do bolsonarismo (no médio prazo, dependendo como a revanche for praticada, isso pode até ter um efeito inverso).

É como açoitar cavalos mortos. Mas enquanto não houver pacificação, uma nova leva de potros pode estar sendo alimentada. E não sabemos ainda como vamos nos proteger dos açoitadores.

Why the Defenders of Liberal Democracy Need to Stand Up

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