in ,

Sócrates na praça: o livro de I. F. Stone

DEMOCRACIA: LIVROS & PRAÇAS

Pessoal, vai ser hoje (sábado, 19 de agosto de 2023) o primeiro evento temático da iniciativa DEMOCRACIA: LIVROS & PRAÇAS, promovida por Gabriel Azevedo em parceria comigo. Em cada mês, até o final do ano, vamos realizar um evento de aprendizagem da democracia em uma praça diferente de Belo Horizonte. Hoje vai ser na Praça da Assembléia, a partir das 15h00. O evento é gratuito. O tema é o livro O Julgamento de Sócrates, de I. F. Stone (1988).

Vejam abaixo um resumo dos destaques importantes do ponto de vista da aprendizagem da democracia.

O JULGAMENTO DE SÓCRATES

Trata-se do livro de I. F. Stone (1988), O Julgamento de Sócrates, tradução brasileira de Paulo Henriques Britto, do original em inglês The Trial of Socrates, publicada pela Editora Schwarcz (São Paulo: Companhia das Letras, 2005).

I – O Sócrates que chegou até nós foi uma construção de adversários da democracia

1 – Stone nos diz que temos um Sócrates xenofôntico, um Sócrates platônico, um Sócrates aristofânico e um Sócrates aristotélico (mas Aristóteles só nasceu 15 anos após a morte de Sócrates). Há também uma apologia de Sócrates de Libânio (orador grego do século IV d. C.). Problema: nenhum dos biógrafos de Sócrates era defensor da democracia e alguns, em particular – como Xenofonte e Platão – eram declarados adversários da democracia.

II – A democracia ateniense não era a mesma coisa que a república romana (uma oligarquia)

2 – Ao estudar a vida (e a morte) de Sócrates, Stone percebeu que a Atenas democrática foi “uma sociedade em que a liberdade de pensamento e de expressão floresceu num grau jamais visto antes e que pouquíssimas vezes foi igualado posteriormente”. E ele não foi ingênuo a ponto de achar que a mesma coisa aconteceu em Roma: “ao estudar os procedimentos eleitorais e as regras de debate nas assembleias populares da república romana ao lado dos processos análogos da assembleia ateniense, vemos claramente o contraste entre os dois sistemas políticos, aquele uma oligarquia mal disfarçada, este uma democracia direta integral”.

III – O DNA da democracia: autogoverno (ou auto-organização societária)

3 – Stone desmascara a visão apologética (e desonesta) de Platão: “o conflito entre Sócrates e sua cidade natal teve início porque havia divergências profundas entre ele e a maioria dos atenienses de sua época”. Ele deixa claro que a democracia ateniense era um “sistema de autogoverno” (mostrando que ele soube decifrar o “DNA” da democracia: autogoverno, quer dizer, um regime sem um senhor). E também afirma que as ideias de Sócrates não expressavam o que pensavam os democratas atenienses.

IV – A pólis é uma comunidade política (de cidadãos) não um rebanho (de súditos)

4 – Segundo Stone, a “primeira e a mais fundamental dessas discordâncias [entre Sócrates e os democratas atenienses] dizia respeito à natureza da comunidade humana. Seria ela, como afirmavam os gregos, a pólis — a cidade livre? Ou seria, como disse Sócrates tantas vezes, um rebanho?” Esta é, de fato, a discordância fundamental dos democratas em relação ao que pregava Sócrates. A pólis não era, como se acredita, a cidade-Estado e sim a koinonia (comunidade) política. Como comunidade política (que, portanto, se auto-regulava) não poderia nunca ser um rebanho (que é regulado heteronomamente por um pastor).

V – O homem não é um animal político

5 – Para os democratas atenienses do século 5, porém, o homem não era um animal político (zoon politikon), ao contrário do que escreveu Aristóteles. Não há uma substância política original depositada em cada indivíduo que oriente os humanos para o fazer político. A política é um modo de interação: ela só aparece, como percebeu Hannah Arendt, em meados do século passado, no entre-os-homens.

VI – A pólis não era o Estado e sim a comunidade política

6 – E a pólis, ao contrário do que diz Stone, não era o Estado (tal como os Estados existentes na época, as cidades-Estado) e sim uma comunidade política. Stone escreve que “quando afirma que a pólis existe “por natureza”, Aristóteles quer dizer que ela decorre da natureza do homem, de um senso de justiça intrínseco”. Há aqui uma imprecisão ou um equívoco mesmo de Aristóteles (de certo modo, endossado por Stone). A comunidade democrática não decorre da natureza humana e sim do modo como as pessoas se organizam e regulam seus conflitos. Do contrário a democracia teria aparecido “naturalmente” em outras épocas e lugares antes de surgir em Atenas na passagem do século 6 para o século 5 a.C. Mas ela só apareceu porque formou-se na Agora (a praça do mercado de Atenas) uma rede de conversações entre os homens livres, com topologia mais distribuída do que centralizada e porque essas conversações recorrentes questionaram a tirania do filho de Psistrato que governava na época. Esse questionamento foi a ação política da rede de pessoas que inventou a democracia pela primeira vez.

VII – A democracia não é o regime da maioria e sim o regime de qualquer um

7 – Stone observa que “tanto nas oligarquias, em que a cidadania era restrita, quanto nas democracias como Atenas, em que todos os homens nascidos livres eram cidadãos, os principais cargos públicos eram preenchidos por eleição, mas muitos outros eram ocupados por sorteio, para que todos os cidadãos tivessem as mesmas oportunidades de vir a participar do governo”. Mas o principal que deve ser destacado na questão do sorteio não é dar a todos oportunidade de participar do processo político e sim afirmar que a democracia não é o regime da maioria e sim o regime de qualquer um. Ou seja, como o sujeito político era a Ecclesia (a assembléia), tanto fazia que um ou outro fosse escolhido.

VIII – Qualquer governo de sábios é autocrático (e, no limite, totalitário)

8 – Stone observa que “o germe do totalitarismo já está evidente na formulação da teoria de governo de Sócrates que aparece nas Memoráveis de Xenofonte, a primeira e mais completa exposição de suas propostas”. Enquanto os democratas atenienses acham que os cidadãos é que deveriam governar a cidade”, Sócrates achava que o poder deveria ser exercido por “aquele que sabe”. Sim, o germe do totalitarismo aparece no Sócrates xenofôntico e no platônico. Xenofonte e Platão, os principais biógrafos de Sócrates, eram inimigos da democracia e apreciavam o regime vigente em Esparta (como o mais próximo de um Estado ideal). O primeiro, inclusive, residia (ou residiu por um grande período) em Esparta.

IX – A democracia é um regime baseado na opinião, não no conhecimento (técnico ou científico): ou seja, é o único regime que não desvaloriza a opinião em relação ao saber

9 – Stone escreve que “Sócrates não previa… salvaguardas que limitassem o poder dos governantes. Sua premissa básica — segundo Xenofonte — era que “cabe ao governante dar ordens e cabe aos governados obedecer”. Isso certamente parecia uma retomada da velha monarquia, só que tornada absoluta. Mas Sócrates responderia que estava propondo um novo tipo de governo — um governo, diríamos nós hoje, exercido por peritos”. Sócrates argumentava (segundo Xenofonte) que “num navio, aquele que sabe, governa, e o proprietário [do navio] e todos os outros [que estão nele] obedecem àquele que sabe”. Do mesmo modo, argumenta Sócrates, “na agricultura, os proprietários; na doença, os pacientes” e, “no treinamento”, os atletas apelam para os peritos, “aqueles que sabem”, para “obedecer a eles e fazer o que deve ser feito”.” Há aqui uma confusão proposital entre o desempenho de uma função técnica (como a pilotagem naval e a cirurgia) e o exercício da liberdade de opinar sobre o próprio destino comum (a política democrática). Ou seja, há uma confusão – feita para desqualificar a democracia – entre episteme (o conhecimento filosófico ou científico), techné (a tecnologia, o know how) e doxa (opinião). Quando se trata da auto-condução de sociedades, a matéria prima é a opinião (que todos podem ter) e não o conhecimento ou a técnica (que alguns possuem em grau maior do que outros). Um regime baseado em conhecimento levaria ao domínio dos sábios sobre os ignorantes, como queria Platão e o seu Sócrates. Os ignorantes estariam condenados a ser governados pelos sábios, o que configura um regime autocrático.

10 – Stone observa que Sócrates, ao contrário do sofista Protágoras, achava que a virtude não pode ser aprendida (ele usa a palavra ensinada). Ele escreve: “Se a virtude pode ser ensinada, então a educação pode tornar os homens comuns capazes de se autogovernarem. Esse reconhecimento foi uma vitória para Protágoras, enquanto professor e partidário da democracia. Porém lhe é negada a oportunidade de fazer essa inferência no diálogo que leva seu nome”. O diálogo é platônico, uma obra desonesta, como já havia sido mostrado por Popper (1945) e Castoriadis (1986). O Sócrates platônico achava que a virtude “não é nem natural nem ensinada”, mas vem até nós “por meio de uma dádiva divina”. Mas, comenta Stone que, “se a virtude é uma dádiva divina, então ela não deve ser encontrada apenas entre uma minoria de homens sábios e superiores. Essa implicação não é desenvolvida no diálogo, porém está presente. Aparentemente, temos aqui a única passagem no cânon platônico na qual, ainda que rapidamente, se reconhece a ideia de que se pode encontrar virtude entre os homens comuns, inclusive os iletrados e humildes. Mas essa proposição favorece uma posição democrática, e o Sócrates platônico logo a enfraquece por meio de uma ressalva curiosa. Afirma ele que essa dádiva divina é conferida “sem compreensão da parte daqueles que a recebem”. Assim, se um homem comum é virtuoso, ele não pode por isso arrogar-se “conhecimento”. E o homem “que sabe”, como Sócrates já afirmou diversas vezes, é o único que tem o direito de governar”. Tudo isso, tem um motivo político, segundo Stone, “tem a ver com sua visão antidemocrática. A doutrina socrática segundo a qual “aquele que sabe” deve mandar e os outros devem obedecer seria abalada se o conhecimento e a virtude pudessem ser ensinados”.

11 – Stone percebe que Sócrates era essencialista (embora não use esse termo, aplicado por Popper), quer dizer, buscava inutilmente definições absolutas. Ele escreve: “Tudo que não fosse uma definição absoluta era por ele considerada doxa, ou simples opinião, em oposição ao verdadeiro conhecimento, por ele denominado episteme. Esse último termo é com frequência traduzido como “ciência” ou conhecimento científico. Mas essa tradução é enganosa. A episteme socrática não é a ciência que conhecemos, nem a que Aristóteles estabeleceu — a paciente observação e compilação de dados específicos, juntamente com a organização desses dados de modo a formar sistemas gerais de conhecimento. Para Sócrates, era apenas definição, a definição absoluta”. De qualquer modo, essa desvalorização da opinião (doxa) em relação ao saber (episteme) – seja na acepção socrática, platônica ou aristotélica – está na raiz da desqualificação da democracia (um regime baseado na liberdade de opinião, que todos podem ter e não na autoridade do conhecimento, que só alguns possuem). A democracia é uma aposta de que a interação de múltiplas opiniões (doxa) – não de saberes teóricos (episteme) ou práticos (techné) -, qualificadas ou não qualificadas, é capaz de gerar um sentido público e é um meio mais conforme à auto-organização, à organização bottom up (único modo de evitar a organização top down, ou seja, de desconstituir o domínio de um senhor, que o seria por possuir uma orto-doxa, por ter mais conhecimento, riqueza ou força).

X – A autocracia é uma rejeição da pólis (da comunidade política)

12 – Os diversos seguidores de Sócrates, nota Stone, divergiam em muitas coisas, mas “concordavam em uma questão: rejeitavam a pólis. Todos encaravam a comunidade humana não como um corpo de cidadãos dotados de direitos iguais, mas como um rebanho que precisava de um pastor ou rei. Todos tratavam a democracia com condescendência ou desprezo”.

XI – A autocracia é baseada na crença de que os seres humanos não podem se autogovernar

13 – Segundo Stone, a segunda divergência básica entre Sócrates e sua cidade “dizia respeito a duas questões que para Sócrates — mas não para sua cidade — estavam inextricavelmente associadas. Uma delas era: o que é a virtude? A única definição de virtude que Sócrates propôs, em suas inúmeras tentativas infrutíferas de definir o conceito, foi a ideia de que virtude e conhecimento identificavam-se. Isso levantava a segunda pergunta: o que é o conhecimento?… Seguia-se — ao menos para Sócrates e seus discípulos — que, como virtude era conhecimento e o conhecimento era inatingível, os homens comuns, a maioria, não possuíam nem a virtude nem o conhecimento necessários para se autogovernarem. Através desse tortuoso caminho metafísico, Sócrates recaía em sua proposição fundamental: a ideia de que a comunidade era um rebanho, incapaz de governar a si própria”.

XII – Os autocratas odiavam os sofistas (os livre-pensadores democráticos)

14 – Essa segunda divergência, observa Stone, “se reflete no antagonismo entre Sócrates e os chamados sofistas. Os sofistas afirmavam ensinar conhecimento e virtude. Se Sócrates tinha razão, eles eram impostores, pois nem o conhecimento nem a virtude eram passíveis de ser ensinados. A maioria não poderia jamais atingir nem uma coisa nem outra. A definição desses conceitos estava fora do alcance até mesmo da minoria seleta, inclusive do próprio Sócrates, como ele admitia de bom grado. O antagonismo entre Sócrates e os sofistas, tal como aparece em Xenofonte e em Platão, teve o efeito de denegrir a imagem dos sofistas”.

15 – Os sofistas, que pontificaram em Atenas em meados do século 5, sob a proteção de Péricles, eram democratas ou só puderam florescer na democracia. Stone nota que “a instrução superior continuava sendo monopólio da aristocracia, até que apareceram os sofistas. Eles provocaram o antagonismo das classes superiores por ensinarem as artes da retórica — pois a capacidade de falar bem em público era fundamental para a participação política da classe média nos debates da assembleia e sua ascensão aos cargos mais elevados da administração pública da cidade”. Stone também observa, com argúcia, que “no ano 161 a. C., os professores de retórica foram expulsos de Roma” que, segundo ele, como já foi dito aqui, era na época uma república, mas não democrática e sim “uma oligarquia aristocrática e o ensino da retórica latina não era incentivado, para que não fosse ampliada a participação no governo e abalado o controle sobre o poder exercido pelos senadores patrícios”.

16 – Stone escreve que “um dos motivos básicos do antagonismo contra os sofistas nos círculos socráticos e platônicos era o fato de que, entre esses professores, havia pensadores que, pela primeira vez, afirmavam a igualdade dos homens”. Ele lembra que o sofista Antifonte dizia que as leis da natureza são compulsórias para todos os homens, mas as leis da cidade — que variam de um lugar para outro — “são produtos do consentimento”. Ao enfatizar o consentimento dos governados, e também ao afirmar que todos os homens nascem iguais, Antifonte é um precursor da Declaração de Independência dos Estados Unidos”. E conclui dizendo que “nem o Sócrates xenofôntico nem o platônico jamais mencionam os pobres. Pelo visto, para ele, era como se os pobres não existissem”. Platão considerava os pobres como seres inferiores, quase como uma sub-raça que deveria estar a serviço da casta dirigente, composta pela aristocracia militar (como em Esparta). Xenofonte, por sua vez, morava (ou morou durante uma época) em Esparta.

XIII – A mais antiga definição escrita de democracia: como regime sem um senhor

17 – Stone não se esquece de citar Os Persas, de Ésquilo (472 a.C.), onde aparece a primeira definição escrita de democracia como um regime sem um senhor. Diz ele: “no início da peça, estamos em Susa, capital da Pérsia, onde os regentes e a rainha-mãe estão preocupados com a falta de notícias sobre o campo de batalha. Chega um mensageiro, e a rainha-mãe lhe faz uma pergunta fundamental a respeito das forças gregas: “Quem é o pastor que os comanda, como senhor e mestre de seu exército?”. Responde o mensageiro: “De homem algum são eles escravos ou súditos”… Para Ésquilo, bem como para os atenienses em geral, não se tratava apenas de uma vitória dos gregos sobre os persas, mas também de homens livres sobre “escravos”.”

XIV – Os primeiros inimigos explícitos da democracia não eram conservadores e sim reacionários

18 – Stone sustenta que a doutrina – das Formas ou Ideias perfeitas – de Platão (colocada muitas vezes na boca do seu Sócrates), “leva à criação de outro mundo, muito acima deste nosso, um mundo de “ideias” eternas e imutáveis, que é então tomado como o mundo real. Esse mundo real de Platão era repleto de objetos irreais, dotados, portanto, de uma natureza eterna e imutável muito tranquilizadora. Platão buscou refugio nesse paraíso metafísico. Platão representa a quintessência do conservadorismo”. Na verdade a posição de Platão não é bem conservadora, senão reacionária. Ele não quer avançar para uma sociedade futura, mas voltar ao Estado passado cujo modelo é o regime político vigente em Esparta, uma autocracia. Stone observa que “os platônicos, em suas sublimes meditações celestiais, viraram de cabeça para baixo o sentido comum das palavras que manipulavam e fizeram uso disso para combater a democracia. A teoria das Formas de Platão foi desenvolvida a partir da busca socrática de definições absolutas. Mas o próprio Sócrates segundo Aristóteles — “não separava os universais dos particulares” e “tinha razão em não separá-los”. Não obstante, foi Sócrates quem deu início à busca metafísica que Platão levou mais adiante. As Formas foram por ele colocadas como substitutas das definições que Sócrates jamais encontrou”.

XV – Os autocratas desprezam a retórica (porque ela é uma opção pela persuasão em vez da guerra)

19 – Sócrates desprezava a retórica (que era uma arte necessária à interação na Ecclesia democrática). Stone observa que se Atenas tivesse levado a sério as ideias de Sócrates, “teria tornado inviáveis a equidade e a democracia. Ao identificar a virtude com o conhecimento inatingível, Sócrates privava de esperança os homens comuns e negava sua capacidade de se autogovernarem”. A retórica era fundamental para a democracia ateniense porque a democracia – como modo não-guerreiro de regulação de conflitos – só seria possível a partir do convencimento, da persuasão. A formação democrática da vontade política coletiva era a resultante da interação de miríades de opiniões, a partir da conversação pacífica. Deslegitimar ou desvalorizar a retórica fazia parte, portanto, da luta de Platão e de seu Sócrates contra a democracia. E este também era o motivo da maledicência platônica contra os sofistas, que atuavam como professores de retórica, comparando-os a vigaristas, que ensinavam – em troca de dinheiro – aos que queriam brilhar na Assembléia, a arte de bajular, enganar e iludir.

XVI – A autocracia é antipolítica

20 – Stone afirma que a terceira divergência de Sócrates com seus contemporâneos de Atenas se dava em torno da ideia democrática de que “os homens só se realizam numa polis. O indivíduo só pode viver bem quando se associa a outros numa comunidade”. Mas Sócrates – observa Stone – “pregava e praticava a não-participação na vida política da cidade. Na Apologia de Platão, ele defende essa abstenção por ser necessária para “a perfeição” da alma. Os atenienses e os gregos em geral acreditavam que o cidadão se educava e se aperfeiçoava através de uma participação integral na vida e nos negócios da cidade”. Stone afirma ainda que “Sócrates [apresenta várias razões] para justificar sua abstenção da política. Na Apologia de Platão, ele diz que se abstinha da política a fim de cuidar da alma, de mantê-la pura. Indiretamente, estava dizendo que os assuntos cívicos eram de algum modo sujos, ou, para empregar um termo cristão, “pecaminosos”.” Importante registrar aqui. A democracia é suja, curva e imperfeita, não limpa, reta e perfeita como queriam os autocratas. Não quer sair do mundo, não quer fugir para outro mundo, não quer trazer de outro mundo um modelo bom para colocar no lugar do mau.

XVII – A democracia como uma brecha na cultura patriarcal que leva a uma sociedade fechada

21 – Stone escreve que “a admiração de Sócrates por Esparta e Creta, mencionada ironicamente no Críton, é um dado desconcertante. Esparta e Creta eram, cultural e politicamente, as duas regiões mais atrasadas da Grécia antiga. Nessas duas cidades-Estados, as terras eram cultivadas por servos, os quais eram mantidos submissos (ao menos em Esparta, a respeito da qual sabemos mais do que em relação a Creta) por uma polícia secreta e uma casta militar governante que praticava uma espécie de apartheid, como o da moderna África do Sul [Stone está escrevendo em 1988]. A predileção socrática por Esparta e Creta é confirmada em outros trechos de Xenofonte e Platão, sendo que esses dois autores também preferiam Esparta à sua cidade natal. Nas Memoráveis, Sócrates tacha os atenienses de “degenerados” e afirma a superioridade dos espartanos, elogiando em especial sua formação militar. Na República de Platão, Sócrates elogia as “constituições de Creta e Esparta” como a melhor forma de governo, preferível à oligarquia, que ele põe em segundo lugar, e, naturalmente, à democracia, que para ele vem em terceiro. Sabemos que Esparta — e provavelmente Creta também — restringia a liberdade de seus cidadãos de viajar para o estrangeiro… Mas a existência de uma ditadura de casta militar, necessária para impedir a ascensão de uma classe média e manter a maioria de servos (hilotas) submissos, implicava uma profunda pobreza cultural. Esparta era uma oligarquia militar, em que a casta dominante levava uma vida de caserna austera, sob disciplina e treinamento militar constante, em que os homens faziam as refeições juntos numa cantina, como soldados mobilizados. A educação que recebiam era limitada. Em Esparta não havia teatro; não havia poetas trágicos a refletir sobre os mistérios da existência, nem poetas cômicos que ousassem zombar dos notáveis da cidade. A música era marcial; o único poeta lírico, Álcman, era, ao que tudo indica, um escravo greco-asiático. O mais famoso poeta de Esparta, Tirteu, era também general, e um de seus fragmentos que chegaram até nós “refere-se a ordens para disposições táticas e diz respeito a um cerco”. Quanto à filosofia, Esparta era um vácuo absoluto, como também era Creta. Se Sócrates esboçasse uma de suas interrogações filosóficas em Esparta, seria preso ou expulso”. Daqui se vê que a autocracia, preferida por Platão e seu Sócrates, tinha raízes na cultura patriarcal do tribalismo dório. “A filosofia grega surgiu – observa Stone – nas cidades da Asia Menor, fundadas por gregos jônios, que também fundaram Atenas. Os espartanos eram dórios”.

22 – Stone registra que “Esparta, conforme sabemos de várias fontes, tinha uma krypteia, isto é, uma polícia secreta, que não apenas espionava os hilotas que “não conheciam seu lugar”, mas também assassinava os rebeldes e dissidentes potenciais que havia entre eles. Tudo leva a crer que a espionagem política não demorou para surgir, com o advento das tiranias em cidades-Estados gregas como Siracusa, onde Platão certa vez tentou transformar o tirano Dionísio II, que era seu amigo, num “rei-filósofo” modelo”. Esta é um importantíssima observação de Stone. Polícias secretas, polícias do pensamento, repressão às opiniões discordantes, são próprias da autocracia (e não existiram na democracia nascente em Atenas) que valorizava, acima de tudo, a liberdade de opinião (que é a essência da democracia). A existência de uma krypteia em Esparta é reveladora de que a cultura patriarcal do tribalismo dório era altamente totalitária. E a revelação de que havia espionagem política em Siracusa, justamente onde Platão foi tentar converter o tirano à sua doutrina retrópica (distópica), também é impressionante”.

XVIII – Os autocratas não suportam a democracia e, não raro, desferem golpes violentos contra ela

23 – Stone evidencia “três “terremotos” políticos que ocorreram durante um período de pouco mais de dez anos antes do julgamento” [de Sócrates]… As datas desses acontecimentos alarmantes são 411, 404 e 401 a.C. Em 411 e em 404, elementos descontentes, em conivência com o inimigo espartano, derrubaram a democracia e estabeleceram ditaduras, instaurando o terror. Em 401 a.C., apenas dois anos antes do julgamento, houve mais uma tentativa de golpe. Em todas as três convulsões cívicas, desempenharam um papel importante jovens ricos como os que se destacavam na entourage de Sócrates”. Este talvez seja o capítulo mais importante do livro de Stone (o capítulo 11) para o aprendizado da democracia. Os golpes contra a democracia foram tramados dentro do regime democrático e apoiados por autocratas espartanos. Stone observa que “os jovens “socratizados”… com seus porretes à espartana… haviam se transformado nas tropas de choque utilizadas pelos Quatrocentos em 411 e pelos Trinta em 404 para espalhar o terror pela cidade”. Atenção aqui: “com seus porretes à espartana”. Em Esparta só os superiores podiam andar armados. Os discípulos de Sócrates imitaram esse comportamento espartano. Stone diz ainda que “em todo o decorrer da história, quanto menor a base de sustentação de uma ditadura, maiores as atrocidades que ela julga necessárias para se preservar no poder. Tanto em 411 quanto em 404, a democracia foi derrubada não por uma onda de descontentamento popular, mas por um punhado de conspiradores. Eles tiveram de apelar para a violência e a trapaça e colaborar com o inimigo espartano, porque tinham muito pouco apoio em Atenas”. Em 401 os aristocratas pró-espartanos tentaram um novo golpe, a partir da cidade de Elêusis, que dominaram pela força-bruta, assassinando centenas de pessoas que recusaram o seu poder, mas foram mal-sucedidos. Stone escreve que “Sócrates jamais se reconciliou com a democracia. Aparentemente, não aprendeu nada com os acontecimentos de 411, 404 e 401”. Sócrates não foi condenado por suas ideias inovadoras (ou revolucionárias) e sim, ao contrário, por sua ação docente reacionária, objetivamente a favor da ditadura (embora nunca a tivesse defendido explicitamente). A questão não é a liberdade de expressão de Sócrates, que nunca foi restringida pelos democratas atenienses e sim a sua atividade danosa para a democracia, tendo arregimentado jovens antidemocráticos, pró-espartanos, golpistas e violentos (como seu discípulos Crítias, Cármides e Alcibíades).

XIX – A autocracia se baseia sempre numa ideia maligna de limpar o mundo para alcançar (ou restaurar) um estado anterior (ou primordial) de pureza

24 – Segundo Stone, baseado nas Helénicas de Xenofonte, “Crítias [o mais brilhante discípulo de Sócrates] e seus asseclas assassinaram 1500 atenienses durante o curto período de oito meses em que estiveram no poder [a ditadura dos Trinta], “número quase superior” ao dos que tinham sido mortos pelos espartanos durante os últimos dez anos da guerra do Peloponeso”. Curiosamente, nota Stone, “Sócrates, que estava disposto a morrer enfrentando a democracia, opôs-se com muita moderação à ditadura dos Trinta”. Stone relata que “Sócrates explica que o rei-filósofo ou os reis-filósofos “tomarão a cidade e os caracteres dos homens como quem toma uma lousa de escrever, e tratarão de limpá-la antes de mais nada”. Mas admite que “isso não é fácil”. Pois o que Crítias tentou fazer com Atenas foi justamente “limpar a lousa”, e a dificuldade da tarefa foi a desculpa que ele usou para justificar as crueldades que seu objetivo revolucionário o levou a cometer”. Atenção aqui para a ideia maligna de limpeza (e de pureza) – de todas, a ideia mais antidemocrática já surgida na história do pensamento e da prática política (ou melhor, antipolítica).

XX – Democracia é, fundamentalmente, liberdade de opinião (isonomia, isologia e isegoria)

25 – Stone observa que, no seu julgamento, “Sócrates não invocou o princípio da liberdade de expressão. Talvez um dos motivos pelos quais não adotou essa tática seja o fato de que, se nesse caso Sócrates saísse vitorioso, seria também uma vitória dos princípios democráticos que ele ridicularizava. Se Sócrates fosse absolvido, Atenas sairia fortalecida”. Stone acerta em cheio na avaliação de que a repugnância de Sócrates à democracia – que contrariava, na prática, tudo que ele pregava – levou-o a abrir mão de invocar princípios democráticos na sua defesa. Mas Stone também observa que “Sócrates foi levado a julgamento por causa do que ele disse, e não por nada que tivesse feito”. No entanto, seus discípulos, como Crítias, Cármides e Alcebíades fizeram, e muito, contra a democracia. Ainda que Sócrates não pudesse ser responsabilizado judicialmente pelos crimes cometidos por seus seguidores, estava claro que ele era responsável intelectualmente por ter ensejado o surgimento de militantes pró-espartanos.

26 – Stone diz: “Cheguei à conclusão de que nenhum outro povo na história deu mais valor à liberdade de expressão do que os gregos, particularmente os atenienses. Com exceção de Esparta e Creta, cidades governadas por classes minoritárias de guerreiros proprietários de terras que dominavam servos intimidados, as cidades-Estados gregas eram, de modo geral, de tendência democrática; Atenas era a cidadela da democracia. Foram os gregos que inventaram a palavra que é até hoje empregada por toda parte para designar o conceito — demokratia, o governo do dêmos, do povo. A igualdade política baseava-se no direito de livre expressão. A etimologia e a política estão associadas na evolução do idioma grego. Com a luta pela democracia, entraram para a língua mais de duzentas palavras compostas contendo o termo isos, “igual”. Delas, duas das mais importantes eram isotes, “igualdade”, e isonomia, que é “isonomia” mesmo, a igualdade de todos perante a lei. Duas outras, igualmente importantes, designavam o direito de se exprimir livremente: isegoria e isologia”. Importante observar aqui: ‘igualdade política’ é diferente de igualdade sócio-econômica. A igualdade política era caracterizada, pelos democratas atenienses, como liberdade de ter uma opinião, liberdade de proferi-la publicamente e como liberdade de não ter sua opinião desvalorizada em princípio diante de outra opinião (por exemplo, a opinião do sábio, do rico ou do poderoso não se sobrepunha à opinião do ignorante, do pobre e do fraco). Stone observa, em outra passagem que “a liberdade de expressão não é permitida em nenhuma das utopias platônicas”.

27 – Stone escreve que “se, por um momento, considerarmos Platão como dramaturgo e Sócrates como herói trágico, perceberemos que seria uma incoerência escrever uma cena em que Sócrates invocasse a liberdade de expressão e Atenas honrasse suas tradições libertando-o. O herói de Platão viveu e morreu de acordo com seus princípios. O Sócrates histórico, como o platônico, teria se recusado a invocar um princípio no qual não acreditava; para ele, a liberdade de expressão era privilégio de uns poucos esclarecidos e não da maioria ignorante. Ele não iria querer que a democracia por ele rejeitada obtivesse uma vitória moral libertando-o da prisão”. Eis um bom resumo de Stone do por quê Sócrates foi condenado.

28 – Tentando examinar “a atitude dos filósofos gregos em relação à liberdade de expressão”, Stone estabelece “três períodos. No primeiro, a era dos pré-socráticos, os filósofos nem sequer se davam conta da extraordinária liberdade de que gozavam e por isso não se davam ao trabalho de analisá-la, quanto mais de defendê-la. Isso e notável, porque os pré-socráticos foram os primeiros livres-pensadores. Eles abalaram as fundações da religião, tanto da moderna quanto da antiga, e suas formulações arrojadas constituem a base sobre a qual se assentam 2500 anos de especulação filosófica. No entanto, sua liberdade de expressão era irrestrita. No segundo período, que podemos denominar de socrático-platônico, os filósofos gozavam da liberdade de expressão, porém julgavam que os outros não faziam jus a ela. Sócrates, em particular, parecia não questionar sua liberdade de expressão – ele a merecia devido a sua superioridade, ainda que a ocultasse por trás de sua “ironia”. No terceiro período, com o fim da liberdade política sob o domínio macedônio e posteriormente romano, os filósofos de modo geral recolheram-se a seus mundos individuais, tornando-se indiferentes à política, como os deuses distantes e eternamente felizes de Epicuro e Lucrécio”. Stone observa, no Epílogo do seu livro, que “do século VI a.C. ao século VI d.C, a filosofia desfrutou de liberdade em Atenas – 1200 anos, um período cerca de duas vezes mais longo que a era de liberdade de pensamento que vai da Renascença ate a atualidade”. Importantíssimo registro.

Açoitando cavalos mortos

Democracia é democracia liberal