Estamos listando (e reproduzindo, quando possível) as principais inspirações para o projeto Democracia como modo-de-vida: experimentando processos democráticos para desprogramar seis milênios de cultura autocrática, atualmente em curso em Democracy Unschool.
Uma das inspirações foi o discurso político final de John Dewey (1939), intitulado Democracia criativa: a tarefa diante de nós, já publicado no primeiro artigo desta série.
A segunda inspiração foi o capítulo sobre democracia do livro de Humberto Maturana e Gerda Verden-Zoller (1993) intitulado Amar e Brincar: Fundamentos esquecidos do humano, traduzido e publicado no Brasil pela Palas Athena Editora (São Paulo: 2009), que segue reproduzido abaixo na íntegra. Já publicamos também outro texto de Maturana, escrito no mesmo ano de 1993, intitulado A democracia é uma obra de arte. Maturana percebeu que a natureza da democracia é a de ser uma brecha no muro da cultura patriarcal. Isso muda tudo, todas as percepções anteriores sobre democracia como modo de administração política do Estado.
A terceira inspiração foram as reflexões de Hannah Arendt (c. 1950-59) – condensadas na obra póstuma O que é política? – sobre a liberdade como sentido da política, sobre o fato de o ser humano não ser um animal político (e que, portanto, o Zoon politikon – inventado por Aristóteles – simplesmente não existe), sobre a polis ateniense do século 5 AEC não ser a cidade-Estado e sim a comunidade (koinonia) política e sobre a guerra como o oposto da democracia (quer dizer, um comportamento apolítico).
Foi – em parte – a partir da leitura de Arendt (não apenas dos seus escritos de meados do século passado, publicados postumamente, mas de quase toda sua obra) que formulei minha definição de democracia como processo de desconstituição de autocracia. Em parte, porém, esse conceito “forte” de democracia, devo-o às minhas investigações na chamada nova ciência das redes e às conversações mantidas, desde o final de 2008, na Escola de Redes. A partir das descobertas recentes de novas vertentes de pesquisa sobre o comportamento coletivo, estruturei (na última década) uma visão social da democracia, baseada na hipótese de que há um condicionamento recíproco entre padrão (social) de organização e modo (político) de regulação de conflitos. Assim como, em ambientes hierárquicos, redes são processos de desconstituição de hierarquia, coerentemente, em ambientes autocráticos, democracia é um processo de desconstituição de autocracia (quer dizer, de guerra).
Vale a pena ler os fragmentos sobre política de Hannah Arendt, que estão disponíveis em ARENDT, Hannah (c. 1950). O que é política? (Fragmentos. das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. Reproduzimos abaixo o Fragmento 1, de agosto de 1950.
FRAGMENTO 1
Hannah Arendt
1. A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus criou o homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da natureza humana. A filosofia e a teologia sempre se ocupam do homem, e todas as suas afirmações seriam corretas mesmo se houvesse apenas um homem, ou apenas dois homens, ou apenas homens idênticos. Por isso, não encontraram nenhuma resposta filosoficamente válida para a pergunta: o que é política? Mais, ainda: para todo o pensamento científico existe apenas o homem — na biologia ou na psicologia, na filosofia e na teologia, da mesma forma como para a zoologia só existe o leão. Os leões seriam, no caso, uma questão que só interessaria aos leões.
É surpreendente a diferença de categoria entre as filosofias políticas e as obras de todos os grandes pensadores — até mesmo de Platão. A política jamais atinge a mesma profundidade. A falta de profundidade de pensamento não revela outra coisa senão a própria ausência de profundidade, na qual a política está ancorada.
2. A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças. Enquanto os homens organizam corpos políticos sobre a família, em cujo quadro familiar se entendem, o parentesco significa, em diversos graus, por um lado, aquilo que pode ligar os mais diferentes e por outro aquilo pelo qual formas individuais semelhantes podem separar-se de novo umas das outras e umas contra as outras.
Nessa forma de organização, a diversidade original tanto é extinta de maneira efetiva como também destruída a igualdade essencial de todos os homens. A ruína da política em ambos os lados surge do desenvolvimento de corpos políticos a partir da família. Aqui já está indicado o que se torna simbólico na imagem da Sagrada Família: Deus não criou tanto o homem como o fez com a família.
3. Quando se vê na família mais do que a participação, ou seja, a participação ativa na pluralidade, começa-se a bancar Deus, ou seja, a agir como se pudesse sair, de modo natural, do princípio da diversidade. Ao invés de se gerar um homem, tenta-se criar o homem na imagem de si mesmo.
Porém, sob o ponto de vista prático-político, a família ganha sua importância inquestionável porque o mundo assim está organizado, porque nele não há nenhum abrigo para o indivíduo — vale dizer, para os mais diferentes. As famílias são fundadas como abrigos e castelos sólidos num mundo inóspito e estranho, no qual se precisa ter parentesco. Esse desejo leva à perversão fundamental da coisa política, porque anula a qualidade básica da pluralidade ou a perde através da introdução do conceito de parentesco.
4. O homem, tal como a filosofia e a teologia o conhecem, existe — ou se realiza — na política apenas no tocante aos direitos iguais que os mais diferentes garantem a si próprios. Exatamente na garantia e concessão voluntária de uma reivindicação juridicamente equânime reconhece-se que a pluralidade dos homens, os quais devem a si mesmos sua pluralidade, atribui sua existência à criação do homem.
5. A filosofia tem duas boas razões para não se limitar a apenas encontrar o lugar onde surge a política. A primeira é:
a) Zoon politikon como se no homem houvesse algo político que pertencesse à sua essência — conceito que não procede; o homem é a-político. A política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece como relação. Hobbes compreendeu isso.
b) A concepção monoteísta de Deus, em cuja imagem o homem deve ter sido criado. Daí só pode haver o homem, e os homens tornam-se sua repetição mais ou menos bem-sucedida. O homem, criado à imagem da solidão de Deus, serve de base ao state of nature as a war of all against all, de Hobbes. É a rebelião de cada um contra todos os outros, odiados porque existem sem sentido — sem sentido exclusivamente para o homem criado à imagem da solidão de Deus.
A solução ocidental dessa impossibilidade da política dentro do mito ocidental da criação é a transformação ou a substituição da política pela História. Através da idéia de uma história mundial, a pluralidade dos homens é dissolvida em um indivíduo-homem, depois também chamada de Humanidade. Daí o monstruoso e desumano da História, que só em seu final se afirma plena e vigorosamente na política.
6. Torna-se difícil compreender que devemos ser livres de fato num campo, ou seja, nem movidos por nós mesmos nem dependentes do material dado. Só existe liberdade no âmbito particular do conceito intra da política. Nós nos salvamos dessa liberdade justo na “necessidade” da História. Um absurdo abominável.
7. Pode ser que a tarefa da política seja construir um mundo tão transparente para a verdade como a criação de Deus. No sentido do mito judaico-cristão, isso significaria: ao homem, criado à imagem de Deus, foi dada capacidade genética para organizar os homens à imagem da criação divina. Provavelmente, um absurdo — mas seria a única demonstração e justificativa possível à idéia da lei da Natureza.
Na diversidade absoluta de todos os homens entre si — maior do que a diversidade relativa de povos, nações ou raças — a criação do homem por Deus está contida na pluralidade. Mas a política nada tem a ver com isso. A política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas.
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