in

Como o Partido Republicano virou o Partido de Putin

Vale a pena examinar o artigo abaixo. Para começar a entender por quê a atual onda de autocratização pode ser a mais perigosa de toda a história. Não é uma nova guerra fria de um bloco contra outro. Ela se instalou no coração das democracias. O inimigo está lá dentro.

Como o Partido Republicano virou o Partido de Putin

EUA BRIEF US, Spotniks (22/09/2023)

O EUA Brief é um relatório semanal sobre o que de mais relevante foi noticiado sobre os Estados Unidos nos últimos dias, pela imprensa nacional e estrangeira.

Ao longo do século vinte, os Estados Unidos foram indiscutivelmente os protagonistas no enfrentamento à expansão geopolítica de Moscou.

Os republicanos exerceram um papel indispensável nessa postura. Figuras como Richard Nixon e, especialmente, Ronald Reagan, enfrentaram os russos sem reticências, e foram diretamente responsáveis pela queda da União Soviética, o movimento político mais importante da segunda metade do século vinte.

Para os figurões republicanos, os Estados Unidos não poderiam se dar ao luxo de assumir um papel passivo na cena mundial, uma vez que os problemas na Europa ou na Ásia acabariam inevitavelmente alcançando a vida cotidiana do país. E por essa postura, viraram heróis nacionais.

Mas as coisas não são mais como antigamente.

Desde a ascensão de Donald Trump, as tendências isolacionistas tornaram-se cada vez mais dominantes na direita política americana – um comportamento tão determinante que, nesse momento, são os republicanos que têm liderado o ataque para reduzir o apoio de Washington à Ucrânia, favorecendo os interesses de Moscou.

Assim que o primeiro tiro foi dado na Ucrânia, na invasão de 2022, muitos congressistas trumpistas passaram a justificar essa posição como “realismo” – argumentando que os Estados Unidos não podem se dar ao luxo de continuar a apoiar a Ucrânia antes de vencer seus próprios desafios econômicos, e não deveriam arriscar uma guerra nuclear com a Rússia em nome de um país que está a milhares de quilômetros de distância.

Mas a verdade é que Vladimir Putin nunca foi um adversário político do trumpismo. Na verdade, ele é o exato oposto disso.

Donald Trump inegavelmente transformou Putin numa figura popular na direita. Como candidato, presidente e ex-presidente, Trump elogiou repetidamente Putin, chamando-o de “forte”, “inteligente” e “gênio”. Trump também fez eco a Putin ao criticar duramente, em diferentes oportunidades, a OTAN e os órgãos multilaterais construídos e liderados pelos Estados Unidos, como a ONU. Parece inacreditável pensar nessa possibilidade hoje, mas o republicano chegou a ameaçar até retirar os Estados Unidos da OTAN.

Desde o momento em que entrou na corrida presidencial de 2016, Trump tem se comportado como um agente (não exatamente secreto) pró-Rússia.

Além de repetidamente promover uma visão de mundo que se alinha com a do Kremlin em diversos aspectos, sua campanha procurou e recebeu ajuda da Rússia na corrida eleitoral de 2016.

Segundo um relatório produzido pelo Comitê de Inteligência do Senado, controlado pelos republicanos, foi o próprio Putin quem ordenou a invasão das contas de e-mail do Partido Democrata em 2016 e a sua posterior divulgação, com o objetivo de prejudicar a campanha de Hillary Clinton e ajudar eleger Trump.

Eleito, Trump demitiu James Comey do cargo de diretor do FBI motivado pela investigação da agência sobre a interferência russa nas eleições. Ele chegou a dizer, em 2018 (e em 2023), que confia mais em Putin do que na inteligência americana.

Na presidência, Trump indicou Rex Tillerson, CEO da ExxonMobil, como secretário de Estado. Tillerson tem laços profundos com os russos, e uma relação de longa data com o Kremlin, e chegou a receber, de Putin, a Ordem da Amizade, uma das maiores honrarias que a Rússia concede a cidadãos estrangeiros. Quando foi empossado para o cargo, ele foi bastante elogiado pelo governo russo.

Seu protagonismo em Washington foi encerrado em 2018, quando Mike Pompeo virou secretário de Estado. Mas Pompeo não age na contramão do chefe. Quando questionado sobre Putin, sua resposta é:

– Ele é um estadista muito talentoso. Ele tem muitos dons. (…) Tenho um enorme respeito por ele. Ele é muito experiente, muito astuto.

Donald Trump chega a apelar até para o whataboutism para defender o Kremlin.

Quando Bill O’Reilly, da Fox News, o entrevistou em 2017, dizendo que “Putin é um assassino”, Trump rapidamente saiu em sua defesa:

– Nós temos muitos assassinos. Bem, você acha que nosso país é tão inocente?

Dois anos antes, quando Trump foi entrevistado por Joe Scarborough, o comentarista político da MSNBC sustentou que Putin era “uma pessoa que mata jornalistas, opositores políticos e invade países”, mas foi repreendido por Trump, que respondeu dizendo que o ditador russo é um “líder, diferentemente do que temos neste país”.

Quando Scarborough insistiu que Putin é um assassino, Trump recorreu ao mesmo whataboutism:

– Bem, acho que nosso país também mata bastante, Joe.

Elogios frequentes a Putin marcaram o governo Trump. E permanecem mais vivos do que nunca sob o trumpismo.

Um dia antes da Rússia invadir a Ucrânia, em 2022, Trump chamou a estratégia militar de Putin de “genial”:

– Eu entrei ontem, e havia uma televisão, e eu disse, ‘Isso é genial.’ Putin declara uma grande parte da Ucrânia como independente. Ah, que maravilha. Eu disse, ‘Quão inteligente é isso?’ Ele vai invadir e ser um pacificador.

Na verdade, muito antes de assumir a presidência dos Estados Unidos, Trump rasgava elogios a Putin.

Quando, em 2015, Putin chamou Trump de uma “pessoa brilhante e talentosa”, e um ser humano “notável”, o republicano retribuiu a gentileza:

– É sempre uma grande honra ser tão elogiado por um homem tão respeitado dentro do seu próprio país e fora dele.

Trump não está sozinho nessa direção na direita americana. Muitos influenciadores conservadores assumiram a mesma posição.

Nos últimos anos, algumas das fake news mais flagrantes produzidas pelo Kremlin sobre a guerra na Ucrânia foram promovidas nos Estados Unidos por grandes figuras da direita americana – de Tucker Carlson a Steve Bannon.

Aliás, as emissoras estatais russas frequentemente retransmitem os comentários de Carlson. Quando o comentarista conservador foi demitido da Fox News, sua saída foi criticada e lamentada publicamente pelo próprio governo russo.

Carlson costuma se referir a Zelensky como um “ditador” e diz que os americanos foram treinados pela mídia a odiar Putin:

– Odiar Putin tornou-se o objetivo central da política externa da América. É a principal coisa sobre a qual falamos. Canais de tv inteiros agora são dedicados a isso. (…) Talvez valha a pena perguntar a si mesmo, já que a coisa está ficando muito séria: do que isso realmente se trata? Por que eu odeio tanto Putin? Putin alguma vez me chamou de racista? Ele ameaçou fazer com que eu fosse demitido por discordar dele? (…) Estas são perguntas justas e a resposta para todas elas é não. Vladimir Putin não fez nada disso. Então, por que Washington o odeia tanto?

Carlson também ajudou a espalhar uma fake news, bastante popular na Rússia, acusando os Estados Unidos de financiarem laboratórios de armas biológicas na Ucrânia.

Na contramão dos comentários elogiosos da direita americana ao maior ditador da Europa, vídeos pró-Moscou produzidos pela rede estatal RT (antiga Russia Today) também costumam viralizar no Rumble, plataforma de compartilhamento de vídeos ligada à direita, alcançando milhões de americanos.

Dado esse imenso histórico de propaganda pró-Moscou produzida por figuras relevantes da direita, os eleitores republicanos naturalmente passaram a ver Putin de forma mais favorável nos últimos anos. Uma pesquisa de 2022 descobriu que os republicanos viam Putin de forma mais positiva do que viam Joe Biden, Kamala Harris e Nancy Pelosi.

E se engana quem pensa que essa imagem está associada a uma rejeição aos democratas. Em 2016, quando Trump foi eleito, as pesquisas já indicavam esse mesmo fenômeno: na ocasião, 37% dos republicanos assumiam ter uma visão positiva sobre Putin (contra 10% em 2014, quando o partido de Reagan ainda não havia se tornado o partido de Trump).

Muitos republicanos, instigados pelo trumpismo, dizem admirar Putin por sua forte liderança, seu nacionalismo exacerbado, sua suposta fé cristã ortodoxa e a oposição ao liberalismo ocidental e os direitos LGBT.

Em 2018, o republicano Pat Buchanan chegou a dizer que Putin e o ditador bielorrusso Alexander Lukashenko estavam “defendendo os valores tradicionais contra as elites culturais ocidentais”.

Hoje, muitos figurões conservadores enxergam que é a Rússia a grande defensora do mundo livre, e não os Estados Unidos.

O apoio surge como uma extensão das guerras culturais que animaram a direita trumpista nos últimos anos (e que alcançaram também o Brasil através do bolsonarismo, um movimento que também se identifica com Putin em inúmeros aspectos). Nesses círculos, Putin exerce o apelo de um homem forte, visto como alguém que consegue o que quer e enfrenta, com coragem, uma espécie de ditadura do politicamente correto.

Nada parece ser mais contraproducente.

Não deveria haver debate sobre se a Rússia é uma ameaça para o Ocidente. Putin é um ditador e um criminoso de guerra que age ativamente para destruir tudo aquilo que o Ocidente representa. Se o conservadorismo é um instrumento intelectual usado para a manutenção dos valores ocidentais, Putin é um dos seus grandes adversários.

Parece inacreditável, mas, assim como a imagem tranquila que os comunistas americanos tinham da Rússia stalinista no início do século vinte desmentia a realidade de um regime brutal, a Rússia de hoje, celebrada pelos conservadores, também é uma ficção.

Fora dessa dimensão estética, não há nada capaz de ligar Putin à tradição do conservadorismo americano. Ideologicamente, Putin está muito mais distante do partido de Reagan do que Joe Biden. E apesar dessa autoevidente distância, é difícil dizer no que Trump não se espelha no líder russo.

A verdade é que o chefe do Kremlin deixou de ser um pesadelo para a direita americana, e se transformou numa inspiração.

Em sintonia, Putin também enxerga o trumpismo como um movimento político alinhado aos interesses russos. Nessa semana, ele saiu em defesa de Trump dizendo que as acusações criminais contra ele têm “motivação política”.

Nesse momento, por mais estranho que pareça, os democratas são a principal força de rejeição e resistência ao Kremlin.

Já consigo até imaginar nas telonas uma versão americana de “Adeus, Lenin” em que um republicano sai do coma e descobre, com muita relutância, no que se tornou o partido de Lincoln.

Reagan está virado no túmulo.

Lula, PT, Foro de SP, Rússia: não há conspiração, mas co-inspiração

Support for Democracy by Robert Mattes