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Diferenças transformadas em separações geram discriminações

Sim, quando diferenças são transformadas em separações elas geram discriminações.

Isso aconteceu com as mulheres em relação aos homens: vivemos em uma civilização patriarcal.

Isso aconteceu com negros e amarelos em relação aos brancos: nas sociedades invadidas e ocupadas pelos europeus.

Isso aconteceu com os portadores de deficiências em relação aos não portadores de deficiências (os considerados como dentro do “padrão normal”): nas sociedades que foram impregnadas culturalmente, entre outros fatores, por um ideal de beleza e perfeição corporal e moral associados (por exemplo, entre os gregos, os kaloi kagathoi).

Isso aconteceu com os judeus, muçulmanos, budistas, xintoístas e fiéis de outras religiões, inclusive populares ou nativas (folk religions etc.) em relação aos cristãos: nas sociedades colonizadas pela cristandade.

Isso aconteceu com as populações indígenas e tradicionais: nas sociedades invadidas por conquistadores ditos civilizados (quer dizer, replicantes da cultura da civilização patriarcal).

Isso aconteceu com os velhos em relação aos jovens: nas sociedades produtivistas (dando margem ao ageísmo: porquanto o idoso, não sendo mais um ser produtivo, vira um peso morto a ser carregado pela população economicamente ativa).

Isso aconteceu com os estrangeiros e migrantes em relação aos nacionais: nas sociedades impregnadas por uma cultura nativista ou nacionalista.

E tudo isso aconteceu também – embora em muito menor escala, posto que a cultura dominante foi machista, racista branca, mais ou menos eugenista, cristã e colonialista – na direção inversa (ou reversa), até por imperativo de sobrevivência ou impulso de resistência.

Foi assim que certo tipo de guerra feminista promovida por facções extremadas (não todo feminismo, ressalte-se) acabou considerando os homens culpados da dominação das mulheres pelo simples fato de serem homens. O “macho branco no comando” passou a ser o alvo, mesmo quando nunca tenha exercido qualquer comando. Porque o machismo, alega-se, é estrutural. Mas é claro que numa cultura patriarcal o machismo é cultural e que essa cultura afeta todos os gêneros (ainda que a dominação de gênero seja realizada como dominação dos homens sobre as mulheres).

A guerra racialista dos discriminados contra os racistas discriminadores produziu discriminação dos que não discriminaram ninguém a partir do seu comportamento, mas foram definidos como inimigos tendo como base a sua origem “racial”. Setores dos movimentos negros passaram a considerar os brancos culpados de racismo pelo fato de serem brancos. Porque o racismo, diz-se, é estrutural.

O sionismo, nas suas facções mais extremadas, virou uma espécie de antissemitismo reverso. Quem não pertence ao “povo eleito” é um goy – e essa palavra passou a carregar um sentido pejorativo. Eles – os gentios – não seriam vistos com olhos assim tão bons por parte de deus (quer dizer, dos sacerdotes). O mesmo se deu em algumas vertentes do jihadismo ofensivo islâmico: quem não é fiel é kafir – e essa palavra foi tomada na acepção de inimigo ou potencial adversário de deus (quer dizer, dos sacerdotes) e, por decorrência, do rebanho dos fiéis.

Convém investigar, entretanto, porque diferenças são transformadas em separações. Nessa investigação descobrimos que há outras separações, ainda mais básicas, que geram discriminações geradoras de discriminações. Por exemplo: dos fortes em relação aos fracos, dos ricos em relação aos pobres, dos sábios em relação aos ignorantes. Essas separações são fundamentais em relação às mencionadas acima porque estão diretamente ligadas aos fundamentos da cultura patriarcal. É importante destacar que esses fundamentos são sempre míticos, sacerdotais, hierárquicos e autocráticos.

Atitudes míticas em relação à natureza ou à história, sacerdotais diante do saber, hierárquicas diante do poder e autocráticas diante da política, compõem um complexo. De algum modo sempre vêm juntas. As tentativas analíticas de tratá-las… separadamente (hehe), misturam inevitavelmente as matrizes.

A separação (mítica) entre bem e mal está na raiz de todas as separações. Ela se manifesta, primeiramente, como separação entre ordem e caos e se desdobra nas separações entre consciente e inconsciente e entre vida e morte. Há uma ordem pregressa, preexistente (antes da interação) que, por definição, é do bem. Essa ordem cosmogônica também é antropogônica e deve se reproduzir na sociedade. Os que têm consciência (tomada como conhecimento) dessa ordem devem a ela se ajustar (obedecendo). Os que não têm tal conhecimento (os ignorantes e os desobedientes que não a observam ou que se revoltam contra essa ordem) estão vulneráveis ao mal, ao caos, à morte – e serão inculpados por todo mal, pelo caos e pela morte que sobrevierem ao mundo.

O consciente separado do inconsciente (tomado falsamente como falta de conhecimento), não vê que o inconsciente não é composto apenas pelo que não se sabe e sim pelo que não se pode saber, ou que se deve esquecer, porque deve ser reprimido toda vez que não se ajustar à reprodução da ordem. A separação entre sábios e ignorantes, que está na raiz de todos os sistemas de dominação (quer dizer, de sistemas de separação que geram discriminações) é um eco do mandamento que atribui à ignorância (ou inconsciência) as imperfeições e impurezas do mundo. É uma perversão sacerdotal.

A vida separada da morte leva ao medo da morte, primal para a instalação de sistemas de dominação baseados em separação. O culto da ordem, exatamente ao contrário do que proclamam os que separam para dominar, é um culto da morte. Temendo a morte o ser humano passa a cultuar a morte. Cultua a morte porque quer ficar separado da morte. O culto da morte se exerce pelo sacrifício da vida. O medo da morte, que leva ao culto da morte, também leva o ser humano a matar. Mas daqui também sai a separação, mais encontradiça, entre sãos (ou sadios) e doentes (acompanhada sempre de um julgamento implícito: de que os doentes são, em alguma medida, culpados por suas doenças), elidindo o fato de que a saúde é sempre um equilíbrio instável alcançado na combinação de algumas das milhares de doenças catalogadas.

A separação (sacerdotal) entre sagrado e profano é a origem de toda separação (propriamente dita). O significado ancestral da palavra sagrado já é separado. A hierarquia (o poder sagrado – quer dizer, sacerdotal) é a separação. Se diferentes discriminados se organizam de modo hierárquico, nem que seja para lutar contra a discriminação de que são vítimas, então eles também geram separações e, inevitalmente, discriminações.

A separação (hierárquica) entre superiores e inferiores é o início e o fim, a origem e o sentido, de toda separação. Ela se materializa em sequências infindáveis de separações: entre chefes e subordinados, entre comandantes e comandados, entre mais evoluídos e menos evoluídos, entre civilizados (ou mais civilizados) e não-civilizados (ou menos civilizados) et coetera. Mas o fato é que tanto reacionários quanto revolucionários se organizam de modo hierárquico. E aí – como hierarquia é separação – transformam diferenças em separações, criando condições para transformar separações em discriminações.

A separação (autocrática) entre amigo e inimigo é a origem da guerra, qualquer guerra (quente, fria ou política degenerada como continuação da guerra por outros meios). Tanto os reacionários quanto os revolucionários convertem a política em continuação da guerra por outros meios. Ora, a guerra – que sempre instala um “nós” contra “eles”, ou seja, constrói e mantem inimigos – é a separação máxima, que leva, por sua vez, à discriminação máxima (a dos inimigos).

Quem quer evitar discriminações deve criar condições para que diferenças não sejam convertidas em separações. A diferença deve ser aceita. A não-separação consumada na convivência com os diferentes, quer dizer, na sua aceitação no nosso espaço de vida como um legítimo outro, é a única maneira de evitar a discriminação.

Como a guerra é o contrário da convivência, trata-se sempre, portanto, de evitar a guerra, inclusive a guerra de reparação por milenares injustiças sofridas por um gênero, uma etnia, um credo, um povo, uma categoria social qualquer. Tudo se resume nisso.

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