A chamada judicialização da política vem causando uma imensa confusão. Essa confusão é deliberada porque instrumentalizada pela luta política. Por um lado, acusa-se judicialmente adversários para transformá-los em foras-da-lei. Por outro, defende-se comportamentos inaceitáveis de um ponto de vista ético-político em uma democracia, porque não houve condenação judicial. Neste caso, o mantra é a presunção de inocência. Se alguém não foi condenado, então é inocente. Há aqui um truque de argumentação juridicista. Para ser inocente, segundo esse argumento, não é preciso ser inocentado (absolvido em um processo judicial). Alega-se que quando alguém não foi condenado por qualquer razão – manobras jurídicas, erros processuais, foro inadequado, falta de provas, incêndio ou outro sinistro que destruiu as provas etc – então é inocente.
Juridicamente, é claro que só pode ser assim: como diz a Constituição Federal (Art 5º, LVII), “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Está correto. Mas mesmo de um ponto de vista jurídico, há nuances. Não ser condenado não é exatamente a mesma coisa que ser inocentado (absolvido ou declarado não-culpado). E, às vezes, um criminoso nem é acusado ou processado.
Vejamos alguns exemplo, meio caricaturais, mas válidos pelos seus efeitos demonstrativos:
Adriano da Nóbrega, o miliciano matador de aluguel, foi morto sem nenhuma condenação por homicídio. Logo, de todos os crimes de homicídio que cometeu, morreu inocente.
Al Capone foi preso por sonegação de impostos, mas não pelos múltiplos outros crimes que cometeu. Logo, de todos esses outros crimes, era inocente.
Hitler, Mussolini, Stalin e Mao, jamais foram condenados por terem exterminado centenas de milhões de vida humanas. Logo, morreram todos inocentes.
Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz nunca foram condenados por peculato. Logo, são inocentes do crime de “rachadinha”.
A palavra inocente é mais elástica do que define a sua interpretação jurídica e, portanto, pode ser tomada (e geralmente é tomada) numa acepção mais ampla. O mundo não é o mundo das interpretações jurídicas.
Por exemplo, no mundo político, da esfera da interação de opiniões de qualquer um – e não dos saberes jurídicos de apenas alguns -, quem saí por aí dizendo que Adriano da Nóbrega, Al Capone, Hitler e Mussolini, Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz são inocentes (com exceção, respectivamente, dos milicianos, dos mafiosos, dos nazifascistas e dos bolsonaristas)? Não sai porque, ainda que, em termos estritamente jurídicos, eles não possam ser considerados culpados de vários crimes, de um ponto de vista ético-político seus comportamentos afiguram-se como inadequados.
Alguém que mata uma pessoa, mas não pode ser condenado por qualquer razão jurídica, não pode ser considerado inocente num sentido ampliado do termo (para além do seu estrito sentido jurídico). Ainda que não possa ser penalizado – o que está correto – não pode ser considerado inocente pela opinião pública quando essa se convence, a partir das evidências e do debate, de que tal sujeito não era inocente. É um julgamento político, não jurídico. Logo, essa pessoa não pode ser presa e ter seus direitos restringidos de qualquer forma. Não existem tribunais ético-políticos em uma democracia. A justiça não pode dizer o que é justo ou injusto, bom ou mau, inocente ou culpado de um ponto de vista ético. Ela só pode dizer o que viola ou não viola as leis escritas.
Todavia, há leis escritas e normas ou regras não escritas. Por aqui é possível desatar o nó. Não existem tribunais para julgar as normas não escritas que sustentam a democracia e a vida com civilidade. Por exemplo, a justiça não pode penalizar quem não aceita a derrota e tripudia sobre o derrotado. Não pode penalizar quem mente (a não ser em juízo). Não pode penalizar quem acusa as regras (que foram aceitas antes de uma contenda) pela derrota, nem quem defenda mudar as regras do jogo durante o jogo. Não pode penalizar quem alega falsamente que perdeu porque houve fraude. Não pode penalizar quem desligitima o adversário, quem o transforma em inimigo (da pátria, da família, do povo, da nação, do Estado, de Deus). Não pode penalizar quem faz oposição desleal. Não pode penalizar quem encoraja a polarização (“nós” contra “eles”) para transformar a política numa espécie de continuação da guerra por outros meios. Não pode penalizar quem adota uma retórica antidemocrática (se não passa da palavra à ação concreta). E dificilmente consegue penalizar até mesmo quem levanta falso testemunho perante a justiça contra um adversário ou quem pratica litigância de má-fé. E não pode penalizar nada disso porque essas normas não-escritas estão abaixo do sistema legal-institucional, ainda que sejam elas que lhe dão sustentação. São normas ético-políticas que não podem e não devem mesmo ser escritas, mas quando elas começam a ser violadas é sinal de que a democracia está em risco. A imensa maioria dos ataques à democracia no século 21 (cerca de 70%, segundo um estudo do V-Dem da Universidade de Gotemburgo) foram feitos sem violar as leis escritas. Por isso todo legalismo é impotente para defender a democracia.
Para criticar as “rachadinhas” e os negócios imobiliários de Bolsonaro e família, as palestras de Lula pagas pela Odebrecht e os mega salários recebidos por Moro de uma empresa americana, não somos obrigados a adotar razões legalistas, jurídico-penais. As pessoas, em sua maioria, não são da polícia, do MP ou da justiça. Seus juízos são ético-políticos. Não são, portanto, condenações. Estão submetidos, como qualquer outra opinião proferida na esfera pública, à refutação e ao contraditório. Os que manifestam tais opiniões não fazem, nem querem fazer, um tribunal popular para condenar adversários. Emitir essas opiniões, que refletem juízos ético-políticos, é válido – desde que não viole as leis. Mas seria contraditório se fossem penalizados, com base na lei escrita, os que criticam os que violam as regras não escritas sem as quais perdem efetividade as leis escritas.
Se você recebe dinheiro de uma empresa, por retribuição a serviços prestados quando estava no governo, ou por simpatia ou quase-amor, mas essa vantagem indevida não pode ser comprovada porque tal doação veio na forma de um bem que não está legalmente em seu nome, então, para todos os efeitos jurídicos, você é inocente, mas não de um ponto de vista ético-político. Lembre-se aqui do caso do Sítio de Atibaia. “Aí você compra um sítio para mim. Mas não põe no meu nome não, porque pode dar problema. Eu continuo usufruindo do imóvel, guardo lá minhas cachaças, meus pedalinhos e quero uma cozinha novinha. É meu, mas legalmente não é meu. É de um amigo meu”. Ora…
O caso das palestras de Lula são um exemplo ainda melhor. Pode não ser ilegal ele ter recebido 1 milhão e 600 mil dólares (cerca de 8, 5 milhões de reais) da Odebrecht por oito palestras ministradas em sequência, de junho de 2011 a maio de 2014. Uma juíza (morista e tão suspeita de parcialidade quanto Moro – mas, neste caso, para os lulopetistas está valendo) o absolveu. Logo, ele é inocente. De um ponto de vista jurídico, sim. Mas… de um ponto de vista ético-político é adequado um ex-presidente receber tanto dinheiro de uma empreiteira que tinha estreitas relações com o governo quando ele era presidente, sendo que, mesmo depois de deixar o governo, ainda mantinha amizade com o seu dono?
Só a opinião pública – o “não-tribunal” ético-político da democracia – pode responder.