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Entrevista com Moisés Naím

‘Se tendência atual continuar, autocracia, anarquia e desgoverno serão os regimes mais comuns no futuro’, diz escritor venezuelano

Em seu novo livro ‘A Vingança do Poder’, Moisés Naím diz que derrota de Bolsonaro precisa ser comemorada e critica Lula por se encontrar com Maduro

Por Marina Gonçalves, O Globo (27/06/2023)

Em seu novo livro, “A Vingança do Poder” (Editora Cultrix), o escritor venezuelano Moisés Naím fala sobre as novas fórmulas de autocracia no mundo, que exploram o que ele chama de 3P: populismo, polarização e pós-verdade. Em entrevista ao GLOBO, Naím alerta sobre os perigos da autocracia disfarçada de democracia, cita Bolsonaro como o exemplo mais recente da onda de líderes da América Latina que usam este modelo e diz que sua derrota na eleição do ano passado foi uma vitória da democracia. Ao mesmo tempo, critica o encontro recente entre Lula e Nicolás Maduro: “É uma vergonha que ele apareça abraçado com um torturador”.

Dez anos depois de ‘O Fim do Poder’, ‘A Vingança do Poder’ fala sobre as novas formas de autocracia nos dias de hoje. O que mudou nessa década, e qual o papel da pós-verdade nesse processo?

Meu primeiro livro, há mais de 10 anos, analisa de que maneira o poder estava se dispersando em todas as partes do mundo. Em qualquer lugar onde houvesse seres humanos interagindo, e onde o poder era importante, ele estava se esfumando e se tornando mais fraco. Mais de dez anos depois, o que quero mostrar com este novo livro é como isso não apenas continua acontecendo, como agora o poder está ficando mais concentrado, o que não é excludente. Vemos como há agora um enfraquecimento do poder e, ao mesmo tempo, uma concentração de poder. Ou seja, como as forças centrífugas que dispersam o poder e as centrípetas que concentram o poder coexistem e interagem entre elas.

Então, o mais importante que aconteceu na última década é que, na maior parte do mundo, a democracia desapareceu; não foi derrotada, mas foi violada. Muitos dos líderes que chegaram ao poder, a maioria pela via eleitoral, uma vez no poder, enfraqueceram os pesos e contrapesos que definem uma democracia. Diferentemente do que acontecia antes, quando a tomada do poder ocorria com tanques e aviões e os militares eram os principais protagonistas, agora são os advogados, os políticos, que fazem todo tipo de alianças, inclusive com grupos ilegais. O que estamos vendo, em todas as partes do mundo, é a concentração de poder de maneira furtiva, ou seja, de uma maneira mais difícil de ver, que consiste na eliminação ou enfraquecimento das leis e normas, acordos e costumes.

Nesse processo, a pós-verdade teve um papel importante, porque foi o que mudou nesta última década. Não?

Sim, com certeza, ao lado do populismo e da polarização, o que chamo de 3P. A pós-verdade foi potenciada e amplificada pelo populismo e pela polarização. O populismo, é preciso esclarecer, não tem nada a ver com ideologia: é um conjunto de estratégias e táticas para obter e reter o poder. E a polarização é uma das novas formas de fazer política identitária, onde as identidades são um fator político que move as pessoas, ou seja, a defesa, promoção e ampliação de suas identidades, sejam elas raciais, de gênero, regionais, etárias etc.

Vale dizer ainda que a pós-verdade sempre existiu na política, se chamava propaganda, e era usada por todos os governos. Mas agora não são apenas os governos que as utilizam, mas o mundo inteiro. Não é mais propaganda, são as redes sociais. O uso da pós-verdade serve para amplificar a polarização e o populismo. Tentam criar dúvidas, discórdia, um ambiente conflitivo, que é aproveitado pelos populistas para aprofundar ainda mais a polarização.

No livro, o senhor compara autocratas ideologicamente distantes, como Jair Bolsonaro e Andrés Manuel López Obrador [presidente mexicano]. Há algo que eles têm em comum?

Eles cumprem o mesmo roteiro de todos os líderes autoritários desta década: a demonização do outro, a crítica ao passado e a tudo que foi feito antes deles, o ataque feroz aos rivais políticos. Seus rivais nem sequer têm direito a ter uma vida política: são presos ou atacados de forma clandestina, usando como subterfúgio o poder judicial, com a compra de juízes. Eles utilizam todos os ataques ao aparato que constitui a democracia, aos pesos e contrapesos que impedem que o poder se concentre no Executivo.

O senhor cita Bolsonaro como o melhor exemplo da onda crescente de líderes na América Latina que governam explorando o modelo 3P. Na sua opinião, o que impediu a sua reeleição?

Foi um fenômeno porque foi a primeira vez na história do Brasil que um presidente que está no poder não foi reeleito. Sempre há muitos fatores, nunca há uma realidade única, mas é claro que a gestão da pandemia, ou seja, a forma como seu governo lidou com a pandemia, com todo o negacionismo, além de sua forma de tratar os adversários e de atacar os meios de comunicação. Tudo isso fez com ele perdesse muitos de seus apoiadores, que preferiram migrar para o centro. Que repudiaram essas atitudes, e não queriam mais quatro anos de uma Presidência nesse tom. Que preferiam Lula apesar de todos os contras. E de qualquer forma, a diferença entre os dois foi muito baixa, certo?

Em primeiro lugar, é preciso celebrar que o Brasil conseguiu fazer essa transição, após um processo tão traumático e perigoso para a democracia. E em segundo, vale ressaltar que a democracia funcionou, mesmo que Bolsonaro não tenha reconhecido o resultado das urnas e tenha ido para a Flórida. Isso é revelador do que poderia ter acontecido.

O senhor é venezuelano e vive há 20 anos nos Estados Unidos. Como analisa a visita de Nicolás Maduro ao Brasil?

Existe uma vasta lista de acusações de violações de direitos humanos e torturas, e de como Maduro usa a tortura como um instrumento de Estado na Venezuela. Isso é certificado pelas Nações Unidas e pela Corte Internacional de Haia, ou seja, Maduro é um criminoso de lesa pátria, tem um histórico de torturar pessoas. Então, que o presidente do Brasil, a segunda maior democracia do mundo depois da Índia, receba um ditador, que não só fraudou as eleições, mas que ainda por cima é um torturador, e comece a falar de uma narrativa, é uma vergonha. É uma pena que o presidente do Brasil apareça abraçado a um homem que já torturou centenas de milhares de pessoas. A única narrativa que existe é de como um país que era o mais rico da América Latina é hoje o mais pobre.

Qual é a principal diferença em relação a Chávez em termos de concentração de poder?

A diferença principal entre Chávez e Maduro é o petróleo, ou seja, o preço do petróleo. Em segundo lugar, a destruição da indústria petrolífera sob Maduro, que destruiu toda a capacidade produtiva na Venezuela, inclusive a do petróleo. Se a Venezuela não produzir e vender petróleo para o resto do mundo, não há dinheiro. Chávez tinha um talão de cheques infinito e andou pelo mundo dando dinheiro e comprando consciências e vontades. Maduro não teve essa sorte.

O senhor pode explicar o que são os Estados mafiosos, citados no livro?

A corrupção teve uma evolução. Começa com a corrupção transnacional, quando para construir uma estrada, você dá uma porcentagem ao ministro que autorizou a obra; depois passamos à corrupção cleptocrática, quando é o chefe de Estado que rouba para ele e seus amigos; e logo chegamos à corrupção criminalizada, em larga escala, quando o crime organizado já não está fora do governo, não é mais alguém de fora tentando influenciar o governo: o crime organizado é o próprio governo. Ou seja, a criminalização do Estado, isso é um Estado mafioso. É um regime autoritário, muitas vezes disfarçado de democracia, que se utiliza das técnicas e táticas do crime organizado para governar, onde o crime organizado se transformou em um instrumento de política pública, que pode ser utilizado contra rivais dentro e fora do país.

Além da Venezuela, isso acontece na Rússia, Bielorrússia, nos países dos Bálcãs, na Nicarágua.

O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, acaba de ser reeleito, mas desta vez seu adversário tinha chances de vencê-lo. O senhor acha que o poder de Erdogan está chegando ao fim?

Primeiro devemos esclarecer que é desta forma que os líderes 3P agem, de maneira clandestina, trapaceando. As eleições na Turquia não permitiram que muitos dos candidatos pudessem aparecer nos meios de comunicação, que foram submetidos a uma censura feroz. Na Turquia, os cidadãos comuns se informam apenas pelos canais do Estado, controlado por Erdogan. Também foi utilizado dinheiro público para comprar votos. Ou seja, existe um maquinário para influenciar as eleições que não aparece no dia do voto. E respondendo à pergunta, quando os governos têm um desempenho muito ruim, as pessoas reagem a isso, qualquer que seja o governante. As pessoas se tornaram mais pragmáticas e menos ideológicas. Querem acordar e ter água potável em casa, eletricidade, não querem passar horas em um transporte coletivo para ir ao trabalho, querem mais saúde, educação. Querem que o governo funcione, não importa qual seja a ideologia. Nesse momento, na América Latina, dois ou três governos funcionam. O resto tem um desempenho muito baixo e as pessoas estão reagindo a isso.

Muitos dos líderes 3P eram celebridades em seus países. Qual o papel da cultura de celebridades nesse novo tipo de liderança?

Importantíssima. Como muitos perderam a esperança com os políticos tradicionais e com os partidos políticos, já não confiam neles. Os partidos políticos não são mais tão atraentes como eram antes. Então, os cidadãos buscam líderes carismáticos. Líderes carismáticos sempre existiram, mas agora eles vão além: a relação de um político com seus seguidores é algo muito mais profundo, muito mais emocional. É a mesma emoção que um torcedor sente vendo seu time de futebol ou de um fã assistindo a um grande cantor. Eles desenvolvem relações humanas muito profundas e os políticos entenderam que esse é o caminho para ganhar as eleições: não atrair seguidores, mas fãs.

Quais são os riscos dessa nova forma de autocracia no futuro? Como evitar que ela se espalhe ainda mais?

Se continuarem as tendências atuais de substituição da democracia real, viveremos em um mundo em que a forma de governo mais comum será a autocracia disfarçada de democracia. Em muitos países, a autocracia, a anarquia e o desgoverno serão os regimes mais comuns. Evitar que isso se espalhe depende de cada país e das suas circunstâncias particulares. Mas o que é universal é a necessidade de os cidadãos reconhecerem que a democracia precisa ser protegida e fortalecida. As pessoas devem saber que não basta votar a cada quatro anos: é preciso fortalecer a democracia e suas instituições. Devemos lutar contra a concentração irrestrita de poder no presidente, seja no Supremo ou no Congresso.

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