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Identificando embriões de tiranias: como os democratas devem monitorar ameaças à democracia

Os democratas temos de manter bem vivas as histórias de todas as tiranias. Só por isso existimos: para resistir a elas.

Agora nosso papel é mostrar que as tiranias não começam mais com golpes sangrentos, insurreições populares, guerras civis e quebras abruptas da institucionalidade vigente. Elas chegam aos governos pela via eleitoral. Uma vez no governo, elas vão, insidiosamente, se instalando a partir de pequenas e progressivas restrições às liberdades civis e aos direitos políticos.

É um Putin que proíbe o uso de camisetas com dizeres políticos na praça do Kremlin (e, depois, em todos os espaços públicos) e que – é claro – nunca mais sairá do governo. É um Erdogan que vigia o que os professores falam em sala de aula e também governará até morrer coberto pelo manto da sharia. É um Orbán que altera regras eleitorais, fecha universidades e infunde o nacionalismo na população. É um Chávez, um Maduro, um Evo ou um Ortega que abolem (na prática) a rotatividade democrática (criando empecilhos de toda ordem para inviabilizá-la).

Trumps, le pens, wilders, farages, kaczynskis, salvinis, dutertes, lulas e bolsonaros brotam de todo lado, dispostos a usar a democracia contra a democracia para implantar regimes iliberais e majoritaristas, estatistas e populistas no sentido político desses termos.

De todos os indicadores de democracia inventados até agora os mais importante são os que tentam medir liberdades civis, pois eles captam o que acontece na sociedade e não apenas no âmbito do Estado. Assim, tomando como exemplo – e modificando um pouco – as perguntas adotadas pela The Economist Intelligence Unit para calcular o indicador Civil Liberties que compõe, juntamente com outros quatro indicadores, o seu Democracy Index, cabe aos democratas monitorar o seguinte:

Se existe uma mídia eletrônica gratuita e em que medida essa mídia é controlada pelo Estado via algum tipo de favorecimento a órgãos oficiais ou a proprietários privados de meios de comunicação. Se existe um alto grau de concentração da propriedade privada de jornais nacionais.

Se existe liberdade de expressão e protesto (com apenas restrições geralmente aceitas, como proibir a propaganda da violência) ou se pontos de vista minoritários estão sujeitos a algum assédio oficial. E se as leis de difamação (injúria e calúnia) restringem fortemente o espaço para a livre expressão.

Se a cobertura da mídia é robusta e se existe discussão aberta e livre de questões públicas, com uma diversidade razoável de opiniões. Ou se existe liberdade formal, mas alto grau de conformidade da opinião, inclusive por meio da autocensura, ou desestímulo à visão minoritária ou marginal.

Se existem restrições políticas ao acesso à internet.

Se os cidadãos são livres para formar organizações profissionais, sindicatos e organizações civis (não-governamentais). E se os cidadãos são formalmente livres para se organizarem, mas há restrições significativas.

Se as instituições oferecem aos cidadãos a oportunidade de solicitar com sucesso ao governo a reparação de queixas.

Se há o uso da tortura pelo Estado.

Se o judiciário é independente da influência do governo (em que grau).

Se há tolerância religiosa e liberdade de expressão religiosa. Se todas as religiões são autorizadas a operar livremente ou são restritas. Se o direito ao culto é permitido tanto em público como em particular. Se alguns grupos religiosos se sentem intimidados por outros, mesmo que a lei exija igualdade e proteção.

Se os cidadãos são tratados de forma igual perante a lei. E em que medida membros de corporações estatais (como juízes e procuradores, por exemplo) ou privadas (como grandes banqueiros, por exemplo) são poupados do processo legal que deve valer para todos.

Se os cidadãos desfrutam de segurança básica.

Se os direitos de propriedade privada são protegidos e os negócios privados estão livres de influência indevida do governo.

Se os cidadãos gozam de liberdades pessoais (considere-se a igualdade de gênero, o direito de viajar, a escolha de trabalho e estudo).

Qual a proporção da população que pensa que os direitos humanos básicos estão bem protegidos.

Se há discriminação significativa com base na raça, cor ou credo das pessoas.

Se o governo invoca novos riscos e ameaças como desculpa para restringir as liberdades civis.

A rigor processos de autocratização da democracia não são aprovados quando submetidos aos indicadores acima. Se esquecermos todos os demais indicadores já usados ou aventados, adotando apenas o indicador de liberdades civis (como o composto pelas variáveis acima), a lista resultante dos regimes colocará no topo praticamente os mesmos países.

Vejamos. Se reordenarmos o ranking Democracy Index 2017 apenas por um indicador (deixando de lado todos os outros quatro: Electoral process and pluralism, Functioning of government, Political participation, Democratic political culture) e esse indicador for Liberdades Civis (Civil Liberties), a lista que resulta nos TOP 30 não é tão diferente da lista resultante da aplicação dos cinco indicadores (revelando, talvez, que processos de autocratização afetam, por óbvio, direitos políticos, mas sua principal incidência é sobre as liberdades civis). Se compararmos o ranking Democracy Index 2017 com o indicador liberdades civis com a lista resultante da aplicação dos cinco indicadores, apenas 8 países (em 30) não estão nas duas listas: Chipre, Estônia, França, Itália, Jamaica, Lituânia, Coréia do Sul e Taiwan. Entre os primeiros colocados, nas duas listas, estarão sempre os mesmos. Em ordem alfabética, Alemanha, Austrália, Áustria, Botswana, Cabo Verde, Canadá, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, Holanda, Islândia, Irlanda, Japão, Luxemburgo, Malta, Maurício, Nova Zelândia, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça e Uruguai.

É claro que esses indicadores foram desenhados para rankear regimes políticos já vigorantes em países (Estados-nações) e, portanto, não foram pensados para classificar forças políticas que ainda não chegaram ao governo (com objetivos de alterar de algum modo o regime). Portanto, para monitorar ameças à democracia por parte de forças políticas que ainda não chegaram ao governo, precisamos, adicionalmente, de mais alguns indicadores.

Recentemente Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018) publicaram o livro “Como as democracias morrem”, chamando a atenção para o fato de que os processos de autocratização contemporâneos ocorrem por via legal (eleitoral) e não mais por quebra da ordem constitucional. Eles listaram quatro indicadores de comportamento autoritário que podem ser aplicados à forças políticas que almejam o poder (mesmo que adotando meios legais).

Os quatro principais indicadores de comportamento autoritário:

1. Rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas)

Os candidatos rejeitam a Constituição ou expressam disposição de violá-la?

Sugerem a necessidade de medidas antidemocráticas, como cancelar eleições, violar ou suspender a Constituição, proibir certas organizações ou restringir direitos civis ou políticos básicos?

Buscam lançar mão (ou endossar o uso) de meios extra-constitucionais para mudar o governo, tais como golpes militares, insurreições violentas ou protestos de massa destinados a forçar mudanças no governo?

Tentam minar a legitimidade das eleições, recusando-se, por exemplo a aceitar resultados eleitorais dignos de crédito?

2. Negação da legitimidade dos oponentes políticos

Descrevem seus rivais como subversivos ou opostos à ordem constitucional existente?

Afirmam que seus rivais constituem uma ameaça, seja à segurança nacional ou ao modo de vida predominante?

Sem fundamentação, descrevem seus rivais partidários como criminosos cuja suposta violação da lei (ou potencial de fazê-lo) desqualificaria sua participação plena na arena política?

Sem fundamentação, sugerem que seus rivais sejam agentes estrangeiros, pois estariam trabalhando secretamente em aliança com (ou usando) um governo estrangeiro – com frequência um governo inimigo?

3. Tolerância ou encorajamento à violência

Têm quaisquer laços com gangues armadas, forças paramilitares, milícias, guerrilhas ou outras organizações envolvidas em violência ilícita?

Patrocinaram ou estimularam eles próprios ou seus partidários ataques de multidões contra oponentes?

Endossaram tacitamente a violência de seus apoiadores, recusando-se a condená-los e puni-los de maneira categórica?

Elogiaram (ou se recusaram a condenar) outros atos significativos de violência política no passado ou em outros lugares do mundo?

4. Propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia

Apoiaram leis ou políticas que restrinjam liberdades civis, como expansões de leis de calúnia e difamação ou leis que restrinjam protestos e críticas ao governo ou certas organizações cívicas ou políticas?

Ameaçaram tomar medidas legais ou outras ações punitivas contra seus críticos em partidos rivais, na sociedade civil ou na mídia?

Elogiaram medidas repressivas tomadas por outros governos, tanto no passado como em outros lugares do mundo?

Segundo os autores do livro, um político que preencha mesmo que apenas um dos quatro critérios acima já é motivo para se ligar o alerta.

Os indicadores de Levitsky-Ziblatt são importantes, mas imperfeitos. Se aplicados, por exemplo, à situação política atual do Brasil, enquadram mais facilmente os bolsonaristas do que os lulopetistas. Ao que tudo indica, os autores não entenderam bem as ameaças à democracia provindas de projetos neopopulistas (na verdade, não entenderam bem o neopopulismo na sua versão soft – como a lulopetista (diferente da chavista-madurista ou da orteguista) – que visa ganhar eleições sucessivamente para acumular forças com o objetivo de estabelecer uma hegemonia de longa duração sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para permanecer por tempo indeterminado no governo e alterar, “por dentro” das instituições, o “DNA” do regime democrático. Essa espécie de “golpe de Estado” em doses homeopáticas não foi adequadamente captada por Levitsky-Ziblatt. Tanto é assim que Levitsky, depois do sucesso do seu livro, publicou entrevistas e artigos na imprensa brasileira apontando o risco bolsonarista e desprezando o risco lulopetista.

(Continua)

Nona reflexão terrestre sobre a democracia

Um artigo dedicado aos militares com juízo e que prezam a democracia