Não acho que o populismo-autoritário – i-liberal e majoritarista – seja um fascismo (tal como o conhecíamos, ainda que o comportamento de seus aderentes seja fascistoide), embora esteja claro que ele hoje representa o principal adversário da democracia no plano global (com o declínio do neopopulismo de esquerda, sobretudo na América Latina). No entanto, Jason Stanley tem bons argumentos, que nos fazem pensar.
Nosso discurso público crescentemente fascista
Jason Stanley, Nexo, 10 Fev 2019
Artigo original: Our Increasingly Fascist Public Discourse, Project Syndicate, 25 de janeiro de 2019
Tradução de Nexo: Camilo Rocha
“Populismo” é uma descrição que soa inofensiva para o nacionalismo xenófobo que hoje se espalha por grande parte do mundo. Mas haveria algo ainda mais sinistro em operação?
Em “LTI: A Linguagem do Terceiro Reich”, Victor Klemperer, um acadêmico judeu que sobreviveu milagrosamente à Segunda Guerra Mundial na Alemanha, descreve como o nazismo “permeou a carne e o sangue da população por meio de palavras únicas, expressões idiomáticas e estruturas de sentença que eram impostas por um milhão de repetições e incorporadas mecânica e inconscientemente”. Como resultado dessa inculcação, Klemperer observou, “a linguagem não apenas escreve e pensa por mim, mas também dita cada vez mais meus sentimentos e governa todo o meu ser espiritual quanto mais eu me entrego a ela, inquestionável e inconscientemente”.
Um fenômeno semelhante existe hoje em países onde a política de extrema direita alcançou sucesso, seja no Reino Unido da era do Brexit, na Polônia sob Jarosław Kaczyński ou nos Estados Unidos sob o presidente Donald Trump. Nas últimas semanas, políticos desses países com tais ideologias se viram cada vez mais encurralados, recorrendo a mentiras cada vez mais extravagantes. Enquanto os apoiadores do Brexit seguem insistindo que sair da União Europeia não seria devastador para a economia do Reino Unido, Kaczyński tem tentado culpar a oposição pelo assassinato do prefeito de Gdańsk, Paweł Adamowicz, em vez da retórica de seu próprio partido. Trump, por sua vez, continua a fabricar uma crise na fronteira mexicana para justificar suas demandas por um muro.
No entanto, apesar do foco dado às mentiras e à retórica violenta desses líderes, os usos mais sutis da retórica de extrema-direita nos últimos anos não têm merecido a mesma atenção. A história mostra que os movimentos intolerantes podem disseminar suas agendas não apenas por meio de eleições, mas também se infiltrando na linguagem comum do debate político. E, como veremos, as evidências atuais sugerem que “populistas” de extrema direita, autoritários e, sim, fascistas têm conscientemente travado uma batalha de palavras para conseguir vencer a guerra de ideias.
A arte da guerra semântica
Como Trump conseguiu arrancar o controle do Partido Republicano das mãos do establishment conservador dos Estados Unidos? Parte da história é a sua suposta “autenticidade”, que é realmente outra maneira de se referir ao seu estilo retórico e dicção. Em seus tuítes, “pool sprays” (breves momentos para fotos depois de uma coletiva) na Casa Branca e comícios com jeito de campanha, o uso da linguagem usada por Trump provou ser eficaz na promoção da sua política de “nós contra eles”, pelo menos entre uma base central de defensores fervorosos.
A retórica de Trump não surgiu do nada. Em 1990, Newt Gingrich, na época um deputado republicano da Geórgia, escreveu um memorando para a organização de treinamento partidário GOPAC que tem relação direta com a política americana atual. Em “Linguagem: um mecanismo-chave de controle”, Gingrich compilou duas listas, uma de “Palavras governantes otimistas e positivas”, a outra de “Palavras contrastantes”.
Na primeira lista, os republicanos são instruídos a usar os seguintes termos para definir sua “visão do serviço público”: “conflito”, “coragem”, “debate”, “escute”, “mobilize”, “pró-bandeira”, “pró-criança”, “pró-ambiente”, “pró-reforma”, “força”, “resistente”, “único” e “nós/eles”. E, na segunda lista, recebem etiquetas para aplicar em seus oponentes: “corrupto”, “corrupção”, “degradação”, “destruir”, “destrutivo”, “ganância”, “hipocrisia”, “ideológico”, “liberal” (no sentido dos costumes), “mentira”, “atitude permissiva”, “doente”, “ameaçam”, “traidores”, “burocracia sindicalizada”, “bem-estar social” e “eles”.
O memorando de Gingrich é muito similar aos “Dicionários meta-políticos” usados pela extrema-direita europeia. Por exemplo, no livro etno-nacionalista francês de Guillaume Faye, “Por que Lutamos: Manifesto da Resistência Europeia” [em tradução livre], de 2001, e o manifesto do líder fascista sueco Daniel Friberg, de 2015, “A Verdadeira Direita: um Manual para a Verdadeira Oposição”, o leitor é apresentado a um compêndio de termos específicos que têm o objetivo de conduzir o debate político. As listas incluem palavras como “globalismo”, “populista”, “estranho”, “cosmopolitismo” e “antirracismo”, definidas de maneiras que são hoje familiares entre a direita política.
Historicamente, movimentos fascistas costumam ser altamente sintonizados com a importância da guerra semântica e nas maneiras pelas quais práticas de discurso moldam e forma hábitos de pensamento. Assim como Hitler, em “Minha Luta”, expressou admiração relutante das táticas de propaganda usadas pelos aliados ocidentais na Primeira Guerra Mundial, também deveríamos reconhecer a sofisticação do uso da linguagem pelos fascistas contemporâneos. Só assim poderemos fazê-la recuar.
Fascismo que você pode levar para a casa da sua mãe
Considere, primeiramente, o termo “alt-right”, cuja autoria é frequentemente atribuída ao nacionalista americano branco Richard Spencer, embora uma aparição prévia em forma impressa parece ter saído em um artigo de dezembro de 2008 do historiador Paul Gottfried. Spencer tem orgulho de sua autoria e compete ferozmente com outros — incluindo Gottfried — que também reivindicam ter contribuído para a popularização do termo.
“A beleza da marca alt-right”, escreveu o publisher nacionalista branco Greg Johnson, “é que ela sinalizou uma dissidência da direita convencional, sem se comprometer com ideias estigmatizadas como nacionalismo branco e nacional socialismo”. Isso não significa que o próprio Johnson não esteja comprometido com essas “ideias estigmatizadas”. Como autor do livro “O Manifesto Nacionalista Branco”, ele reconhece abertamente que a “alt-right” tinha originalmente “influência forte” do nacionalismo branco, e que chegou a se fundir a ele.
Johnson saúda a chegada do rótulo “alt-right”, então, porque ele mascara a natureza antidemocrática do movimento. Só por essa razão, aqueles que não se consideram como parte dos alt-right não deveriam nunca usar a expressão. Já existem termos mais precisos para a mesma ideologia, a saber, “fascista”, que captura as conotações históricas que “alt-right” pretende remover.
A aplicação obscurantista de “alt-right” está em acordo com um dos objetivos maiores dos movimentos fascistas: alcançar a respeitabilidade. Como R. Derek Black, filho do fundador da Stormfront, um importante site branco-nacionalista, explicou em um comentário de 2017 no jornal The New York Times: “Meu pai frequentemente me alertava que nacionalistas brancos não querem recrutar pessoas nas margens da cultura americana, mas sim as pessoas que começam uma frase dizendo: ‘Eu não sou racista, mas …’” Da mesma forma, Johnson, em sua história da alt-right contada de dentro, observa que os primeiros expoentes do movimento “cultivavam um tom sério de respeitabilidade de classe média, evitando insultos raciais e discutindo raça e a questão judaica em termos de biologia e psicologia evolutiva”.
Enquanto isso, os movimentos fascistas europeus contemporâneos foram ainda mais longe na articulação da meta da respeitabilidade. A literatura europeia de extrema-direita está repleta de conselhos práticos sobre como se fazer parecer respeitável em comparação com os outros. Friberg, por exemplo, denuncia “violência política” e “revolução” em termos inequívocos.
Trata-se de uma manobra calculada. Na realidade, há uma relação que se reforça mutuamente entre a violência fascista de rua e os movimentos políticos fascistas, pela simples razão de que os partidos fascistas precisam de violência para parecerem pacíficos. Sem alguns fascistas se dedicando à violência, os partidos fascistas carecem de uma película para se diferenciarem como menos extremados, ou mesmo para se posicionarem como garantidores da “ordem”.
A busca pela respeitabilidade também está no cerne dos dicionários fascistas metapolíticos, que oferecem linguagem para fazer com que ideias antes extremas pareçam normais. Em “LTI: A Linguagem do Terceiro Reich”, Klemperer observa que “as palavras podem ser como pequenas doses de arsênico: são engolidas sem serem percebidas, parecem não ter efeito, e depois de algum tempo a reação tóxica afinal se instala”. Dicionários metapolíticos fascistas são melhor compreendidos como frascos de veneno, para serem administrados lentamente no vocabulário do corpo político.
Nós ou eles
Uma vez que os fascistas atingem um nível necessário de respeitabilidade, o fascismo em si pode começar a deitar raízes. Em sua essência, o fascismo é baseado em uma compreensão peculiar da luta social darwiniana — daí o título da autobiografia de Hitler, “Minha Luta”. E o darwinismo social, por sua vez, é o elo comum que liga o neoliberalismo (ou o libertarianismo econômico) e o fascismo. É por isso que não é surpresa ouvir Trump falar constantemente de “ganhar” nos negócios, evidenciando regularmente seu desdém por “perdedores”. Agora que ele está na Casa Branca, essa ideologia superficial está sendo traduzida em um projeto de luta nacional contra outros países.
Uma dinâmica similar se desenrola também na Europa. Na Alemanha, muitos dos membros originais do neo-fascista Alternative für Deutschland (AfD) pertenciam anteriormente ao Partido Democrático Livre, de centro-direita. O FDP [Partido Democrático Livre], mais do que qualquer outro partido político alemão, defende uma ideologia governamental neoliberal e se apresenta abertamente como “globalista”, favorecendo impostos mais baixos e mais livre comércio. Entender como o fascismo pode emergir do libertarianismo econômico é essencial para compreender o perigo que as democracias ocidentais enfrentam hoje.
O libertarianismo econômico — que não deve ser confundido com democracia — é uma filosofia na qual a luta individual é valorizada e o sucesso é um determinante do valor individual. O fascismo, pelo contrário, baseia-se no valor do grupo como produto da luta de grupo. O fascismo, portanto, substitui os indivíduos por grupos como sujeitos e objeto de análise. É uma posição claramente distinta da do libertarianismo. Mas a história recente mostra que há suposições problemáticas que permitem que se escorregue de um ponto de vista para o outro, sem perceber. Por exemplo, aqueles que acreditam pertencer a um grupo com hábitos de trabalho superiores e uma maior capacidade de luta podem derivar o valor individual através apenas da adesão e solidariedade a esse grupo.
As pessoas que pensam dessa maneira tendem a considerar o mercado internacional como um campo de batalha em que “nações” individuais estão engajadas em combate; quando olham para além da nação, veem um “mundo de inimigos”. Mas, para que a política fascista crie raízes, é suficiente apenas pensar que há uma batalha entre grupos nacionais dentro de um país. De qualquer forma, o mito da superioridade de um grupo é uma arma valiosa. Como Faye escreve em “Por que lutamos” (grifo dele):
“Se é ‘objetivamente’ verdadeiro ou falso, não importa: o etnocentrismo é a condição psicológica necessária para a sobrevivência de um povo (ou nação). A história não é um campo no qual os princípios intelectualmente objetivos são desenvolvidos, mas um que é condicionado pela vontade de poder, competição e seleção. As disputas escolásticas sobre a superioridade ou inferioridade de um povo são irrelevantes. Na luta pela sobrevivência, o sentimento de ser superior e correto é indispensável para agir e ter sucesso.”
Ao exortar a necessidade de um mito de superioridade nacional, uma característica dos fascistas é evidenciar catástrofes iminentes, que sempre serão suficientemente extremas para exigir não apenas a determinação individual e a falta de remorso, mas grupos de indivíduos alinhados como nações. Os desastres do futuro causarão tanto estrago e exigirão tanta competição por recursos escassos que não haverá nenhum lugar para a compaixão. A ideologia fascista catastrofiza o futuro como um meio de afirmar sua própria necessidade no presente.
Escatologias reais e imaginadas
É bom pensar que as democracias ocidentais são menos vulneráveis às tentações do pensamento fascista do que no passado. E, no entanto, ao contrário do passado, os movimentos fascistas de hoje estão respondendo a ameaças catastróficas iminentemente plausíveis. Isso significa que não pode haver espaço para complacência.
Para Hitler, a catástrofe motivadora era uma iminente escassez global de alimentos, algo que nunca fez muito sentido. Mas quando Faye escreve sobre uma catástrofe ambiental iminente, não é tão fácil descartá-lo de imediato. Como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas deixou claro em um relatório especial em outubro passado [2018], o catastrófico aquecimento global pode bem definir o futuro da humanidade nas próximas décadas.
Além disso, como Black nos lembra, os EUA têm uma longa história de pensamento étnico-nacionalista e fascista. Benjamin Rush, um dos signatários da Declaração de Independência, acreditava que a luta entre as nações tornava necessário incutir nos cidadãos norte-americanos um mito de nação americana. E, a julgar por um perfil recente na revista The Atlantic, Gingrich defende hoje uma ideologia que é mais ou menos a mesma encontrada nos livros de Faye e Friberg.
De fato, Gingrich está fixado na biologia evolutiva, e parece acreditar que a herança evolutiva da humanidade é melhor representada pela brutalidade e feiúra da política humana. De acordo com a The Atlantic, ele acha que deveríamos “ver o reino animal do qual evoluímos pelo que realmente é: ‘um mundo muito competitivo e desafiador, em todos os níveis’”. Em outras palavras, o que alguns podem ver como “ferocidade”, Gingrich vê como uma luta “natural” de vida ou morte.
Liberdade, Igualdade, Fraternidade, Superioridade
Ao mesmo tempo em que a ideologia fascista propaga a superioridade nacional como um mito necessário, ela também necessariamente encarna este mito. Consequentemente, em “Minha Luta”, Hitler declara que “…tudo o que admiramos nesta terra — ciência, arte, habilidade técnica e invenção — é o produto criativo de apenas um pequeno número de nações… Toda essa cultura depende deles para sua própria existência… Se dividirmos a raça humana em três categorias — fundadores, mantenedores e destruidores da cultura — o estoque ariano sozinho pode ser considerado como representando a primeira categoria”.
Em espírito similar, Faye insiste que “a contribuição que a civilização europeia (incluindo seu pródigo americano) fez à história da humanidade ultrapassa, em todos os domínios, a de todos os outros povos”. Atualmente, é possível encontrar versões mais suaves dessa ideia sendo promovidas por políticos de extrema direita europeus que há muito tempo ganharam respeitabilidade. Essa é a natureza da guerra semântica.
Considere o conceito de “Iluminismo europeu”, que não tem um significado filosófico único. Como categoria taxonômica, ele poderia incluir filósofos tão fundamentalmente opostos quanto Hume e Kant. Algumas de suas figuras, sendo Kant não menos importante entre elas, foram os principais proponentes de conceitos que os fascistas energicamente rejeitam (isto é, a dignidade humana universal).
Entretanto, políticos europeus de extrema-direita adotaram sutilmente o discurso do Iluminismo como uma maneira de contrabandear reivindicações mais cruas de superioridade europeia. Por exemplo, o prefeito de Antuérpia, Bart De Wever, um nacionalista flamengo sincero, recentemente começou a se referir ao Iluminismo como “o software” da “grande narrativa da cultura europeia”. Pegando emprestado do filósofo britânico Roger Scruton, ele argumenta que “o Iluminismo europeu” e o nacionalismo são complementares em vez de opostos. Em De Wever, é possível encontrar uma sobreposição significativa com Faye. Por exemplo, ambos condenam o liberalismo [de costumes] e o socialismo como levando a “fronteiras abertas”, “espaços seguros”, “leis que protegem sentimentos” e a dissolução da autoridade dos pais.
Em comparação, considere o caso de Steve King, um membro republicano da Câmara dos Deputados americana, de Iowa, que recentemente causou controvérsia perguntando como uma linguagem como “nacionalista branco, supremacista branco, civilização ocidental” tinha se “tornado ofensiva”. King, aparentemente, não recebeu o memorando sobre se esforçar pela respeitabilidade. Mas o restante do seu partido sim. Após um clamor público, congressistas republicanos retiraram King de suas posições nas comissões da Justiça e Agricultura da Câmara. Embora ele tenha feito declarações ofensivas semelhantes no passado, o Partido Republicano viu uma oportunidade de afirmar sua relativa respeitabilidade. E assim, King foi jogado aos leões por expressar opiniões, sem dúvida, compartilhadas por muitos de seus colegas republicanos — começando com seu candidato presidencial de 2016.
Truque linguístico
Do ponto de vista norte-americano, fascistas europeus como Faye e, em menor escala, Friberg podem parecer exóticos demais para representar qualquer perigo real. Sua invocação simultânea do Iluminismo e renúncia de seus ideais é uma estratégia que é estranha às próprias tradições cívicas da América, e sua histeria sobre a mistura racial permanece completamente inadmissível nos EUA (e, de fato, em grande parte da Europa Ocidental). Não se costuma ouvir muitos políticos americanos — ou mesmo membros da chamada “dark web” intelectual — promovendo Nietzsche.
E, no entanto, ler os dicionários metapolíticos dos fascistas europeus é profundamente desconcertante, porque se descobre que grande parte da linguagem — e as formas de pensar concomitantes — já alcançaram o status de normais.
Faye, por exemplo, denuncia o antirracismo como uma doutrina que “encoraja a discriminação em favor de estrangeiros, a dissolução da identidade europeia, a multirracialização da sociedade europeia e, no fundo, paradoxalmente, o próprio racismo”. Quando isso foi escrito em 2001, parecia ridículo. Dizer que antirracismo é racismo é uma inversão fascista clássica dos ideais (guerra é paz, corrupção é anticorrupção, autoridade é liberdade). Mas agora considere o que aconteceu nos anos intermediários. O conceito de “racismo reverso” tornou-se normal.
Quando Faye afirma que o antirracismo é a “pedra de toque dos falsos moralistas” e “a expressão mais avançada da ideologia totalitária pós-moderna”, sua diatribe torna-se obviamente desequilibrada. Mas, para além do nível de hipérbole, seu argumento é realmente tão diferente do que a brilhante descrição de “antirracismo” do linguista da Universidade Columbia John McWhorter, como “uma religião nova e cada vez mais dominante?”
Ou, considere a questão da “correção política”, definida por Friberg como “algo pejorativo normalmente usado para um conjunto de valores e opiniões dos quais os indivíduos não podem se desviar sem se tornarem vítimas de sanções sociais e/ou de mídia”. Nos dois trechos abaixo, ambos do trabalho de Friberg, é realmente difícil dizer se o autor é Friberg ou um dos muitos “liberais clássicos” baseados nos EUA condenando as últimas tendências nos campi universitários:
“A última inovação [da extrema esquerda] é a ridícula pseudociência dos ‘estudos de gênero’… que, sob o disfarce de ‘justiça’ e ‘igualdade’, visa criar um ser humano atrofiado… dependente de… acadêmicos para criar seu sistema de valores.” “O antirracismo apoia a auto-afirmação étnica das minorias desde que a minoria em questão não seja europeia. Isso é justificado pela referência a conceitos em larga escala reificados e imaginários, tais como ‘privilégio branco’.”
“O antirracismo apoia a auto-afirmação étnica das minorias desde que a minoria em questão não seja europeia. Isso é justificado pela referência a conceitos em larga escala reificados e imaginários, tais como ‘privilégio branco’.”
Para dar um exemplo final, os ataques contra o chamado marxismo cultural parecem ter se tornado algo normal dentro da academia. Mas, como Samuel Moyn, da Universidade de Yale, apontou recentemente, o termo em si é um tropo antissemita reciclado que vem pipocando nos fóruns de mensagens fascistas há anos.
Ao se ler Faye e Friberg e perceber as muitas sobreposições com o discurso político contemporâneo, é difícil não pensar que os fascistas estão vencendo a guerra semântica. É certo que muitos dos liberais americanos e europeus preocupados com a “extrema esquerda” e estudos de gênero rejeitariam Nietzsche e seriam chamados, pela extrema direita, de “globalistas”. Esses não são fascistas. E, no entanto, não devemos esquecer como tem sido fácil para alguns pensadores e políticos — o FDP da Alemanha é o melhor exemplo da nossa época — se afastar do neoliberalismo.
A singularidade fascista
Lapsos semelhantes podem ocorrer em outras áreas. Por exemplo, alguns intelectuais antinacionalistas conhecidos estão pressionando cada vez mais por um debate sobre as diferenças de QI entre grupos raciais, apenas para sinalizar seu próprio compromisso com a verdade. Outros nos pressionam a reconhecer o Iluminismo como a realização sinalizadora da civilização, como se fossem os europeus que tivessem inventado a razão e a concedido ao resto da humanidade. Como Gingrich entendeu quando incluiu termos como “debater” e “escutar” do lado positivo de seu livro, os apelos à razão podem servir a praticamente qualquer fim. Assim, Friberg nos assegura que a razão defende restrições na imigração.
Da mesma forma, ideólogos fascistas constantemente sustentam e defendem a meritocracia como um ideal. Mas o mesmo acontece com todos os “globalistas”, bem como com os libertários do Vale do Silício. No caso de uma catástrofe ambiental, não é difícil imaginar defensores do livre mercado optando pelo ultranacionalismo como a melhor estratégia de sobrevivência, ou bilionários da tecnologia decidindo que a sociedade deve ser dirigida pelos “vencedores” — isto é, pessoas como eles.
Em seu uso original, o termo “alt-right” encerrou ideologias antidemocráticas um tanto distintas, entre elas o “iluminismo sombrio”, do filósofo Nick Land. Segundo Land, a democracia é inevitavelmente corruptora, e os estados democráticos devem ser substituídos por “Gov-Corps” que são dirigidas como corporações e gerenciadas por um CEO. O princípio norteador seria “Nenhuma voz, saída livre”, significando que os cidadãos não teriam voz na formulação de políticas, mas poderiam sair quando quisessem (como se o autoexílio — uma das mais severas punições da Antiguidade — não envolvesse custos). De acordo com Olivia Goldhill, do Quartz, o iluminismo sombrio atraiu um número de defensores proeminentes no Vale do Silício, incluindo, aparentemente, o capitalista de risco Peter Thiel, que vem canalizando alguns de seus princípios em seus discursos.
Estudiosos que escrevem sobre o iluminismo sombrio usaram o termo “fascismo” para descrevê-lo. O perigo agora é que movimentos antidemocráticos de extrema-direita distintos, do etnonacionalismo europeu e americano às vertentes tecnocorporativistas como o iluminismo negro estão convergindo, embora com apoiadores que foram atraídos por diferentes razões.
Se fala como um fascista…
Como vimos, o objetivo dos dicionários metapolíticos fascistas como os de Faye e Friberg é inserir no discurso público termos que soam inocentes para fazer com que ideologias antidemocráticas antes inaceitáveis pareçam benignas, diminuindo assim a oposição pública a, se não autorizando, a ação antidemocrática. Quando o princípio democrático fundamental de respeito igualitário é remodelado como “politicamente correto”, não é de surpreender que as pessoas aceitem mais os políticos chamando grupos de imigrantes de “estupradores” e “cobras”. Quando políticos começam a chamar imigrantes e refugiados de “estrangeiros ilegais”, não é surpresa que as pessoas se tornem mais tolerantes a que sejam tratados como se fossem menos que humanos, confiscando seus filhos e colocando-os em gaiolas e acampamentos degradantes.
Sou um filósofo da linguagem e linguista por formação, assim como um epistemólogo e um cientista cognitivo. Eu sei muito sobre o que se sabe sobre linguagem e pensamento, e tenho uma boa noção do que permanece desconhecido. Na situação atual, podemos ver quando certas formas de falar e pensar vêm adquirindo uma posição de destaque, de maneira mais ampla, mas não temos nenhuma maneira óbvia de calcular seus efeitos sobre os indivíduos e a sociedade.
Além disso, não sabemos se é possível adotar a linguagem da histeria com respeito a esquerdistas, sindicatos, marxismo, gênero e imigrantes sem também adotar outras partes do pacote fascista. Nós não sabemos se o fascismo é um jogo de linguagem holístico. Aqui, os melhores guias vêm da nossa própria história. Intelectuais, de Klemperer a James Baldwin, nos alertaram sobre os custos da derrota na guerra semântica, que perdemos ao adotar o vocabulário de nossos inimigos.
Estou profundamente preocupado que nosso uso linguístico em mutação esteja pavimentando o caminho para resultados antidemocráticos, incluindo versões modernas do fascismo, que não refletirão precisamente as formas que conhecemos no passado. Dado esse perigo, é de vital importância não ter medo de se rotular o perigo pelo que ele é.
Jason Stanley é professor de Filosofia na Universidade de Yale e autor de “Como funciona o fascismo”
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