Dez anos depois aparecem em profusão, em todo lugar, balanços, interpretações e análises do que foram aquelas surpreendentes manifestações ocorridas no Brasil em junho de 2013. Há de tudo, inclusive juízos reacionários, de recém-convertidos ao governismo, dizendo que foram as manifestações de 2013 que “prepararam” a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, hipótese absurda que foi cabalmente desconstruida por artigo de Pablo Ortellado, em O Globo (10/06/2023) intitulado Junho de 2013 foi o ovo da serpente?
No artigo citado acima, Ortellado escreveu: “No Brasil [o argumento do ovo da serpente], tem sido exaustivamente mobilizado por setores da esquerda para se referir a uma sequência causal imaginária que liga os protestos de junho de 2013 às manifestações anticorrupção; essas, por sua vez, ao impeachment de Dilma Rousseff, à prisão de Lula e à eleição de Jair Bolsonaro. O ovo da serpente que teria sido necessário exterminar são os milhões de jovens que saíram às ruas pedindo direitos sociais e o fim da corrupção em junho de 2013. Essa alegada sequência causal confunde contexto com causa e faz uma conexão amalucada, completamente desprovida de evidências, insinuando que os futuros eleitores de Bolsonaro animavam os protestos de junho de 2013… Muita coisa aconteceu entre junho de 2013 e a eleição de Bolsonaro, e a conexão causal direta que liga as duas coisas não passa de um delírio petista — irmão de outro delírio que é a tese adotada por Lula, segundo a qual os protestos de junho de 2013 foram promovidos pelo serviço secreto de Barack Obama. A tese do ovo da serpente é uma explicação sem pé nem cabeça que atribui a ascensão de Bolsonaro à mobilização popular por direitos e retira do PT qualquer tipo de responsabilidade”.
Na mesma linha, Marcus André Melo, em artigo na Folha de São Paulo (12/06/2023), intitulado Muitos dos fatores que engendraram junho de 2013 estão à vista, escreveu que “o argumento de que o bolsonarismo ou o 8 de janeiro têm origem em junho de 2013 ou decorrem dele inverte a direção da causalidade: ele não é causa, mas sintoma”.
Joel Pinheiro, em artigo na mesma Folha (06/06/2013), intitulado Brasileiro perdeu o medo de protestar em junho de 2013 e logo mais estará de volta, já havia assinalado, numa perspectiva positiva, que “a alternativa é aceitar que a mudança veio para ficar, que temos pela frente tempos mais turbulentos e revoltos, mas que só terá chance neles quem descer do palanque, se despir de suas credenciais e conversar com as pessoas no nível em que elas estão. Acabou o reinado inconteste de “especialistas”, seja na ciência, na política, nas finanças ou no jornalismo. Todos têm que aprender a persuadir e entrar no jogo da comunicação horizontal e pessoal. As ruas estão vazias agora, mas se engana quem acha que elas permanecerão assim por muito tempo”.
Sergio Fausto, em equilibrada entrevista a Ricardo Mendonça, do Valor Econômico (02/06/2023), constatou que 2013 não produziu melhoria institucional. Ele disse: “Aquelas aspirações difusas que apareceram em 2013 não encontraram bons intérpretes nem vontade de transformá-las em reformas concretas. O que aconteceu foi o bolsonarismo”. O que parece ser verdade, desde que não estabeleçamos um nexo de causalidade entre uma coisa e outra. Ou seja, o bolsonarismo não apareceu em razão do que junho de 2013 fez e sim em razão do que o sistema político não fez após o formidável choque das ruas que levou (como, em outras palavras, o próprio Sergio lembrou).
De qualquer modo, o significado de junho de 2013 ainda está em disputa e ficará assim por muito tempo. Inclusive porque os resultados mais profundos de um swarming civil (como foram os dos dias 17 e 18 de junho de 2013 no Brasil) não podem ser verificados num curto espaço de tempo (e 10 anos é quase nada do ponto de vista das repercussões de uma manifestação tão ampla e profunda da fenomenologia da interação social em mundos altamente conectados).
Coincidentemente (ou não), o maior swarming da história humana ocorreu poucos dias depois do brasileiro, no dia 30 de junho de 2013, no Cairo e em todas as cidades do Egito, e culminou com a deposição do jihadista eleito Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, que queria submeter o país à sharia, mas depois veio a ditadura militar de Abdul Al-Sisi. Isso significa que o movimento fracassou? Não cabe julgar esses tipos singularíssimos de movimentos sociais com as ideias de sucesso e fracasso. Eles não tinham propósito urdido antes de acontecerem. Simplesmente aconteceram e as alterações moleculares que desencadearam estão ainda em curso nos subterrâneos da sociedade egípcia. Creio que o mesmo pode estar ocorrendo – invisivelmente – no Brasil.
Estou preparando uma série de artigos (e vídeos) sobre 2013, não me concentrando no que as manifestações não fizeram (pois não estavam mesmo destinadas a fazer), como criar novas instituições e sim nas possibilidades inéditas que abriram.
Para começar, recupero um e-book que publiquei ainda em 29 de junho de 2013, com artigos publicados no Facebook de 16 a 29 de junho daquele ano. Não acertei em tudo, como é óbvio. Por exemplo, quando publiquei o livrinho (transcrito abaixo) ainda não havia acontecido a mega-manifestação egípcia (que foi, em números absolutos e relativos, muito maior do que a brasileira – a maior da história, como assinalei acima). Note-se, porém, que o primeiro artigo da publicação foi escrito um dia antes do grande swarming de 17 de junho.
O e-book original pode ser baixado aqui: OS 7 DIAS QUE ABALARAM O BRASIL
OS 7 DIAS QUE ABALARAM O BRASIL
Introdução
Os artigos aqui reunidos (publicados no Facebook) foram escritos de 16 a 20 de junho de 2013, no calor dos extraordinários acontecimentos que se espalharam “como sarampo” (para usar uma expressão muita usada pela Ruth Cardoso) por todo o país neste memorável junho de 2013.
Os sete dias a que o título da presente coletânea se refere correram de 17 a 24 de junho. O fenômeno incomum propriamente dito se concentrou em 17 e 18 de junho, quando, sem convocação centralizada, multidões de milhões se constelaram em ruas de praças do Brasil, nas capitais e no interior, nas grandes e pequenas cidades, de norte a sul e de leste a oeste do território nacional.
Não faço aqui uma análise propriamente política e sim social (entendendo por ‘social’ a rede social, quer dizer, o multiverso de conexões ocultas que se configuram quando pessoas interagem e não o conjunto dessas pessoas).
A grande questão é: por que os brasileiros resolveram se manifestar justo agora, como se de repente tivessem acordado de um estado de coma que durou 20 anos? É claro que os artigos reunidos aqui não respondem essa questão. Mas ajudam a compreender o que aconteceu.
São Paulo, 29 de junho de 2013
Augusto de Franco
Índice
Guerra ou paz? | 16/06/2013
Para entender as manifestações de junho de 2013 | 18/06/2013
O potencial transformador do presente convivido | 19/06/2013
As multidões de junho diante da bifurcação | 20/06/2013
Decifrando a velha política | 22/06/2013
Cola com nós, mano, que tu brilha | 22/06/2013
Só a paz é revolucionária | 23/06/2013
O embuste da conspiração da direita | 23/06/2013
As manifestações de junho de 2013 e a inteligência coletiva | 24/06/2013
O swarming brasileiro pode ter sido o maior já visto na Terra | 26/06/2013
O que vem agora | 27/06/2013
Efeitos colaterais: o fim da Era Lula | 29/06/2013
Guerra ou paz?
Sobre as tentações militantes que acossam alguns participantes das manifestações de rua em São Paulo e alhures
Facebook, 16/06/2013
Participei de muitas manifestações de rua. A mais famosa ficou conhecida como “Passeata dos 100 mil”. Não eram assim tão espontâneas, nem convocadas peer-to-peer como algumas que, felizmente, vemos hoje. Eram articuladas centralizadamente ou descentralizadamente (quer dizer, multicentralizadamente), não distribuidamente (e se alguém ainda não entende essa diferença – entre descentralizado e distribuído – não poderá entender quase nada do que vou dizer aqui).
Eu fazia parte, via-de-regra, de um desses centros. Meu objetivo e os dos meus camaradas não era evitar a violência e sim provocá-la. Queríamos desmascarar a ditadura militar para desestabilizá-la. Assim, queríamos que as forças repressivas reprimissem de fato violentamente as manifestações. Não éramos suicidas e não queríamos matar ninguém, mas um cadáver produzido pela repressão seria politicamente muito bem-vindo. Um cadáver era uma bandeira preciosíssima. Então nos organizávamos para o confronto, ou para desencadear o confronto. Íamos armados de vários objetos, desde coquetéis molotov, bombas caseiras, bolinhas de gude e rolhas (para derrubar os cavalos), forquilhas de pregos soldados para furar pneus… Enfim, nos preparávamos como quem vai para a guerra. Afinal, éramos militantes (e a origem da palavra diz quase tudo). Não éramos agentes da paz e sim da guerra.
No contexto da guerra não corríamos o risco apenas de levar cacetadas, ter a cabeça quebrada ou, eventualmente, vir a morrer em consequência de ferimentos infligidos no confronto com as tropas repressoras. Se fôssemos pegos – alguns de nós, pelo menos – seríamos presos e condenados, torturados ou mortos. Como fomos.
A diferença para as manifestações de hoje – no Brasil e em vários países, pelo menos do ocidente – é que estávamos lutando contra uma ditadura. Tínhamos a legitimidade de quem estava lutando contra a autocracia. Mas embora falássemos em democracia frequentemente, não estávamos convertidos à democracia e, na verdade, não tínhamos a menor noção do que era democracia. Éramos analfabetos democráticos. Democracia era, para nós, um conceito instrumental, um recurso de agitação e propaganda. Democracia era a bandeira para derrubar a ditadura e depois, quando a ditadura fosse derrubada… bem, aí erigiríamos o nosso próprio governo: autocrático, sim, mas do-bem, de esquerda, dos que querem redimir a humanidade, salvá-la do capitalismo, da dominação, opressão e exploração das elites, da burguesia, daquele 1% (como se diz hoje) que comanda e controla nossas vidas (a vida dos 99%, do povo, do povão, dos dominados, oprimidos e dominados).
Os militantes e ativistas de hoje – em sua maioria (não todos) – não percebem tal diferença e confundem ditadura com democracia (sim, com esta sofrível democracia, já se sabe, limitada, formal e representativa, reinventada pelos modernos). Alguns, que resolveram adotar como símbolo a máscara do filme “V de Vingança” (2006), não apreenderam corretamente a metáfora do roteiro dos irmãos Wachowski: na história estava-se lutando contra um regime em crescente processo de autocratização, contra uma ditadura. Não, não captaram que não é tudo a mesma coisa. Que Madri não é Cartum, Nova York não é Pyongyang e São Paulo não é Teerã.
Às vezes penso numa anedota. Gostaria de entrar em contato com os caras que publicam manuais de Ação Direta para armar a militância, nos Estados Unidos e em vários países europeus, e agora também aqui no Brasil, para conversar com eles sobre como andam os processos que estão articulando em Pequim, Havana e Luanda… (risos e se só eu ri, haverá um problema).
Ah! Não estão? Parece que eles (ou algum deles) – tão ocupados em preparar a derrubada do capitalismo global em três dezenas de democracias formais – não têm mesmo muito tempo para se preocupar com as tenebrosas 50 ditaduras que remanescem neste século 21 e sob as quais ainda vivem bilhões (sim, mais de 2 bilhões) de pessoas. Deles não se ouve um pio sobre isso.
Mas neste ponto – a democracia -, curiosamente, não há grande diferença entre o que fazíamos nos nossos centros convocadores de outrora e o que faz boa parte dos centros de militantes ou ativistas que hoje querem convocar manifestações de massa. Sim, os de hoje, em sua maioria, também não têm a menor noção da democracia, embora – a despeito da consciência que não-têm – podem fazer parte, sim, como nós fizemos, de uma corrente de democratização.
Mas há, felizmente, outra diferença. Nós convocávamos mesmo, de modo mais centralizado do que distribuído, a massa: para arrebanhá-la, conduzi-la, instrumentalizá-la (sempre para um bom propósito, é claro), enquanto alguns de hoje (não todos, felizmente) imaginam tolamente que estão convocando, de modo descentralizado, as manifestações da multidão. É uma diferença, do ponto de vista da democracia, a favor dos de hoje. Nós, os de ontem, agíamos muito pior do que os de hoje. Embora os de hoje não saibam disso. E nem percebam que a sua impotência em convocar, organizar, instrumentalizar, liderar, conduzir, não é consequência de qualquer erro que estariam porventura cometendo: é apenas um sinal de que a estrutura da sociedade está configurando um ambiente mais favorável ao processo de democratização. Quanto menos eles – os militantes e ativistas adversariais – podem, mais pode a sociedade (quer dizer, a rede social).
Mesmo assim, alguma influência haverá, sobre as manifestações de rua de hoje, dos grupos que se preparam para a guerra. Não são todos, por certo. Talvez nem a maioria. Ainda bem. Mas bastam alguns grupos determinados a provocar a repressão policial violenta para desencadear um confronto de consequências imprevisíveis, provavelmente desastrosas. Eu mesmo (juntamente com outros) fiz isso, e várias vezes. Muitos poderiam fazer, se quisessem. Por exemplo, se as manifestações forem relativamente reduzidas, com até, digamos, 30 mil pessoas, precisa-se apenas de umas 30 pessoas (cada uma com 10 pessoas conhecidas no seu entorno) para fazer isso. Iniciada a espiral da violência, a coisa anda sozinha e corre solta. A indignação popular com a repressão policial-militar às manifestações de rua tende – sobretudo nas democracias formais, onde a polícia e o exército não podem matar abertamente as pessoas, a não ser quando isso é caracterizável como acidente derivado do confronto – a engrossar as manifestações. Quem não ligava para o assunto, passa também a se indignar. Milhares de novos manifestantes aderem aos protestos. Novos agentes provocadores surgem também, espontaneamente, em função da dinâmica que foi desencadeada. De 30 passam para 300, 3 mil… Se a violência continua, de parte a parte, pode-se desestabilizar até mesmo o regime político. E aí?
Bem, aí o poder, é claro, não vai para o povo como pensam os babacas e sim para os destacamentos que estiverem organizados para empalmá-lo: para alguém mais preparado para fazer isso (organizado top down, hierárquica e autocraticamente) do que aqueles ativistas desprecavidos de boa-vontade e, sobretudo, do que as pessoas que foram às ruas manifestar sua legítima indignação, comovidas por um senso de justiça e solidariedade. Se isso acontecer haverá um retrocesso no processo de democratização. Sim, estou descrevendo aqui a gênese de um processo de autocratização a partir de movimentos de massa. Pode? É claro que pode.
Isso não acontecerá, todavia, se multidões ocuparem as ruas. Quando centenas de milhares, milhões, saem as ruas, não há mais repressão possível. Mas multidões de pessoas conectadas – e formadas a partir de miríades de micromotivos diferentes (compondo uma grande murmuration) – não são massas arrebanhadas. Bem… aqui começa nossa conversa logo após o fim do (velho) mundo (único).
Uma multidão de milhões não pode ser convocada centralizadamente, nem mesmo descentralizadamente. Ela acontece por um mecanismo distribuído próprio da rede. Ela é a manifestação de uma fenomenologia da interação, um swarming (enxameamento). Felizmente, swarmings – como o que aconteceu em Madri (a propósito da tentativa de falsificação, pelo governo de Aznar, da autoria dos atentados da Al Qaeda em março de 2004, atribuindo-a falsamente ao separatismo basco) ou no Egito (a manifestação na Praça Tahir que foi decisiva para a queda do ditador Mubarak em fevereiro 2011) – não podem ser planejados por um grupo centralizado, não podem ser urdidos por um comitê central e nem podem ser convocados por meios broadcasting. Só ocorrem quando se trafega pelos canais próprios das redes, por meios P2P, ou seja, quando o fluxo percorre os múltiplos caminhos de topologias distribuídas. São necessários muitos feedbacks, muitos laços de retroalimentação de reforço, muitas reverberações, para que pequenos estímulos provenientes da periferia dos sistemas estáveis afastados do estado de equilíbrio, possam se amplificar de modo a modificar o comportamento dos agentes do sistema como um todo. Só quem pode fazer isso é a rede, não hierarquias.
Pode-se, no máximo, tentar clonar as estruturas distribuídas das redes sociais realmente existentes (e é bom não confundir as redes sociais, quer dizer, as pessoas interagindo segundo determinado padrão mais distribuído do que centralizado, com as mídias sociais, as ferramentas interativas – como o Facebook e o Twitter) e procurar atuar de modo coerente com elas. Atuar de modo coerente com a estrutura e a dinâmica de mundos distribuídos significa fazer netweaving: mais do que cortar e quebrar, tecer, alinhavar. Ou seja, ser mais interativista do que ativista (militante).
Nada de organizar destacamentos. Interagir para clusterizar (sim, tudo que interage clusteriza). Distribuir para enxamear (sim, tudo que interage, a partir de certo grau de distribuição, conectividade e interatividade, pode enxamear). Conectar para contrair o tamanho social do mundo, quer dizer, para ensejar e acelerar o crunching (o amassamento que ocorre em Small Worlds Networks) que está mudando não apenas a estrutura e a dinâmica, mas a natureza daquilo que chamamos de sociedade humana.
Mesmo assim, não se sabe – e é bom que não se saiba de antemão – se os fenômenos mencionados vão acontecer. Eles podem acontecer e podem não acontecer. O importante é não tentar instrumentalizar os outros, mobilizá-los para o confronto, insuflar um ânimo adversarial, construir e demonizar inimigos O importante é não iniciar uma espiral de violência. O importante é construir a paz e não a guerra.
A democracia nunca nasce da violência. Não há um caso, um único caso na história. A primeira democracia, a democracia dos antigos gregos, não nasceu assim: os atenienses frequentadores da Ágora não organizaram um atentado ao tirano Psístrato ou ao seu filho Hipias, nem, muito menos, insuflaram uma rebelião popular. O protagonismo daquela nascente dinastia autocrática foi interrompido, sim, mas por ação pacífica. Os democratas simplesmente proclamaram um édito em que dispensavam os serviços do autocrata. Clístenes, Efialtes e Péricles não tomaram o poder tirânico para exercê-lo da sua maneira, simplesmente dispensaram esse poder (quer dizer, recusaram-se a reproduzi-lo do modo como estava estruturado: e é a isso, precisamente, que chamamos de primeira invenção da democracia). A democracia dos modernos também não se estabeleceu a partir de nenhuma guerra, ainda que tenha ficado constrangida a se transformar (e a se rebaixar) em um modo de administração política do Estado-nação, este sim, uma estrutura desenhada pela guerra e para a guerra. Esta, aliás, é a principal razão dos limites que a democracia atualmente existente impõe ao processo de democratização e, inclusive, mais do que isso, a razão da sua falência, agora anunciada pelos novos movimentos da sociedade-em-rede.
A terceira democracia, quando vier, também não virá por meio de uma guerra. Por que? Ora, porque a democracia é um modo pazeante das relações. Ela é o contrário da autocracia, que só pode se manter com base na guerra. Ela não é um lugar para se chegar e sim um modo de caminhar que desconstitui autocracia na medida em que recusa combater e vencer para derrotar inimigos (reais ou construídos como pretexto para justificar uma estratégia de poder).
As democracias não nascem de rebeliões, nem de revoluções entendidas como atos violentos de remoção dos antigos ocupantes dos cargos de poder e sua substituição por novos ocupantes. Todos os processos que foram assim desencadeados produziram mais autocracia, não mais democracia. Estreitaram a brecha democrática que foi aberta, uma ou outra vez na antiguidade e na modernidade, na civilização patriarcal e guerreira. Restringiram em vez de ampliar as liberdades.
As primeira medidas dos governos revolucionários que chegaram ao poder pela violência foram, via de regra, a abolição da liberdade de imprensa e da liberdade de organização, a instalação de polícias políticas e a ereção de monstruosos aparelhos estatais de repressão. Ademais, provocaram verdadeiros genocídios, os maiores de que se tem notícia na história.
As democracias não são originadas em eventos épicos, em grandes batalhas, mas são resultados de processos moleculares, de dinâmicas de rede (sim, se não houvesse uma rede social em Atenas, com significativo grau de distribuição, a conversação na praça do mercado que deu origem à primeira democracia não teria acontecido). As democracias não são regimes de heróis, de visionários desvairados que querem conduzir rebanhos, de líderes manipuladores, de utopistas vidrados em suas fórmulas para redimir a humanidade e salvar a espécie humana por meio de grandes confrontos épicos, de batalhas titânicas. A democracia é lírica, é um modo de convivência pacífico e pacificante, voltado para transformar inimizade em amizade política e – para lembrar John Dewey (1939) – praticado pelas pessoas comuns.
Atribui-se ao Mahatma Gandhi o dito de que não existe um caminho para a paz, a paz é o caminho. [Na verdade a frase, atribuída a Gandhi, foi de fato proferida pela primeira vez por Abraham Johannes Muste (1885-1967)]. O mesmo pode ser dito da liberdade, da materialização do ideal de liberdade como autonomia e da democracia como modo pazeante de regulação de conflitos. Não existe caminho para a democracia: a democracia é o caminho. Se queremos uma nova democracia, mais democratizada ou radicalizada, não há outro caminho senão a democratização.
Sim, vamos ocupar todas as ruas. Amanhã, depois e quando desejarmos. Que sejamos multidões formadas por iterações de um-mais-um, não rebanhos reunidos e manipulados, massas uniformes e indiferenciadas gritando palavras de ordem fabricadas em algum covil de militantes tarados ou seguindo bandeiras de partidos autocráticos e oportunistas. Seremos milhares, centenas de milhares, milhões: mas um-a-um, pessoas únicas cada um de nós, pensando com nossas próprias cabeças, compartilhando nossos desejos de mudança horizontalmente, com nossos próprios emaranhados e recusando diretivas daqueles hierarcas ou proto-hierarcas que querem nos conduzir.
Não à guerra. E que a paz esteja conosco!
[Um dia depois de publicado este artigo ocorreu o swarming de 17 de junho de 2013]
Para entender as manifestações de junho de 2013 no Brasil
Por que as manifestações de hoje são diferentes (e uma mesma canção)
Facebook, 18/06/2013
1 – Em 1970, quando Chico Buarque compôs Apesar de você, vivíamos em plena ditadura militar no Brasil. Agora, em junho de 2013, não (felizmente).
2 – Lutávamos àquela época por liberdade (embora não estivéssemos ainda convertidos à democracia). Agora também (mas não lutamos hoje contra a limitada democracia realmente existente na sua essência, quer dizer, no que ela tem de democrático: as multidões que saem às ruas neste memorável junho de 2013 estão expressando um descontentamento com um velho sistema que – do modo como está organizado – sentem não mais representá-las).
3 – Antes havia liderança, programas políticos, estratégia, táticas. Agora não há. Há milhares de micromotivos diferentes que se combinam e recombinam por emergência.
4 – Antes não vivíamos em uma sociedade altamente conectada (e nem havia as ferramentas virtuais que permitem a interação em tempo real ou sem-distância). Agora vivemos no dealbar de uma sociedade-em-rede (e temos a Internet e as mídias sociais, como o Facebook, o Twitter, além da telefonia celular).
5 – Antes a dinâmica era mais adesiva e participativa. Agora é mais interativa.
6 – Antes havia assembleísmo, recrutamento para organizações hierárquicas, militantes obedientes às suas direções que atuavam como agentes no meio da “massa” para conduzi-la. Agora temos interativismo (ativismo interagente, no qual cada pessoa comparece nos seus próprios termos e desobedece aos que querem mandá-la) compondo uma espécie de sistema nervoso fractal de imensas multidões.
7 – Antes a fenomenologia da interação – a contaminação que se alastra de forma distribuída, seguindo uma dinâmica epidemiológica, peer-to-peer – não podia se manifestar de modo perceptível (como reverberação, múltiplos laços de realimentação de reforço, clustering, swarming, cloning, crunching). Agora a fenomenologia da interação está acelerada, contraída no tempo de sorte a poder ser percebida e assistimos, em vários lugares do mundo, a incidência cada vez mais frequente de aglomeramentos, enxameamentos, contaminação viral por proximidade, imitamento nas vizinhanças e contração do tamanho social do mundo (ou redução dos graus de separação).
Mesmo com todas essas diferenças, por algum motivo, a velha canção de Chico Buarque parece expressar a mesma emoção das multidões que vão às ruas, 43 anos depois.
E podemos cantar nas praças outra vez.
Apesar de você…
8 pontos
Retirados de uma entrevista concedida a Milton Jung, na CBN (em 18/06/2023)
1 – Em alguns lugares (como São Paulo e Rio) o que aconteceu ontem (17J) foi um swarming mesmo (quer dizer, um enxameamento: a manifestação de uma fenomenologia da interação que só pode ocorrer em sociedades altamente conectadas). Foi o primeiro swarming claramente identificável (e contraído no tempo a ponto de poder ser percebido) no Brasil (semelhante ao 13M e ao 15M em Madri e em outras cidades espanholas e ao 11F na Praça Tahir, no Egito).
2 – Foram as maiores manifestações de rua desde as dos carapintadas (que antecederam o impeachment de Collor em 1992). Com características inovadoras desta feita: não foram convocadas centralizadamente, não havia liderança (e sim multiliderança, múltiplas lideranças emergentes e eventuais) e uma prova disso, em São Paulo, é que não foi propriamente um ato, as passeatas se bifurcaram, percorreram e ocuparam várias localidades da cidade (na verdade, pararam mesmo São Paulo).
3 – Minha estimativa é que 300 mil pessoas saíram às ruas no Brasil em 17 de junho. A avaliação de 65 mil pessoas feita para São Paulo é incorreta (aqui teve mais ou menos o mesmo número de manifestantes do que no Rio de Janeiro, senão mais). Além disso a movimentação ocorreu em dezenas de cidades brasileiras (além das capitais).
4 – O vandalismo, onde houve, foi lateral, pontual. As multidões enxameadas se manifestaram pacificamente e coibiram atos violentos.
5 – As manifestações expressaram um descontentamento com a relação Estado-sociedade ainda vigente. O sentimento generalizado – difuso porém identificável – expressava uma indignação com a velha política, sobretudo com os partidos. A multidão gritando “Sem partido, sem partido” e constrangendo os militantes partidários a recolherem suas bandeiras, indica uma clara recusa à privatização da política.
6 – Enfatizo também que não se trata mais de massas convocadas por organizações centralizadas, mas de multidões de pessoas consteladas de modo distribuído (e que se não entendermos isso não vamos entender nada).
7 – Como o Estado e os governos a partir de agora vão poder se comunicar com essa sociedade altamente conectada e com graus crescentes de interatividade? Não sei a resposta. O Estado e os governos vão ter que descobrir um modo de se conectar mais e interagir mais, por dentro e para fora. Ressalto que os agentes políticos ainda não estão entendendo nada quando pedem por lideranças para negociar. Mas não existem lideranças capazes de representar esse tipo de movimentação. E nem se trata propriamente de negociação. Embora um dos elementos desencadeadores dos protestos foi o aumento das passagens de ônibus, as movimentações expressam uma pauta variadíssima (que vai desde as fortunas gastas com a Copa vis-a-vis à péssima qualidade dos serviços públicos, passando pela indignação com a corrupção política generalizada até o descontentamento com certas leis antidemocráticas que vêm sendo aprovadas pelo Congresso Nacional: como a PEC 37 e o projeto de lei do PT que tenta manietar o Supremo Tribunal Federal).
8 – Concluo dizendo que o sentido mais geral de tudo que vem acontecendo nessas novas expressões políticas da sociedade-em-rede, no Brasil e em outros países, aponta para uma reinvenção da política, para uma reinvenção da democracia.
O potencial transformador do presente convivido
Sobre a alegria da convivência na Avenida Paulista na noite de 18/06/2013
Facebook, 19/06/2023
Vocês já viram crianças brincando? Pois é. Elas não ficam calculando para quê servem suas brincadeiras. Simplesmente fluem, se comprazendo na fruição da convivência.
Não há um objeto oculto, externo, urdido, planejado, uma engenharia, uma instrumentalização do tipo: estou fazendo isso para alcançar aquilo. Quando brincam, estão se apossando do presente, vivendo-o em plenitude. E se alegram (porque – como cantou o Vinicius no Samba da Bênção – é melhor ser alegre que ser triste, alegria é a melhor coisa que existe, ela é assim como a luz no coração).
Bem… depois as crianças são ensinadas de que isso não leva à nada, que pessoas responsáveis, sérias, não devem brincar, desperdiçar seu tempo com bobagens. E aí viramos adultos e não brincamos mais, perdemos a capacidade de fazer alguma coisa pelo que ela é e nos pomos então a organizar a nossa vida para alcançar objetivos imaginários e abstratos que não estão contidos no ato em si.
Quando acontece alguma coisa boa, inédita, nem percebemos o potencial transformador da novidade que se constelou porque ficamos logo pensando para onde aquilo vai nos levar, como vai ser o amanhã e o depois de amanhã. Essa alienação do presente acomete, sobretudo, os que querem organizar os outros, conduzi-los para algum lugar (que, na verdade, eles não sabem onde é).
Na Paulista, ontem a noite (18/06/2013), me contou a Guta de Franco [minha filha], configurou-se um ambiente parecido com uma TAZ (Zona Autônoma Temporária do Hakim Bey), mas creio que muitos não perceberam o potencial revolucionário do que se constelou ali. Em virtude da termos sido infectados, desde a primeira infância, com a ideia instrumental de alcançar objetivos (e de organizar os outros), não nos permitimos viver o que de fato pode mudar o firmware da sociedade de controle. É quase uma tara, muito comum em militantes (esses seres deformados que querem conduzir os outros para algum lugar no futuro: que não existe e não pode existir na medida em que só temos o presente).
Refletindo sobre isso, acho que devemos prestar atenção ao que dizia aquele judeu marginal de Nazaré e nos tornar crianças outra vez. Reaprender a brincar.
As multidões de junho diante da bifurcação
Sobre os dilemas das manifestações de rua no Brasil
Facebook, 20/06/2013
No grande swarming do dia 17 de junho de 2013 (o 17J em São Paulo, no Rio de Janeiro e em várias capitais e outras cidades do país) a violência praticada por grupos isolados (desencadeada, talvez, por agentes infiltrados, provocadores, bandidos e manifestantes imbuídos de espírito adversarial mesmo), foi lateral, pontual, pouco significativa.
Um dia antes (16 de junho) publiquei um longo texto sobre o tema, intitulado GUERRA OU PAZ?, em que chamava a atenção para esse risco da instrumentalização das manifestações por grupos que costumam adotar a tática de provocar o confronto.
Não foi isso, entretanto, que ocorreu, nem no 17J, nem nos dias seguintes (18 e 19 de junho). A movimentação se espalhou por todo o país e, na maioria dos casos, houve violência praticada por pequenos grupos isolados e indivíduos fora de sintonia com a imensa maioria dos participantes. Em geral foram grupos e indivíduos que tentaram invadir prédios de governos e do legislativo ou que tentaram furar os bloqueios erigidos pela polícia. Esses grupos e indivíduos atuam quando as manifestações já estão no fim, em alguns casos fazendo saques, depredando e ateando fogo em viaturas, lojas comerciais, agências bancárias e, até, bancas de jornais. A maioria dos manifestantes nem presencia as cenas de violência e só fica sabendo depois, pela televisão. Em alguns casos, porém, houve conflito entre os que queriam manter o caráter pacífico das manifestações e alguns meliantes. Em São Paulo foi notável o esforço de alguns manifestantes para impedir a depredação da sede da prefeitura.
É claro que tudo isso é péssimo: tanto a violência em si, quanto a sua repercussão. Tenho afirmado que a ocupação pacífica e a festa – e não a luta rancorosa – é que podem quebrar o script da Matrix. Um comentário do Nilton Lessa a um post com esse conteúdo que publiquei ontem (19/06) no Facebook, diz tudo: “Nada seria mais revolucionário, subversivo e perturbador para o mundo hierárquico. Festejar e não lutar; conviver e não combater; mover-se e não estagnar; viver-e-morrer e não eternizar“.
Cada pessoa que interage nesse grande processo social convulsivo em que estamos imersos pode ajudar a coibir a violência. Ela não será totalmente evitada, por certo, mas pode novamente voltar a ser apenas incidental, fortuita, lateral, pontual. Além de carregar cartazes e gritar, com perdão do termo, a “palavra-de-ordem” SEM VIOLÊNCIA, ajudaria muito, a meu ver, ocupar pacificamente determinados espaços públicos e fazer festas.
Ocupar espaços públicos (por exemplo, uma praça ou várias praças) é mais condizente com a natureza das manifestações do que organizar passeatas. A ocupação pode ensejar mais facilmente a auto-organização e a autorregulação dos conflitos. A passeata tem itinerário e logo aparecem pessoas e grupos querendo dirigir “a massa” para algum lugar (por exemplo, para os portões de algum palácio).
Felizmente esses aprendizes de condutores de rebanhos não têm se dado muito bem. Uma prova disso é que as passeatas em geral se bifurcam e as pessoas não obedecem muito aos que querem mandá-las seguir por determinados caminhos, às vezes até usando megafones. De qualquer modo, passeatas pressupõem sempre algum tipo de condução, de acordo prévio sobre o itinerário com a polícia. Mas aí vem o problema: quem fará tal acordo em nome de todos, considerando que as multidões que têm se reunido não estão sendo convocadas de modo centralizado nem estão subordinadas a alguma direção?
O inovador dessa movimentação incrível (e inédita) que estamos vivendo no Brasil é que ela não tem organização top down, não tem direção, foi convocada de modo distribuído P2P e com a utilização de mídias interativas. Ou seja, a despeito dos sinceros esforços dos que querem convocá-los e orientá-los, os eventos estão sendo organizados pelos próprios participantes, pessoalmente ou clusterizados em múltiplos grupos que não podem ser representados por ninguém.
O grupo que lançou o movimento pelo Passe Livre não representa a movimentação que está em curso no país, nem mesmo em São Paulo. Aliás, não existe um movimento, existem várias movimentações sintonizadas, que se sinergizam mutuamente. Essas multidões – atenção: não massas – que se aglomeram e enxameiam em todo o país não são representadas pelo movimento do Passe Livre, nem por qualquer comitê, coordenação, direção de algum movimento hierárquico. O que está ocorrendo é mais a manifestação de uma fenomenologia da interação em mundos sociais altamente conectados do que uma dinâmica participativa assembleísta que possa ser administrada e conduzida por estruturas centralizadas por meio de seus agentes (dirigentes e militantes).
Estamos diante de um fenômeno de rede. Mas parece que a ficha ainda não caiu na cabeça daquela parte da militância que tem a tara de organizar os outros e conduzi-los para algum lugar. Uma prova disso é a ansiedade para ter um foco, um pauta de reivindicações, um programa definido para negociar com os governos… Se continuar assim não tardará a surgir algum esperto propondo a criação de uma nova organização, de um comitê nacional, de comitês estaduais, de comitês municipais, e até de um novo partido (com a maior boa intenção do mundo, é claro, para não desacumular, para não desperdiçar o imenso potencial que foi despertado).
Por tudo isso penso que estamos diante, neste exato momento, de uma bifurcação importante. Não tenho a menor ansiedade ou preocupação com a continuidade do que alguns chamam de “o movimento” e que, na verdade, são múltiplas manifestações: elas foram, são e serão o que serão. O que foi feito (não me refiro propriamente à redução do preço das passagens) já foi feito (e modificou a sociedade na sua intimidade, em profundidade maior do que podemos agora alcançar). O que será feito, será feito e acontecerá o que poderá acontecer, ao sabor dos ventos, no imprevisível fluxo interativo percorrendo múltiplos caminhos. As redes distribuídas não são instrumentos para realizar a mudança: elas já são a mudança!
O que me preocupa é a eventual criação de barreiras, filtros, armadilhas de fluxos (como o são as organizações hierárquicas) que tentem bloquear ou condicionar a livre interação: por exemplo, iniciativas que tentem erigir comitês, realizar eleições para escolher representantes, reunir assembléias para aprovar pautas, plataformas, programas e adotar modos de regulação que criem artificialmente escassez, introduzindo as inevitáveis disputas de tendências e luta de facções et coetera. Se tomarmos o ramo da bifurcação que leva a isso, começaremos a viagem de volta para algum lugar do passado.
Se tomarmos o outro ramo da bifurcação, porém, confiando na rede e nos abandonando ao fluxo interativo, continuaremos antecipando futuro no presente. Não há nada melhor do que isso. E para isso, nada melhor do que ocupar pacificamente os espaços públicos e festejar. A festa, o riso, a alegria, desarmam os hard feelings, convertem inimizade em amizade política, configuram ambientes favoráveis à colaboração (e não à competição) e questionam profundamente os esquemas de poder que estão na raiz dos males que levaram as multidões às ruas.
Se as pessoas se põem a dançar e cantar, muitos milagres podem acontecer. Até mesmo governos podem cair – mas isso está longe de ser o mais importante. Só é muito importante para quem sonha em entrar em governos. O potencial desse gigante que começou a acordar é muito maior do que isso. De que adianta entrar em governos se não se muda o velho sistema, ou seja, se se mantém o velho padrão de relação Estado-sociedade? Em pouco tempo os novos ocupantes estarão reproduzindo o mesmo comportamento que hoje condenam nos velhos atores…
O que está em jogo, neste momento, no Brasil e em vários lugares do mundo, é uma mudança mais profunda: uma verdadeira reinvenção da política ou uma nova invenção da democracia.
Decifrando a velha política
Facebook, 22/06/2013
O dia de ontem foi rico de ensinamentos sobre a velha política. Mas o dia de ontem começou na verdade na noite de anteontem (20/06/2013). Vamos tentar refazer o roteiro para entender como funciona a velha política (praticada, em grande parte, por jovens pessoas impregnadas da ideologia do lado certo).
1 – 20/06/13, a noite | Mesmo sabendo que havia uma rejeição difusa à partidarização das manifestações, militantes do PT (e também do PSTU, que estavam desde o início, diga-se por amor à verdade) foram para a Avenida Paulista de forma organizada levando suas bandeiras. Chegaram de modo organizado e formaram um cluster, uma concentração de militantes com enormes bandeiras. Não estavam ali como pessoas (como a imensa maioria dos 300 mil manifestantes), mas como representantes de organizações hierárquicas (seus partidos). Foram com sua própria pauta e com um objetivo claro e internamente compartilhado (provavelmente seguindo a orientação dos hierarcas que os comandam).
2 – 20/06/13, minutos mais tarde | Grupos isolados da multidão, também organizados, partiram para cima dos militantes da esquerda partidária (PT, PSTU e outros) pedindo para eles recolherem as bandeiras. Os partidários obviamente não acataram (porque sabiam que isso poderia acontecer, qualquer um sabia, mas eles estavam lá para isso). Os grupos que investiram contra os militantes foram agressivos. Também eram militantes de pequenos grupos antidemocráticos que existem em São Paulo (skinheads, punks etc.) e de outras organizações e aglomerados minoritários (alguns muito esquisitos) e entraram em luta corporal contra os militantes partidários (sobretudo os do partido oficial, os do partido do governo, o PT e também do PSTU). A parte da multidão que estava perto assistiu o incidente, a imensa maioria não (por razões óbvias de distanciamento).
3 – 20/06/13, no mesmo instante do conflito | A parte da imensa multidão que estava perto do incidente apoiou não a violência física cometida mas a orientação geral sintetizada na palavra-de-ordem: “SEM PARTIDO, SEM PARTIDO”. Por razões óbvias, numa manifestação de protesto contra o sistema, a bandeira do partido que está no governo (que faz parte do sistema) não podia mesmo contar com a simpatia geral. Isso era previsível até por quem não entende nada de política, até por uma criança. Os militantes do PT foram reconquistar um espaço no coração da manifestação, plantar sua bandeira num terreno que, imaginavam, era seu por direito, foram garantir sua propriedade sobre a condução da “massa”.
4 – 20/06/13, na hora seguinte | O incidente criou um mal estar que foi se alastrando em ondas sucessivas na manifestação. Muita gente ficou contrariada. Afinal, o que era para ser uma grande festa acabou virando uma luta interna entre manifestantes. Alguns se afastaram e deixaram a manifestação. A maioria, entretanto, de nada sabendo, continuou na rua. Alguns grupos organizados de ativistas (que não são partidários, mas se sintonizam com uma certa vibe “de esquerda”) começaram a comentar entre si que aquilo era intolerável, que grupos fascistas (e deveria haver alguns mesmo) estavam deturpando o movimento. Militantes partidários, já sem bandeiras, começaram a dizer, ainda no meio da manifestação, que aquilo era uma estratégia de setores conservadores para capturar e direcionar as manifestações. Outros foram mais além e começaram a espalhar que um golpe da direita estava em curso no Brasil.
5 – 20/06/13, minutos depois | No mesmo instante um batalhão de militantes, sobretudo da blogosfera financiada com recursos governamentais e aparelhada pelo partido do governo, começaram a divulgar tudo isso. Muitas pessoas despolitizadas começaram a se convencer de que havia um movimento crescente de intolerância, a partir de argumentos de que ninguém pode proibir o livre direito de manifestação e de organização partidária. Que proibir isso era uma violência inaceitável. Que o movimento estava enveredando por um perigoso caminho antidemocrático, quem sabe em aliança com os grandes meios de comunicação, com as elites conservadoras, enfim, com os inimigos do povo. Como não podiam negar o sentimento difuso na multidão de centenas de milhares, de recusa à instrumentalização partidária da manifestação começaram a associar a passeata à marcha da família, com Deus e pela liberdade da época do golpe militar de 1964. Sim, devia haver um inimigo e se não havia era preciso construí-lo e caracterizá-lo como composto por fascistas e pela direita.
6 – 21/06/13, de manhã bem cedo | Militantes partidários começaram a publicar nas mídias sociais – no Twitter, no Facebook em especial – e nos seus blogs, que era preciso parar para reavaliar tudo. Que forças conservadores – sempre destacando as duas caracterizações: fascistas e direita – haviam desvirtuado o movimento para capturá-lo, quem sabe para preparar o terreno para um golpe de Estado. Pretextando perplexidade e falando sempre em nome próprio, centenas de militantes (que não se identificavam como tais) replicaram ad nauseam a mesmíssima história, usando exatamente os mesmos termos, fazendo exatamente as mesmas insinuações.
7 – 21/06/13, um pouco mais tarde | Gilberto Carvalho, secretário-geral da Presidência da República dá uma declaração insinuando que a recusa a partidos caracteriza ditaduras e não democracias (a despeito do fato de que em ditaduras sempre há um partido: o do governo). Foi uma espécie de senha baseada num embuste: de que havia uma orientação antipartidária nos que capturaram as manifestações (sempre os mesmos: os fascistas, a direita). Todos se mostram muito preocupados. Todos acham um absurdo. Todos lamentam a violência. Todos proclamam o direito de organização partidária. As publicações enxameiam. Milhares de pessoas, em todos os lugares do Brasil, começam a repetir a mesma história (como se a agressão da Paulista tivesse também ocorrido e da mesma forma em todas as manifestações, em todas as cidades do país). O sentimento geral, difuso, das multidões, não contra partidos mas contra a instrumentação das manifestações por partidos é tomado como prova de que um grande movimento (dos fascistas, da direita) estava em curso no Brasil.
8 – 21/06/13, no meio da manhã | A coordenação do Movimento Passe Livre chama uma entrevista coletiva para dizer que não vai convocar mais manifestações. Sob a desculpa de que seu objetivo foi alcançado (a redução do preço das passagens) aproveitam para dizer que são apartidários mas não anti-partidários (o que não é bem verdade, se tomarmos a palavra partido no seu sentido mais geral, no sentido de organização política – pois que eles são militantes políticos, revolucionários, anticapitalistas etc.: sim, eles têm uma pauta explicitamente política e não sindical ou social, baseada apenas em reivindicações: defendem o apoio a movimentos revolucionários, o fim do latifúndio, a tarifa zero, quer dizer, a expropriação sem indenização das empresas de transporte, o que equivale à sua estatização). Expressam a preocupação de que o movimento está sendo capturado por setores conservadores, pela direita – pelos que são intolerantes, são contra os direitos das pessoas de se organizar e praticam a violência. Dão a entender que é também por isso que estão se retirando. Em vez de simplesmente não convocar uma próxima manifestação, o MPL promove um ato político (a entrevista) para dar a entender que tudo vai parar após a hostilidade a partidos e a introdução de uma “pauta conservadora”.
9 – 21/06/13, durante o dia | Espalha-se a fábula, a história construída e a construção dos inimigos como inimigos da democracia e das liberdades. Hostilizar partidos nas manifestações vira uma espécie de golpe contra a democracia, um golpe que estaria em marcha no Brasil porque as forças conservadoras tomaram a direção das manifestações. Muitas pessoas de boa-fé acreditam nos boatos e afirmam que é hora mesmo de voltar para casa, de repensar tudo etc.
10 – 21/06/13, a noite | A presidente da República, filiada ao PT, faz um pronunciamento à nação onde, de passagem, repete que não pode haver democracia sem partidos (como se algum movimento expressivo estivesse propondo tal coisa como programa). Ato contínuo, militantes partidários e pessoas que vivem às custas de contratos e convênios com o governo federal ou que são empregados de órgãos governamentais e estatais, começam a elogiar o discurso de Dilma. Alguns chegam a convocar atos de apoio à presidenta. Outros dizem que ela agiu com firmeza na hora certa (ainda que não tenha dito nada além do óbvio).
UMA NOTA FINAL
Apenas refiz o roteiro, segundo, é claro, minha visão dos fatos, para explicitar possíveis encadeamentos entre eles. Devo dizer entretanto que não acredito nesses métodos, não acredito na velha política, acho (como Castells e vários outros) que a democracia dos modernos (a democracia representativa) envelheceu e não é mais capaz de continuar se democratizando e que estamos diante de uma nova reinvenção da democracia (a terceira invenção) a despeito dos variados motivos pelos quais às pessoas têm ido às ruas manifestar seus sentimentos de que alguma coisa está errada, muito errada.
Não acredito que os manifestantes – as milhões de pessoas que estão saindo as ruas neste memorável junho de 2013 no Brasil – sejam anti-partidários. É óbvio que eles estão incomodados com as instituições do velho sistema político (que sentem não mais representá-las) e os partidos, queiramos ou não, são uma dessas instituições (sobretudo o partido do governo).
Cola com nós, mano, que tu brilha
Facebook, 22/06/2013
Estou doido para receber um convite para uma festa em praça pública. Quem sabe até não faço um… Ocupar um espaço público com leveza e alegria, como vinha propondo antes desse embuste de golpe da direita irresponsavelmente e desrespeitosamente inventado pelo PT e pelo governo. Nada de fight, irmão! Suave…
Não adianta ficar discutindo aqui com militantes questão com a missão de caracterizar a natureza apartidária das manifestações como golpe da direita. Não podem se convencer. Até poderiam, se agissem como pessoas. Mas não agem. Agem como rebanho conduzido. Parecem mais borgs, autômatos, peças de organizações hierárquicas. Quando falam a impressão que se tem é que estão sendo dublados. É sempre a mesma cantilena: é a direita, são as elites, são os setores conservadores os grandes responsáveis por todo mal que nos assola. Temos que lutar contra eles. É assim que espalham inimizade no mundo.
Mas eles vieram. E assomaram. E agora poluíram tudo.
Vou então – pelo menos de minha parte – voltar ao que me interessa. E mandar quem quer travar lutas e produzir inimizade no mundo para a puta que o pariu!
Talvez seja a hora de distribuir mais as manifestações. Se você ocupa a sua praça já fez o bastante. A grande movimentação será a composição fractal – e não unitária – de muitas praças com pequenas multidões consteladas. Já pensaram que maneiro?
Tenho afirmado que a ocupação pacífica e a festa – e não a luta rancorosa – é que podem quebrar o script da Matrix. Um comentário do Nilton Lessa a um post com esse conteúdo que publiquei no dia 19/06 no Facebook, diz tudo: “Nada seria mais revolucionário, subversivo e perturbador para o mundo hierárquico. Festejar e não lutar; conviver e não combater; mover-se e não estagnar; viver-e-morrer e não eternizar“.
Escrevi aqui no Face que cada pessoa que interage nesse grande processo social convulsivo em que estamos imersos pode ajudar a coibir a violência. Ela não será totalmente evitada, por certo, mas pode novamente voltar a ser apenas incidental, fortuita, lateral, pontual. Além de carregar cartazes e gritar, com perdão do termo, a “palavra-de-ordem” SEM VIOLÊNCIA, ajudaria muito, a meu ver, ocupar pacificamente determinados espaços públicos e fazer festas.
Ocupar espaços públicos (por exemplo, uma praça ou várias praças) é mais condizente com a natureza das manifestações do que organizar passeatas. A ocupação pode ensejar mais facilmente a auto-organização e a autorregulação dos conflitos. A passeata tem itinerário e logo aparecem pessoas e grupos querendo dirigir “a massa” para algum lugar (por exemplo, para os portões de algum palácio).
De novo. Estamos diante de um fenômeno de rede. Mas parece que a ficha ainda não caiu na cabeça daquela parte da militância que tem a tara de organizar os outros e conduzi-los para algum lugar.
Se confiarmos na rede e nos abandonarmos ao fluxo interativo, continuaremos antecipando futuro no presente. Não há nada melhor do que isso. E para isso, nada melhor do que ocupar pacificamente os espaços públicos e festejar. A festa, o riso, a alegria, desarmam os hard feelings, convertem inimizade em amizade política, configuram ambientes favoráveis à colaboração (e não à competição) e questionam profundamente os esquemas de poder que estão na raiz dos males que levaram as multidões às ruas.
Se as pessoas se põem a dançar e cantar, muitos milagres podem acontecer. Até mesmo governos podem cair – mas isso está longe de ser o mais importante. Só é muito importante para quem sonha em entrar em governos. O potencial desse gigante que começou a acordar é muito maior do que isso. De que adianta entrar em governos se não se muda o velho sistema, ou seja, se se mantém o velho padrão de relação Estado-sociedade? Em pouco tempo os novos ocupantes estarão reproduzindo o mesmo comportamento que hoje condenam nos velhos atores…
O que está em jogo, neste momento, no Brasil e em vários lugares do mundo, é uma mudança mais profunda: uma verdadeira reinvenção da política ou uma nova invenção (a terceira) da democracia.
E aí? Vamos começar a convidar nossos amigos para ocupar as praças tecendo uma grande rede de praças? Sei lá se isso dará certo. Tenho apenas uma intuição.
Tá ligado? Então cola com nós, mano, que tu brilha.
Só a paz é revolucionária
Para quem está em dúvida
Facebook, 23/06/2013
Muita gente anda em dúvida depois que alguns grupos (de vários matizes ideológicos) tentaram dirigir, controlar e conduzir ou deturpar as múltiplas manifestações de rua neste memorável junho de 2013 no Brasil.
A dúvida aumentou quando entraram em cena o governo e seu partido lançando suspeitas sobre a maior movimentação da sociedade brasileira de que se tem notícia em toda a nossa história. Sim, nunca houve algo assim: tão profundo, tão generalizado, tão duradouro e tão espontâneo.
A partir de 17 de junho, (o 17J), a data que ficará na história como o maior swarming (enxameamento, uma dinâmica de rede, uma fenomenologia da interação em mundos altamente conectados) já visto. Milhões foram às ruas sem convocação centralizada. Embora muitos grupos tentassem convocar os eventos, as pessoas compareceram por seus próprios motivos e interagiram nos seus próprios termos. Ainda bem. Se alguma organização tivesse o poder de levantar as imensas multidões que vimos, aí sim teríamos motivos para ficar preocupados…
A grande maioria (o Ibope aponta 75%) da população apoiou as movimentações. Ou seja, os que – por algum motivo – não compareceram aos atos, passeatas e ocupações, apoiaram tudo isso e continuam favoráveis ao que está acontecendo. Pensem bem: é quase todo o Brasil!
É claro que essas pessoas não apóiam os atos violentos, os saques, as depredações, o chamado vandalismo. Mas elas continuam favoráveis às multidões que estão se constelando em praças e ruas de praticamente todo o país. Porque sabem que – apesar da cobertura da mídia, concentrada em noticiar a violência – esses incidentes são laterais e extremamente minoritários (se compararmos com os grandes contingentes que saem às ruas de modo pacífico, os tais vândalos não chegam nem a 1%).
E apesar das lideranças de organizações hierárquicas financiadas pelo Estado e aparelhadas pelo governo e por seu partido, estarem envolvidas em uma campanha sórdida para dizer que os fascistas, a direita e os conservadores estão por trás das manifestações com objetivos de instalar no Brasil uma ditadura, mesmo assim a população continua apoiando e continua se mobilizando.
Sim, as manifestações continuam, evoluindo agora para várias formatos inéditos. As velhas passeatas continuam, mas vão dando lugar a ocupações menores, atos mais pontuais e, felizmente, até ocupações pacíficas de praças, acampamentos, celebrações e festas. A novidade é que a invenção de novos formatos está ocorrendo segundo um padrão cada vez mais distribuído.
Provavelmente o que vamos assistir a partir de agora é a pulverização das manifestações. Mas isso é bom, não é ruim. Significa multiplicação por mais distribuição e mais reinvenção, mais cocriação. Significa mais rede e menos hierarquia. Significa mais democracia e menos autocracia.
Autocracia é um metabolismo de organizações centralizadas (hierárquicas) voltadas para a guerra, para o confronto, para a violência (eventual ou continuada, quer dizer, institucional).
TEMOS JÁ UM BOM CRITÉRIO
Portanto, quem está em dúvida sobre o que fazer agora, já tem um bom critério para saber se deve ou não apoiar as manifestações, se deve ou não comparecer aos eventos, se deve ou não tomar a iniciativa de convocar novos atos. Este critério é a paz.
A democracia é um modo pazeante de relação e de regulação de conflitos. Podemos continuar protestando, podemos continuar reivindicando, podemos continuar propondo, podemos continuar inventando novas formas de convivência que questionem o sistema: sem violência, sem confronto, sem guerra. Aliás, esta é a única forma de fazer isso. É a única forma de não cair na armadilha da centralização (da hierarquia) e da autocracia. É a única forma de não cair na armadilha da unificação de pautas e da escolha de lideranças e direções para centralizar em vez de distribuir. Quando combatemos inimigos nos tornamos o inimigo. Quando centralizamos erigimos sistemas muito parecidos com os que queremos desmontar.
No dia 16 de junho – um dia antes do grande swarming brasileiro – publiquei um artigo no Facebook intitulado GUERRA OU PAZ? Eis o link para quem ainda não leu: http://goo.gl/zZG47
Já estava naquele dia com um sentimento de que este seria o grande divisor de águas. Estava alertando para a possibilidade de grupos organizados de militantes provocarem deliberadamente a repressão, investirem no confronto seguindo as velhas cartilhas de agitação e propaganda (que eu mesmo segui no passado). Dizia então no artigo que “isso não acontecerá se multidões ocuparem as ruas. Quando centenas de milhares, milhões, saem as ruas, não há mais repressão possível. Mas multidões de pessoas conectadas – e formadas a partir de miríades de micromotivos diferentes (compondo uma grande murmuration) – não são massas arrebanhadas”.
E no dia seguinte aconteceu o melhor: as multidões se constelaram (foi o 17J).
Os que anseiam por mudanças profundas, os que querem uma verdadeira revolução capaz de mudar o status quo e reiniciar (ou reprogramar) o sistema no sentido da democratização da democracia, devem saber que só a paz é revolucionária. O velho sistema foi desenhado para a guerra, para o combate. O modelo de Estado que temos – o Estado-nação europeu – é um fruto da guerra, da Paz de Westfália. Está geneticamente programado para deter em suas mãos o monopólio da violência, quer dizer, para o combate. Só a paz pode desconcertá-lo e desconsertar seus agentes (aqueles “Agentes Smith” que erigem e operam organizações hierárquicas: sejam governamentais, partidárias, sindicais ou sociais, quer dizer, antissociais).
Portanto, é bom repetir, temos um critério. Não à violência. Não à guerra. Só a paz – não um objetivo utópico distante, mas um modo amoroso de caminhar – é democratizante. Só a paz é revolucionária.
Isso significa que você que está em dúvida pode continuar interagindo sem problema. Pode tomar coragem e continuar aceitando convites para manifestações e para convocar novos eventos. E, sobretudo, para inventar novos formatos de ocupação pacífica do espaço público e de cocriação de novas propostas, de novos projetos. Basta não aceitar direções centralizadas e não se sujeitar a lideranças de organizações hierárquicas (e guerreiras). Basta desobedecer. Desobedeça aos que querem dirigi-lo, conduzi-lo, puxá-lo pelo nariz como se você fosse gado. Desobedeça!
Estamos agora em um momento excepcional. Estamos diante da possibilidade de construir novos mundos em nossa convivência.
O embuste da conspiração da direita
Facebook, 23/06/2013
Agora inventaram a fábula do golpe de direita e da tomada das multidões pelos conservadores.
Se os conservadores (ou a “direita”) tivessem tal capacidade no Brasil, de mobilizar milhões de pessoas – no maior swarming já visto em toda nossa história – não haveria governos considerados de “esquerda”. Já teriam sido derrubados.
Só vejo nisso tudo uma reação conservadora. A dos militantes partidários que ficaram sem chão quando as multidões ocuparam as ruas de grande parte das cidades do país. Como é possível? É o que devem ter pensado: a massa não era nossa, não seguia nossas bandeiras, não apoiava nossos governos progressistas?
Quando as multidões manifestaram uma certa insatisfação com o velho aparelhamento partidário das manifestações, ficaram possessos. E concluíram: só pode ser a direita. Claro, tem que haver um inimigo. Eles são construtores de inimigos e espalhadores da inimizade no mundo. Eles só sabem pensar na base de nós e os outros, os bons e os maus, os revolucionários e os reacionários, a esquerda e a direita.
As multidões não hostilizaram ninguém. Se alguém fez isso, foram grupos organizados. As multidões apenas manifestaram, vez ou outra, sua insatisfação com partidos e com outras instituições da democracia atual. Não porque sejam contra a democracia e sim porque acham que o velho sistema representativo (e suas instituições: sim, o partido é uma delas) não mais representa e expressa seus anseios.
Isso é positivo para uma democratização da democracia. Isso tem acontecido também em outros países: olhem uma foto do 15M espanhol e me digam se vocês conseguem ver muitas bandeiras de partidos. Praticamente não havia. Assim como também não havia naquele 11-13 de março de 2004 em Madrid, que iniciou a série de grandes swarmings do século 21.
Não há conspiração alguma, de nenhum lado (para os que ainda acreditam que a política é sempre um confronto entre lados).
Sempre que acontece alguma coisa que ameaça os que estão no poder, a desculpa-padrão é a mesma: é um golpe da direita, é um golpe das elites, é um golpe dos setores conservadores. Isso é usado até para desqualificar julgamentos do Supremo Tribunal Federal. É só acompanhar o noticiário.
Mas como é que podem existir pessoas que ainda são capazes de acreditar nessas coisas? Fico triste com aquelas que sabem que isso não é verdade mas replicam o embuste. Sim, sei que a maioria dessas pessoas – algumas amigas minhas inclusive – não procede assim por maldade. É que elas não conseguiram se desvencilhar do esquema que reduz a complexidade social a uma luta entre o bem e o mal, a uma questão de guerra, de lados!
Não. Não é por maldade que as pessoas têm tanta dificuldade de entender os fenômenos de rede. Não é por maldade que elas pensam que nada pode funcionar sem um mínimo de hierarquia. Não é por maldade que elas acham que não se pode mobilizar a ação coletiva sem líderes destacados. Não é por maldade que não entra na cabeça delas a possibilidade da auto-organização. Não é por maldade que elas imaginam que há sempre uma conspiração, alguém por trás de tudo o que acontece, alguém agindo para maximizar a satisfação de seus interesses egotistas. Não é por maldade que elas pensam que há algum grande inimigo responsável por todo mal que nos assola (o capitalismo, o neoliberalismo, o comunismo, o fascismo, as elites, os conservadores, a esquerda, a direita). Não é por maldade que elas acham que tudo só se pode resolver numa luta, num combate, num confronto entre as forças do bem e as forças do mal (ou entre a esquerda e a direita, entre o povo e as elites).
Na verdade elas não entendem porque é como se tivessem sido lesionadas pelos programas (softwares capazes de modificar fisicamente o hardware) da sociedade de controle (ou pela Matrix, para usar a metáfora): é como aqueles HD que foram danificados, estão cheios de regiões onde as conexões foram embaralhadas e a informação se perde, não encontra mais coerência. Programas que nos “educaram”, desde pequenininhos, para entender a escassez e não a abundância. E que nos infectaram, instalando bad clusters.
As manifestações de junho de 2013 e a inteligência coletiva
Facebook, 24/06/2013
Dei agora uma entrevista (BBC). No meio da conversa com a jornalista me ocorreu um aspecto ainda não abordado (nem por mim, nem – que eu saiba – por ninguém). Algo que há algum tempo quis descrever e para tanto inventei uma palavra: empowerfulness!
Nestes últimos sete dias (sim, contando a partir do memorável 17J), tivemos uma aceleração incrível dos fluxos interativos. A sociedade aumentou a sua interatividade e isso se refletiu também nas mídias sociais (como Twitter e Facebook), mas não apenas nelas. Na intimidade da sociedade – ou seja, nas redes sociais, propriamente falando – ocorreram bilhões, talvez trilhões de sinapses que não ocorriam antes. Houve um crescimento exponencial e uma aceleração brutal da comunicação, entendida como acoplamento estrutural entre pessoas e não como transmissão de informação de uma pessoa a outra. Tudo isso configurou um ambiente mais favorável à emergência da inteligência coletiva.
Ou seja, não adianta o IBOPE ou outro instituto de pesquisa sair a campo perguntando aos manifestantes quais são as suas reivindicações prioritárias. Em primeiro lugar porque cada pessoa dará o seu micromotivo: alguns falarão mobilidade urbana ou transporte, outros saúde e educação, outros corrupção, outros, ainda, manifestarão sua insatisfação com os gastos da copa diante da péssima qualidade dos serviços públicos em geral. Mas o que levou as multidões às ruas foi tudo isso e não foi nada disso e sim um sentimento de insatisfação. As pessoas sentem que há algo errado com o sistema, embora não saibam explicar o que é o sistema (às vezes confundem-no com os governos, às vezes com a chamada classe política). Em segundo lugar porque a fenomenologia da interação que permitiu a constelação de multidões de milhões em quase todo o Brasil não depende do conteúdo e sim dos graus de distribuição e de conectividade da rede social (não me refiro às mídias sociais e sim aos padrões de organização disso que chamamos de sociedade e que não é o conjunto dos indivíduos e sim as configurações múltiplas dos seus relacionamentos).
É preciso entender que a inteligência coletiva não é a soma das inteligências dos indivíduos e sim uma função da interatividade. Ela é diretamente proporcional ao que chamei de empowerfulness. Por isso as análises que tentam colher e computar opiniões individuais não são capazes de revelar os motivos predominantes que teriam levado as pessoas a fazer o que fizeram agora (e que não fizeram nas duas últimas décadas).
A composição dos micromotivos é fractal e não majoritária, unitária – como se fosse uma pauta de reivindicações previamente preparada e compartilhada (massificada). Os micromotivos permanecem, para cada um, exatamente como são para cada um. Mas o efeito de conjunto não é a sua simples combinação e sim um novo entendimento coletivo, uma inteligência tipicamente social que emerge em função da interação recursiva, iterada, multiplicada, amplificada entre as pessoas.
Foi a inteligência coletiva que se apropriou e ressignificou aquele slogan publicitário (da FIAT) “Vem prá rua” e que se apropriou e ressignificou outro slogan (da Johnnie Walker) “O gigante acordou” (e isso, independentemente, de alguém ter tido tal ideia). Foi a inteligência coletiva que rejeitou as tentativas de instrumentalização partidária das manifestações (e não uma conspiração da direita, que, se pudesse fazer isso em todo o Brasil em horas, então poderíamos ficar realmente preocupados), assim como rejeitaria bandeiras ou marcas de qualquer instituição centralizada (religiosa ou laica, militar ou civil, governamental, empresarial ou social). Não tem nada a ver com antipartidarismo como apregoam (em causa própria) os partidários (e que, aliás, nunca foi bandeira do que chamavam de direita, quando isso fazia algum sentido).
O grande desafio agora é entender o que essa inteligência coletiva quis dizer: não a nós, não ao governo (pois que não é assim que funciona) e sim à si mesma, à sociedade e aos emaranhados (pessoais) que a estruturam. “Quis dizer”, é claro, é uma maneira de dizer. Ela não quis dizer nada (rigorosamente falando, ela não fala), mas ela operou mudanças moleculares na intimidade do multiverso de conexões ocultas que chamamos de social. Essas mudanças estão em curso neste momento. Por isso a sociedade jamais será a mesma.
Os sete dias pregressos abalaram o Brasil. E mudaram o Brasil, para sempre.
O swarming brasileiro pode ter sido o maior já visto na Terra
Facebook, 26/06/2013
As pessoas ainda não se deram conta, muito menos os analistas políticos e os políticos profissionais (que não entenderam da missa a metade). Mas estava conversando ontem com o Fernando Gabeira, minutos antes da gravação do programa #DEMOCRACIACARREGANDO (que vai ao ar no sábado e domingo próximos (29 e 30/06/2013) às 21h30 na BAND), que o swarming brasileiro de 17 e 18 de Junho foi o maior da história do Brasil e, se bobear, o maior já observado entre seres humanos (desde que existe espécie humana, hehe).
Claro que já tivemos concentrações maiores de pessoas, mas não contam. E agora vou dizer por que. Mao reunia 10 milhões (dizem) na Praça da Paz Celestial, mas não conta: ele parava os caminhões na porta das fábricas e ai de quem não entrasse, assim como também não contam os comício convocados por ditadores, como Stalin ou Fidel e nem as manifestações convocadas por comitês formados por entidades hierárquicas, como a famosa Passeata dos 100 mil (da qual participei e até ajudei a organizar) e aquelas que ocorreram no Anhangabaú em São Paulo, na luta pelas diretas (uma delas tinha 1,5 milhão). Não contam nem mesmo aquelas marchas intermináveis de Gandhi na Índia, como a Marcha do Sal: as pessoas iam lá seguindo um Mahatma (quase um deva), por motivos religiosos ou religioso-políticos. Da mesma forma não contam o Hajj a grande peregrinação à Meca (com quase 4 milhões de fiéis) ou o Círio de Nazaré.
Nada disso conta porque não foram manifestações de um metabolismo da sociedade disseminadas peer-to-peer e sim atos programados e convocados centralizadamente.
Claro que o que aconteceu entre 11 e 13 de março de 2004 em Madri e em outras cidades espanholas conta. Claro que o que aconteceu na Praça Tahir (sobretudo em 11 de fevereiro de 2011) conta (assim como contam várias manifestações no Norte da África e no Oriente Médio que antecederam e sucederam à movimentação egípcia no bojo do que se convencionou chamar de Primavera Árabe). Claro que o que aconteceu no Zuccottti Park em Nova York, em 17 de setembro de 2011 conta, assim como contam as dezenas de Occupy que vieram na esteira. Claro que o que aconteceu no 15M (15 de maio de 2011) em Madri conta, assim como contam todos os movimentos dos Indignados que vieram depois. E claro que contam os protestos na Turquia (a partir do dia 28 de maio de 2013).
Todos esses foram swarmings (enxameamentos, uma dinâmica de rede – a manifestação de uma fenomenologia da interação – em sociedades altamente conectadas), de fato. Mas nenhum deles conseguiu ter o caráter, a dimensão, a capilaridade e a abrangência do swarming brasileiro de 17 e 18 de junho de 2013.
Aqui não foi uma dinâmica de luta contra um inimigo concreto, objetivo: não havia um poderoso para tirar do poder (como ocorreu nas manifestações pelo impeachment de Collor), não havia uma lei para ser aprovada (como nas manifestações das Diretas Já).
Aqui, o que ocorreu foi a expressão molecular de um incômodo, de uma insatisfação difusa com o sistema (as pessoas sentiram que há algo muito errado com o sistema, embora não saibam explicar o que é exatamente “o sistema”). A vibe não era guerreira. As emoções predominantes não eram adversariais. As multidões não procuravam um inimigo para destruir. Simplesmente diziam: nós existimos, nós agora acordamos, nós queremos enfim declarar que não estamos satisfeitos com o que está acontecendo e nós não nos sentimos representados por vocês (os que estão no poder).
Avalio que aqui no Brasil mais de mil cidades se envolveram. De São Paulo à Rio Pomba, de Viçosa a Porto Alegre, de Belém à Itanhandu. Tudo somado perfaz alguns milhões. Só alguém muito desprovido de inteligência poderia supor que tais manifestações foram convocadas pelo Movimento Passe Livre. A convocação do MPL, focada na redução do preço das passagens, cumpriu o mesmo papel detonador do que a convocação daqueles 50 ambientalistas que se manifestaram contra a derrubada de 600 árvores do Parque Taskim Gezi, em Istambul.
Com tal abrangência territorial, jamais se viu coisa assim. Jamais.
O que vem agora?
Facebook, 27/06/2013
Muita gente pergunta o que vem agora, depois dos 7 dias que abalaram o Brasil e continuam abalando… Alguns imaginaram que – como no filme “V de Vingança” – as pessoas sairiam nas ruas e pronto: KABUUUM! Todo sistema viria abaixo.
Mas não é bem assim que as coisas acontecem na rede, no multiverso de conexões ocultas que chamamos de social.
Não há uma revolução épica, como uma grande explosão, um magnífico episódio a partir do qual os podres poderes se desmancham e surge um novo céu e uma nova terra. É um processo molecular de mudança. O que foi iniciado no grande swarming brasileiro de 17 e 18 de junho de 2013, já está em curso. As consequências culturais – como mudanças de comportamento – estão sendo gestadas neste momento.
Outro dia conversando com uma amiga, a Vivianne Amaral, ouvi dela o seguinte (a propósito deste assunto). O que aconteceu depois de Woodstock (15 a 18 de agosto de 1969)? Ora, olhando assim objetivamente, parece que nada mudou. No entanto, mudanças culturais profundas tiveram origem ali. Meio milhão de pessoas, sob chuva, passaram por uma experiência fantástica, fundante de novos comportamentos. E se hoje – dizia Vivianne – o homem lava pratos e divide tarefas domésticas com a mulher, há uma sementinha de Woodstock nisso tudo.
A era hippie e a contracultura abriram caminho para a transmissão de comportamentos libertários e inspiraram, para citar apenas um exemplo eloquente, os pioneiros da Internet. Sem Woodstock, talvez, isso não teria acontecido do jeito que aconteceu.
As grandes transformações moleculares são comportamentais. Elas crescem escondidas. Elas não são materializações de ideias de um novo mundo de algum visionário ou de algum grupo organizado e determinado a conduzir os outros para um porvir radiante. Ideias não mudam comportamentos. Só comportamentos mudam comportamentos. Então é preciso experimentar, criando novos mundos em nossa convivência.
Efeitos colaterais: o fim da Era Lula
Facebook, 29/06/2013
Um efeito colateral da onda de manifestações no Brasil é o fim da chamada Era Lula.
As pessoas não foram às ruas para isso: Lula, o governo e o PT não eram alvos dos manifestantes. Não foi como no impeachment de Collor de Mello (onde o alvo estava claro e era explicitamente político). Não. Neste junho de 2013, as pessoas foram às ruas porque condições favoráveis a um swarming (enxameamento) se constelaram.
Como tenho repetido, a natureza dos protestos foi social, foi um metabolismo da rede social que se expressou (e de diversas maneiras, inclusive por meio de manifestações de rua, mas não só). O motivo principal foi uma insatisfação generalizada com o sistema e não uma reivindicação específica (embora o preço dos transportes, a corrupção e a péssima qualidade dos serviços públicos, tenham atuado, incidentalmente, como fatores desencadeadores). Essa insatisfação com o sistema é muito mais profunda do que simplesmente a contrariedade com um governo, com seu presidente (caso de Dilma, cuja popularidade despencou em três semanas) ou com seus patronos ou tutores (Lula e o aparato político, sindical e social controlado pelo PT).
No entanto, tanto a aprovação do governo quanto a admiração (quase mística) pelo seu principal líder fora do governo (Lula) caíram e tendem a cair mais. Com isso, a influência avassaladora do neopopulismo tende a se esvair. O regime político baseado no parasitismo democrático, na privatização partidária da esfera pública e na degeneração das instituições republicanas – que são as principais característica da Era Lula – vai sofrer fortes abalos. Tudo indica que estamos no início do seu declínio, ainda que não haja, no momento, elementos para prever o rebatimento disso tudo no processo eleitoral de 2014: é até possível que as urnas do ano que vem não reflitam tal perda de substância na mesma intensidade (de vez que a dinâmica das movimentações sociais não poderá ser capitalizada por qualquer candidatura alternativa à Dilma ou à Lula).
Repito, nada disso estava na pauta dos manifestantes. Como disse o cientista político Marcos Nobre (que debateu comigo no programa Entre Aspas da Globo News da última quinta-feira, 27/06/2013), cada manifestante era a própria manifestação.
Tivemos, assim, milhares, milhões de manifestações. Foram eventos (sobretudo no 17-18J) de pessoas, não de organizações, muito menos de organizações políticas (embora elas também estivessem presentes). E o que essas pessoas queriam? Por certo não era o passe-livre (segundo as pesquisas, 65% dos brasileiros são contra a gratuidade nos transportes). Ora, elas foram às ruas e às mídias sociais para dizer que não estavam contentes com o sistema. Embora não soubessem explicar o que é exatamente “o sistema”, elas se manifestaram para dizer que o sistema não as representa, que desejam que daqui prá frente tudo seja diferente.
E não é só isso. Segundo o DataFolha, 8 em cada 10 brasileiros apóiam as manifestações. Se tirarmos as pessoas com condições insuficientes de interação, essa proporção representa praticamente todos os habitantes mais ativos do país. Ainda que pesquisas de opinião não possam refletir a opinião pública (na medida em que recolhem e totalizam ex post um conjunto de opiniões privadas, não captando, portanto, a dinâmica que entretece a esfera pública), os números são muito significativos quando combinados com a aferição da aprovação do governo. Um governo cuja aprovação despenca 35 pontos em três meses e 27 pontos em 3 semanas, provavelmente não tem muitas chances de continuidade (sobretudo quando não pode reagir por uma razão básica: não entende e, no lugar em que está, não poderá entender o que aconteceu).
Não se resolverá tal problema com a volta do demiurgo, como acreditam tolamente os lulistas. O país nunca mais será o mesmo depois de ter experimentado o poder das redes. Milhões de pessoas não permanecerão mais na órbita do líder. Em outras palavras: a gravitatem de Lula está se esvaindo, não porque alguém – algum ator político – esteja fazendo isso (como se sabe, vivemos em um país sem oposição). Nem porque a maioria da população esteja querendo isso. E sim porque o estado social que permitia isso foi desarrumado pelo processo social emergente que foi desencadeado. Sim, tudo indica que é o início do fim da Era Lula.
P. S. de 13/06/2023 – 10 anos depois
Os acontecimentos mostraram que junho de 2013 não teve como efeito colateral o fim da Era Lula e sim o fim da Primeira Era Lula. Seria mesmo difícil prever, àquela altura, a sequência de eventos extraordinários que ocorreram, embora ainda estivéssemos a 3 anos do impeachment de Dilma Rousseff, precedido pelas grandes manifestações do impeachment de 2015 e 2016 (que, não obstante terem sido gigantes, não apresentaram a mesma dinâmica dos eventos propriamente sociais de 2013, posto que tematizadas politicamente, com grupos organizados assumindo ou tentando assumir a coordenação e a direção do movimento: sim, 2015-2016 não foi uma reedição de 2013, foi outra coisa). De qualquer modo, a Segunda Era Lula, que começou no final de 2022, não será parecida com a primeira. A rigor é outra era, que não sabemos como será, nem quanto vai durar.