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Meus artigos de julho de 2023 na Crusoé

Lula é um democrata?

Augusto de Franco, Crusoé (20/07/2023)

A primeira resposta à pergunta do título, imediata e inequívoca, é a seguinte. Lula é tão democrata quanto são Evo Morales, Cristina Kirchner, Rafael Correa, Mauricio Funes, Manuel e Xiomara Zelaya, Fernando Lugo ou López Obrador (todos líderes populistas ditos de esquerda). Mas o pior – contra Lula – é que ele acha que ditadores como Maduro e Ortega também são democratas (e, se bobear, até o ditador Díaz-Canel).

Bem… podemos afirmar, sem medo de errar, que Lula não é um democrata como são Rodrigo Chaves, Gabriel Boric ou Lacalle Pou (os chefes de governo das três únicas democracias liberais da América Latina). Ou seja, Lula não é um democrata no sentido pleno ou liberal do termo. Permanece em aberto a questão de se Lula é um democrata (apenas) eleitoral.

É difícil tratar do tema se considerarmos o entendimento médio da população sobre o que é democracia. Vejamos.

Lula governou dois mandatos e não deu – nem tentou dar – um golpe (embora as pessoas não saibam que a estratégia do PT não passa mesmo por um golpe e sim por conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido — mas para mostrar isso é necessária uma argumentação).

Lula (ao contrário de Bolsonaro) não quer destruir as instituições (e sim ocupá-las, fazer maioria em seu interior e colocá-las a serviço do partido — mas chegar à essa conclusão também envolve uma conversação).

Lula ama de paixão eleições e não quer fraudá-las (mas como as pessoas confundem eleições com democracia e não sabem que a maioria dos regimes eleitorais hoje no mundo é autocrática, isso requer também explicação).

Lula não trabalha para cassar candidaturas concorrentes, como faz, via de regra, a maior parte dos autocratas (mas as pessoas não sabem que é possível vencer seguidamente eleições sem apelar para medidas autoritárias: nem todos os autocratas que promovem eleições se comportam como Putin, Maduro ou Ortega).

Lula não quer cercear os direitos de ir e vir, de reunião, de associação, de imprensa etc. (embora sempre tenha querido estabelecer um controle partidário-governamental, dito social, sobre as mídias — mas isso também requer uma apreciação do histórico de atuação do PT).

Deve ser em razão dessas dificuldades que a esquerda que quer ser democrática no Brasil aderiu ao governo Lula.

Mas bastaria reler todas as declarações de Lula para ver com quem estamos tratando. Vejamos apenas oito exemplos.

1 – Dizer que Cuba foi o único país que se desenvolveu na região porque deu saúde e educação para o seu povo, mentir que o embargo econômico é um bloqueio imposto pelos EUA e não reconhecer que o regime cubano é uma ditadura.

2 – Dizer que a democracia é relativa, que a Venezuela é uma democracia porque faz muitas eleições e que Maduro é vítima de uma narrativa dos seus inimigos para caluniá-lo como um ditador e que, portanto, ele deve criar a sua própria narrativa para mostrar ao mundo que é um democrata.

3 – Dizer que Zelensky provocou a guerra para aparecer, que o agredido é tão culpado quanto o agressor, que a Ucrânia deve ceder seus territórios em nome da paz e que Putin é uma esperança de paz para o mundo.

4 – Dizer que vai estreitar relações geopolíticas com a China para muito além das relações comerciais e que o ditador Xi Jinping tem razão porque está fazendo o seu país se desenvolver e ser uma grande potência mundial.

5 – Dizer que a rotatividade não é um critério da legitimidade democrática e que o ditador Ortega tem tanto direito de ficar muito tempo no poder na Nicarágua quanto Merkel ficou na Alemanha.

6 – Dizer que tem orgulho de ser chamado de comunista.

7 – Dizer que o impeachment constitucional de Dilma foi um golpe de Estado, que a sua prisão e que os processos do mensalão e do petrolão envolvendo altos dirigentes do partido e dos governos petistas foram parte desse golpe de Estado (promovido pelas “elites” fascistas).

8 – Dizer que quem não apoia (ou apenas critica) o governo é da extrema-direita (bolsonarista, nazista, fascista). Aqui cabe uma observação: ao fazer isso, Lula deslegitima a oposição democrática e a atuação política de quem não diz amém ao partido no governo (inclusive dos setores que querem se dizer de direita, empurrando-os para a extrema-direita para jogar lenha na fogueira da bipolarização e impedir a articulação de um centro democrático).

Parece conclusivo que Lula não é um democrata no sentido pleno ou liberal do termo. Alguém poderia dizer que Lula é um democrata (apenas) eleitoral, já que reduz democracia à eleições. Mas muitos autocratas também optaram pela via eleitoral (na chamada extrema-direita: Orbán, Erdogan ou Modi; na chamada esquerda: Maduro, Ortega ou os ditadores angolanos).

Já a alegação de que Lula é um social-democrata (porque quer representar os pobres e ama de paixão eleições) é fraudulenta. Lula é um populista, que nada tem a ver com verdadeiros líderes social-democratas como Rodrigo Chaves (da Costa Rica, uma democracia liberal), Olaf Scholz ou Sanna Marin, e sim com os líderes neopopulistas seus aliados como Evo, Cristina, Correa, Funes, Zelayas, Lugo ou Obrador. Lula não se parece nem mesmo com os dois chefes de governo das únicas democracias liberais da América do Sul: Boric (considerado à esquerda) e Pou (considerado à direita). Nenhum democrata (no sentido pleno ou liberal do termo) – diga-se de esquerda ou direita – daria declarações como as que Lula deu e continua dando. Um verdadeiro democrata (mesmo que apenas) eleitoral daria?

A conclusão fica por conta do leitor.


Não há saída no curto prazo para a democracia liberal no Brasil

Augusto de Franco, Crusoé (13/07/2023)

Segundo os mais reconhecidos institutos que monitoram os regimes políticos no mundo, o Brasil não é hoje uma democracia plena ou uma democracia liberal. É uma democracia defeituosa (flawed, para a The Economist Intelligence Unit) ou uma democracia apenas eleitoral (para o V-Dem). Além disso, é uma democracia eleitoral parasitada por dois populismos: o populismo autoritário (dito de extrema direita) e o neopopulismo (dito de esquerda).

Já se estudou bastante o populismo-autoritário ou nacional-populismo (bannonista, de Steve Bannon). São correntemente identificados esses populistas ao redor do mundo: Trump (nos EUA), Farage (no Reino Unido), Le Pen (na França), Salvini e Meloni (na Itália), Erdogan (na Turquia), Orbán (na Hungria), Modi (na Índia) e Bolsonaro (no Brasil) estão entre os principais exemplos.

Todavia, a ciência política contemporânea ainda hesita em estudar o populismo de esquerda e apontar os neopopulistas.

Como definir hoje um neopopulista, ou seja, um populista dito “de esquerda” (como Evo Morales e Luís Arce na Bolívia, Cristina Kirchner e Alberto Fernández na Argentina, López Obrador no México ou Lula no Brasil)?

Um neopopulista, em boa parte dos casos, se diz admirador da social-democracia, mas ressignifica o conceito de democracia (reduzida a regime eleitoral) para designar cidadania. Absolutiza o que chama de social (o povo, entendido como os pobres) e relativiza o que chama de democracia (reduzida à cidadania). O resultado dessa reengenharia conceitual é que, desde que haja eleições e opção preferencial pelos pobres, social-autocracias eleitorais (como a Venezuela) são introduzidas de contrabando no campo da democracia (como fez Lula, antiga e recentemente).

E a consequência antidemocrática mais grave dessa operação é que o sentido da política deixa de ser a liberdade e passa a ser a ordem (uma nova ordem). A política vira então um meio (via de regra guerreiro, de política adversarial como continuação da guerra por outros meios) para empalmar o poder (via eleições) e implantar uma ordem supostamente mais justa, tendo como objetivo precípuo a redução das desigualdades (socioeconômicas).

Se o bem-estar da população (ou a melhoria de vida dos mais pobres) está aumentando (mais cidadania), o regime e o governo estão autorizados a violar (ou reduzir) direitos políticos e liberdades civis (menos democracia). Mas isso é apresentado como um novo tipo de democracia (aquela que funciona: porque governável e porque beneficia o povo e não apenas as elites). Passa a valer então a máxima orwelliana de Xi Jinping: democracia é autocracia.

É preciso entender corretamente o problema. Ninguém, em sã consciência, pode desvalorizar a cidadania. Mais cidadania é bom, é claro que é. Mas o preço a pagar por mais cidadania não pode ser menos democracia. A universalização da cidadania é um processo humanizante. Mas cidadania não é a mesma coisa que democracia. Se substituímos o conceito de democracia pelo de cidadania, a democracia passa a ser relativa. Aí autocracias de Cuba, China, Singapura ou Brunei podem, falsamente, virar “democracias”.

A questão é que menos desigualdade (socioeconômica) não leva sempre a mais igualdade (política). E que mais desigualdade política leva sempre à desliberdade, mesmo que a cidadania, medida por índices de bem-estar ou de direitos e programas sociais inclusivos, possa estar se expandindo.

Democracias liberais são aquelas que não transigem com reduzir direitos políticos e liberdades civis em nome de maior inclusão social, de aumento da renda e da riqueza médias da população ou da redução das desigualdades socioeconômicas. Todas as democracias liberais sabem que é preciso reduzir as desigualdades socioeconômicas, mas estão convencidas de que isso não pode ser feito às custas de menos liberdade (ou de mais desigualdade política). Por isso não há, nas democracias liberais, culto à personalidade de líderes extraordinários, que vão fornecer ao povo, como benfeitores, melhores condições de vida, salvando as populações da fome ou da insegurança alimentar e nutricional, da falta de acesso a bons serviços de saúde e de educação para todos, moradia digna, transporte adequado e segurança pública. Por óbvio, tudo isso é desejável, mas não substitui a democracia.

Democracias liberais não valorizam a capacidade do governo de se impor à sociedade (ou conduzi-la) – mesmo dando casa, comida e roupa lavada for all – acima da possibilidade da sociedade de controlar o governo. Isso é o que distingue uma democracia liberal do outro tipo de regime democrático (a democracia eleitoral) e dos demais tipos de regimes não democráticos (as autocracias eleitorais e as autocracias fechadas).

Claro que as democracias liberais são minoritárias no planeta (em número de países e em população): segundo o mais recente relatório (2023) do V-Dem Institute (Universidade de Gotemburgo), temos apenas 32 democracias liberais no conjunto dos 179 países monitorados. Só para dar um exemplo, existem hoje apenas 5 democracias liberais nas Américas (EUA – uma flawed democracy segundo a The Economist, Barbados, Chile, Costa Rica e Uruguai; no relatório do ano passado tínhamos 6, pois figurava na lista o Canadá, que decaiu para democracia eleitoral). Isso não significa que as democracias liberais não sejam os países com melhor vida cívica do mundo, com mais direitos políticos e liberdades civis e com menos corrupção; ou seja, melhores lugares para se viver.

Parasitado por dois populismos em disputa (o neopopulismo, agora no governo, e o populismo-autoritário, praticando uma tosca oposição antidemocrática), o regime brasileiro está muito longe de passar a ser uma democracia liberal. E ficará assim por longo tempo, enquanto não surgir uma oposição democrática que se instale como centro de gravidade da política, em torno do qual tenham de orbitar o conjunto das forças políticas em disputa.

Um exame da nossa situação política atual revela que não temos as condições necessárias para qualquer avanço significativo nesse terreno. Por isso é bom cair na real. Não há saída para a democracia liberal no Brasil no curto prazo. Se não pararmos de sonhar com uma solução mágica imaginária de curto prazo (2026) não conseguiremos cumprir o papel necessário para construir uma alternativa real no médio prazo (2030-2034) ou, mais realisticamente, no longo prazo (2038-2048). Sim, este é o desafio de uma geração.

E que papel seria este? A resposta deveria ser óbvia (mas, muitas vezes, não é): multiplicar o número de democratas liberais, pois não há democracia liberal sem democratas liberais. É difícil, sabemos. Mas, para quem está realmente convertido à democracia, esse é o tipo de projeto ao qual vale a pena dedicar a vida.


Teoria do passapanismo

Augusto de Franco, Crusoé (06/07/2023)

Estou escrevendo, para a Crusoé, uma INTRODUÇÃO À TEORIA DO PASSAPANISMO. Tem background, pressupostos (axiomas), supostos (hipóteses), convenções (como definições), teoremas (e corolários). O primeiro axioma é: Lula é um democrata. Isso não é uma hipótese. Não está sujeito à refutação no âmbito da “teoria”. É como se fosse uma verdade evidente por si mesma. Segue abaixo uma introdução.

É a ignorância que leva Lula a apoiar todas as ditaduras de esquerda. Ele apoia tais regimes porque não sabe bem, coitado, o que é uma democracia. O importante é que suas ações concretas nunca foram antidemocráticas. Eis a nova “teoria” dos jornalistas e intelectuais governistas. Segundo sua explicação, Lula é, de facto, um democrata, nunca se afastou disso, embora fale algumas besteiras de vez em quando por desconhecimento. Como é difícil salvar Lula de si mesmo, trata-se, portanto, de ignorar o que ele diz. Fazer de conta que ele não está dizendo o que vem repetidamente dizendo.

Se Lula recebeu Maduro e Lavrov com honras de Estado; se, no passado, protegeu Battisti, elogiou e abraçou Kadafi e Amahdinejad; e se, no futuro, receberá bin Salman – nada disso importa. Pois Lula é um democrata, isso não está em discussão. Só comete esses deslizes porque é um operário, quer dizer, por não ter tido oportunidade de receber uma educação adequada.

Mas os passapanistas enfrentam não poucas dificuldades de lavar a reputação de Lula e do PT. Vejamos alguns exemplos.

Eles fazem um esforço danado para dizer que Lula não é, nem nunca foi, comunista, aí vem o próprio Lula e diz que tem orgulho de ser chamado de comunista.

Eles empreendem uma iniciativa sobre-humana para dizer que Lula é social-democrata, aí vem o Lula e declara que a democracia é relativa (ou seja, que a democracia não é um valor universal: o que é democracia para mim pode não ser para você; o que é democracia para Xi Jinping – um ditador, pode não ser democracia para Olaf Scholz – um verdadeiro social-democrata, mas tudo pode ser democracia, a depender da “narrativa”).

Eles fazem um trabalho hercúleo para dizer que o PT é um defensor da democacia, quase que um sinônimo de democracia, aí vem o Lula e afirma que a ditadura venezuelana é uma democracia (e que achar que Maduro é um ditador é apenas uma narrativa a ser contraditada por outra narrativa – na qual ele seria um exemplo de democrata).

Eles se opõem, pelo menos formalmente, à invasão de Putin na Ucrânia, mas aí vem Lula e comete repetidamente juízos autocráticos sobre a guerra, não fazendo distinção entre agressor e agredido, dizendo que Zelensky é tão culpado quanto Putin e que ele, aquele “comediante”, quer a guerra para se promover, não apoiando as sanções das democracias liberais à ditadura russa e propondo resolver o problema pela força, a partir de um grupo das maiores autocracias do planeta para impor a paz.

Eles tentam de todo jeito dizer que a militância petista que ainda vive no clima guerra fria é uma franja partidária, uma minoria com pouca influência, mais aí vêm Gleisi (a presidente do partido), Pimenta, Marinho e Teixeira (ministros) – todos dirigentes da tendência majoritária do PT (sim, aquela mesma de Lula e Dirceu) – apoiar as declarações antidemocráticas de Lula (o líder máximo), típicas da guerra fria (contra o imperalismo norte-americano).

Eles resolvem articular uma espécie de “tendência externa” do PT para apoiar Haddad (que não é chefe de coisa alguma no partido) na sua luta interna contra os neopopulistas estatistas (que seriam uma minoria atrasada do partido), construindo assim um PT imaginário e, com isso, enganando as pessoas.

Este último ponto, talvez, tenha até uma explicação benigna.

Os jornalistas políticos e intelectuais que proferem hoje opiniões políticas em alguma mídia, em sua maioria, não sabem bem o que é uma organização política de quadros. No máximo participaram das franjas de algumas delas no movimento estudantil ou em alguma corporação ou ONG. Nunca fundaram, nem dirigiram, uma organização da esquerda marxista revolucionária. Na verdade, nem creem que existam.

Quando você tenta explicar como funcionam, eles não acreditam. Acham que você está inventando uma teoria da conspiração. Quando você diz que um partido de massas, neopopulista, que adotou a via eleitoral, tem no seu núcleo um “partido interno” de dirigentes marxistas, eles acham que você está dando uma de Olavo de Carvalho (quando, na verdade, está apenas entendendo Orwell).

É inútil conversar porque eles têm muitas certezas sobre o que não sabem.

Aí, quando você mostra que o Zé Dirceu nunca deixou de ser dirigente do PT, nem quando foi cassado, nem quando estava preso, eles acham graça e pensam: “Mas que cara doido”. Ora, bastaria assistir um vídeo qualquer de Dirceu, desses que ele continua gravando para o Opera Mundi, para conhecer a “teoria de tudo” atual da esquerda: com análises da conjuntura brasileira e mundial, com as táticas que o PT deve seguir (por exemplo, agora, a dos três mandatos consecutivos) e com apreciações geopolíticas estratégicas (que coincidem, em grande parte, com as de Putin e dos partidos amigos latino-americanos reunidos no Foro de São Paulo) – e é essa a orientação seguida pela maioria da militância lulopetista.

Mas eles se recusam a ver. Porque eles querem porque querem que o PT seja um partido social-democrata dirigido por gente como (acham que é) Fernando Haddad. E acham que passeando na sede da direção do PT você, distraidamente, cruza de manhã com um Olaf Scholz e de tarde com uma Sanna Marin.

Nem o Lula – com sua sinceridade desconcertante – consegue acordá-los: “Eles nos acusam de comunistas, achando que nós ficamos ofendidos com isso. Mas não ficamos ofendidos. Nós ficaríamos ofendidos se nos chamassem de nazistas, de neofascistas, de terrorista, mas de comunista, socialista, nunca. Isso não nos ofende, isso nos orgulha”. Mesmo assim, refeitos do susto inicial após ouvir essa fala do grande líder, eles não entendem que ela não significa que Lula seja comunista (daqueles que “comem criancinhas”, porque não é mesmo) e sim que ele, quando falava, sabia perfeitamente de onde estava falando e para quem estava falando: falava como um dirigente do PT para um conjunto de organizações assemelhadas de quadros de raiz marxista presentes no Foro de São Paulo (e tanto é assim que foi ovacionado quando proferiu tal juízo).

Mas… como? – indagam eles, muito confusos. Se Lula é um democrata (e o é porque este é um pressuposto de sua teoria que, portanto, não pode estar em discussão), como então ele pode ter dito isso? Tentam acionar suas “fontes” (leia-se: dirigentes do PT cuja função é enganá-los) e, no caso, são dissuadidos de continuar fazendo esse tipo de pergunta. Não tendo resposta, eles acham que é melhor esquecer tudo e passar ao próximo (ou voltar ao velho) assunto: “E o Bolsonaro, heim?”

O que eles não querem ver é que Lula e o PT ressignificaram o conceito de democracia (substituindo-o por cidadania) para poder relativizar a democracia (desde que haja avanços na cidadania). Xi Jinping está de pleno acordo e por isso diz que a China é a verdadeira democracia (a democracia que funciona, porque é governável autocraticamente e porque está aumentando o bem-estar de sua população).

Mas Lula, o PT e a esquerda populista na América Latina em geral, não são social-democratas e sim social-autocratas. Eles entendem por social a coleção dos pobres (chamados de o povo) que são seu exército eleitoral de reserva. Eles entendem por democratas os que falam (e têm reserva de mercado para falar exclusivamente) em nome desse povo. Mesmo que sejam autocratas!

Ora, todos os populismos contemporâneos levam à autocratização da democracia. No caso do populismo-autoritário (dito de extrema-direita), há risco real de decairmos, às vezes abruptamente, de uma democracia eleitoral para uma autocracia eleitoral (como aconteceu com a Hungria, com a Turquia e com a Índia). No caso do neopopulismo (dito de esquerda) há risco real de nossa democracia eleitoral virar, ainda que mais lentamente, um regime não-liberal (como está acontecendo com a Bolívia, com o México e com o Brasil) e, no limite, virar também uma autocracia eleitoral (como aconteceu com a Venezuela e com a Nicarágua).

Segundo o discurso de Lula na abertura do XXVI Foro de São Paulo –  uma articulação de neopopulistas da esquerda marxista da América Latina, de caráter social-autocrata, não-liberal – só a esquerda representa o bem. Todos os que não forem de esquerda são, para ele, neofascistas. É uma visão antipluralista. O objetivo é empurrar para a extrema-direita os que se opõem ao seu governo para então congelar a atual bipolarização até 2026 e além. O propósito desse ataque frontal à democracia liberal é esterilizar o terreno para que nele não floresça nenhuma oposição democrática (não-populista).

Fica claro que o inimigo principal do lulopetismo não é – nunca foi – o bolsonarismo e sim os democratas liberais. O bolsonarismo foi uma oportunidade caída do céu para vencer as eleições e agora continua sendo um aliado tácito nessa campanha do lulopetismo de exterminação dos democratas liberais.

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