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Meus artigos para O Antagonista em 2022

A partir de meados de novembro de 2022 passei a escrever semanalmente em O Antagonista. Eis os meus artigos de 2022.

Entre a grande baleia e o tubarão

Augusto de Franco, O Antagonista (19/11/2022)

Augusto de Franco diz que o desafio dos democratas liberais é resistir à cooptação neopopulista de esquerda e ao populismo autoritário da extrema-direita

Isso nem se discute. Eleito Lula, é dever dos democratas continuar defendendo a democracia, durante a transição e depois da posse do novo presidente, dos ataques bolsonaristas que virão, da parte do governo cessante e, depois, de fora do governo. Serão ataques de uma oposição antidemocrática, que não aceita o resultado das urnas, nega a legitimidade do pleito e, por conseguinte, do próximo governo, em alguns casos alimentando tentativas de golpe de Estado e pregando saidas inconstitucionais para impedir a posse do presidente ou promover a sua derrubada.

Não é dever dos democratas, porém, aderir ao governo ou entrar no governo. Os que quiserem apoiar o governo, podem fazê-lo. Os que não quiserem, podem se opor ao governo, democraticamente. É assim que funcionam as democracias. Governo existe em qualquer regime. Oposição democrática, só nas democracias. Oposição democrática não existe apenas quando o governo é autocrático, quando o governo é ruim, quando o governo precisa ser substituído antes do prazo. Ela faz parte do metabolismo normal das democracias. Não existe democracia sem possibilidade de oposição democrática. Nas democracias liberais – que são regimes plurais – a oposição é tão importante quanto o governo.

Só o nosso profundo e generalizado analfabetismo democrático torna necessária essa explicação. Se o governo foi eleito legitimamente e se comporta democraticamente, cabe à oposição democrática elogiar e apoiar medidas que avalia favoráveis à democracia (e, poder-se-ia acrescentar, ao desenvolvimento humano e social sustentável), criticar medidas que julga desfavoráveis e apontar alternativas. Além disso, tentar substituir o governo eleitoralmente ou segundo a Constituição e as leis, procurando não violar as regras não-escritas da democracia sem as quais não se sustenta qualquer sistema legal.

Isso é bem diferente de uma oposição antidemocrática, que tenta inviabilizar ou derrubar o governo violando a Constituição, as leis e as regras não-escritas da democracia, por meios guerreiros – violentos ou não. Não fosse a precariedade de nossa cultura democrática, seria desnecessário observar que a democracia é um modo não-guerreiro de regulação de conflitos. Para a democracia a política não é a continuação da guerra por outros meios. A política (democrática) não é guerra e sim evitar a guerra, ficando claro que guerra não é necessariamente violência, não é destruição de inimigos e sim construção de inimigos para instalar um ‘estado de guerra’ que permita a ereção de padrões hierárquicos de organização regidos por modos autocráticos de regulação de conflitos.

Dito isto, passemos ao grande desafio posto aos democratas liberais no próximo período. Em uma pergunta, esse desafio poderia ser definido assim. Como existir num mar onde reinará uma grande baleia (a coalizão das forças governistas, formada por cooptação neopopulista – ainda que disfarçada de “frente ampla”) e um tubarão (o “partido digital” bolsonarista, fazendo uma oposição antidemocrática populista-autoritária)? Qualquer pequeno cardume não-populista será engolido sem grande esforço pela baleia e atacado ferozmente pelo tubarão. Sim, os democratas liberais (para todos os efeitos práticos: os democratas não-populistas) são tomados pelos populistas como seus principais inimigos, digam-se esses populistas de esquerda ou de direita (se é que essas noções ainda fazem sentido).

Em outras palavras: como se comportar democraticamente diante do neopopulismo lulopetista no governo e do populismo-autoritário bolsonarista fora do governo? Não são iguais, não há simetria, mas há isomorfismos entre eles. Os neopopulismos (como o lulopetismo) querem manter as democracias que parasitam como democracias eleitorais, impedindo porém que elas ascendam à condição de democracias liberais (na linha de Chávez, Evo, Correa, Lugo, Funes, Lula, Cristina, Obrador, Zelaya e talvez Petro). Os populismos-autoritários (como o bolsonarismo) querem converter as democracias liberais ou eleitorais que parasitam em autocracias eleitorais (na linha de Orbán, Erdogan, Trump, Putin, Modi). A não ser em casos extremos, em que instauraram ditaduras (como na Venezuela de Maduro e na Nicarágua de Ortega), os neopopulismos costumam ser democráticos (conquanto apenas democrático-eleitorais, quer dizer, não-liberais). Já os populismos-autoritários são autocráticos (conquanto autocráticos-eleitorais – e, portanto, são iliberais).

O fato é que, sem uma oposição democrática, a bipolarização (ou a divisão) da sociedade brasileira continuará por mais quatro e, talvez, oito anos. As enormes tensões que se acumularão em razão desse embate entre ditos progressistas, de um lado e ditos fascistas, por outro, não terão válvula de escape. Dificilmente sairá daí mais-democracia. Mas há um campo para trabalhar uma alternativa democrática não-populista. Nesse campo estão potencialmente: 1) os que votaram em Lula só para remover Bolsonaro; e 2) parte dos que não votaram em ninguém ou até votaram em Bolsonaro apenas para impedir a volta do PT ao governo. Somam mais de 30 milhões de almas.

Onde se esconderam os democratas liberais?

Augusto de Franco, O Antagonista (27/11/2022)

Se não houver pluralidade de forças, a política se resumirá ao perde-ganha bipolar, com mais características de guerra do que de política

Sempre que se usa a palavra liberal é necessário advertir que isso não tem nada a ver com as doutrinas do liberalismo-econômico ou com chamado neoliberalismo. Para todos os efeitos práticos, liberal – no sentido político do termo – significa hoje apenas uma coisa: não-populista. No primeiro turno de 2022 muitos estavam convencidos de que seria preciso construir um centro democrático liberal (quer dizer, não-populista) no Brasil. A candidatura de Simone Tebet, de certo modo, expressou esse desejo.

Com o afunilamento da disputa entre o populismo-autoritário bolsonarista e o neopopulismo lulopetista, esse desejo parece ter se esfumado. Ficou a impressão de que a (incorretamente) chamada terceira via (outra designação para o centro democrático) não passava de marketing eleitoral. Muitos que queriam apostar numa alternativa a Bolsonaro e a Lula ficaram pendurados na broxa quando várias lideranças, após declararem – corretamente – apoio a Lula no segundo turno, começaram a costear o alambrado para aderir ao novo governo. Como se dissessem: “Agora a conjuntura mudou: a gente entra no novo governo e só volta com esse papo de centro democrático (ou de terceira via) em 2026”.

Apoiar Lula no segundo turno foi a opção democrática correta, de vez que era a única maneira de impedir a reeleição de Bolsonaro – que só não aconteceu, aliás, por um triz. Mas aderir ao governismo não é a consequência necessária de ter removido eleitoralmente Bolsonaro. Ou um centro democrático – no sentido de centro de gravidade da política e não de posição geometricamente equidistante dos polos ditos de direita ou extrema-direita e de esquerda – é necessário para o bom funcionamento da democracia, ou não é.

Já que Lula foi eleito, isso não é mais necessário? Pelo contrário. Continua sendo necessário um centro de gravidade democrático liberal ou não-populista. Mas se todos os que viam essa necessidade vão embarcar no novo governo, quem articulará tal alternativa (não em 2026, mas em 2023, 2024, 2025)? Se os democratas liberais se esconderem da política, imaginando que o país vai ficar parado até o próximo pleito, então de nada valeram seus esforços e promessas no primeiro turno.

O tema é crucial porque a sobrevivência (ou, pelo menos, o desempenho) da política (democrática) depende disso. Vejamos o que pode acontecer.

Os bolsonaristas não aceitaram – e, ao que tudo indica, não aceitarão – a derrota eleitoral. Não reconhecerão o governo como legítimo. Mas não poderão ficar o tempo todo interrompendo o tráfego nas estradas e atravancando as portas dos quarteis esperando uma sublevação militar. Após a posse de Lula como alimentarão o movimento golpista? Vão fugir para as montanhas aguardando que um disco voador traga o seu redentor tendo nas mãos as tábuas da Lei (o Artigo 142 da Constituição falsificado como autorização para um golpe militar)?

Parece que não. Tendo marcado sua posição, numa imitação barata do trumpismo, de que a eleição foi fraudada, eles continuarão no seu partido digital (nos grupos e listas de WhatsApp e Telegram), mas sobretudo em localidades e setores de atividade já colonizados.

Categorias como caminhoneiros e policiais e localidades pequenas e médias do interior do país vão continuar sendo bolsonaristas. Periodicamente vão ensaiar movimentos de contestação da ordem democrática, esperando momentos em que o governo cometa erros e fique mais vulnerável.

Tratar tudo isso – incluindo os quase 60 milhões de eleitores de Bolsonaro – como um bloco fascista só aumentará sua coesão. Deixar que a oposição ao governo seja apenas a oposição antidemocrática bolsonarista acirrará a guerra civil fria que se instalará e consolidará a divisão da sociedade brasileira que saiu das urnas de 2022.

Para evitar isso, o governo terá de fazer política e não se encastelar como o exército do bem em luta contra as forças do mal. As forças da democracia não podem ser todas engolidas pelo governo, do contrário não haverá válvula de escape para as tensões que se acumularão.

Se não houver pluralidade de forças, inclusive de oposição democrática, a política se resumirá ao perde-ganha bipolar, com mais características de guerra do que de política. Será, a rigor, antipolítica. Mas, como sabemos, para a democracia, não há solução sem política. E a experiência das 34 democracias liberais que remanescem no mundo (segundo o V-Dem Institute, da Universidade de Gotemburgo) mostra que não pode haver democracia liberal sem oposição democrática.

Uma falsa frente ampla não resolverá o problema. Frente eleitoral para impedir a reeleição de Bolsonaro existiu, sim – e ainda bem. Mas frente eleitoral não vira frente ampla para governar o país por força de loteamento de cargos e distribuição de outras benesses para os que querem ficar nas próximidades do poder. Para haver frente ampla é preciso ter coordenação conjunta plural e programa mínimo comum. Isso não há. E, mesmo que houvesse, não dispensaria a atuação cotidiana de uma oposição democrática.

A necessária pacificação política do Brasil

Augusto de Franco, O Antagonista (03/12/2022)

‘O ódio nas mídias sociais aumentou; agora é ódio e ressentimento de militantes bolsonaristas versus ódio e espírito de vingança de militantes lulopetistas’

Antes de qualquer coisa é preciso colocar as coisas no lugar. Lula não foi eleito com seus próprios votos. Só venceu (e por menos de 2%) graças aos votos dos não-petistas que queriam remover Bolsonaro. Lula foi eleito sem um programa de governo. Achou que bastaria evocar a memória afetiva de seus dois mandatos anteriores. Não bastou. Foi necessário contar com o apoio eleitoral dos democratas liberais, quer dizer, não-populistas (ditos de centro).

Lula sabe que é impossível reproduzir, vinte anos depois, o período 2003-2010. Nos anos 2023-2026 não se reunirão as condições econômicas, sociais e políticas para tanto. Mesmo assim, o lulopetismo e o jornalismo alinhado continuam insistindo nessa farsa.

A frente eleitoral que se formou para impedir a reeleição de Bolsonaro, não é uma frente ampla para governar. Não tem coordenação plural conjunta, nem programa mínimo comum. Ou seja, não há frente ampla a não ser na propaganda difundida pelo jornalismo chapa-branca. A propaganda oficial diz que Lula fará um governo de transição. Está correto. Será um governo de transição para outro governo do PT e não para o governo de um candidato escolhido consensualmente pela (inexistente) frente ampla.

Os dois primeiros mandatos de Lula se exerceram praticamente sem oposição (a não ser um arremedo de “oposição” tucana que, a despeito de ser democrática, foi vacilante, leniente e conivente). O terceiro mandato de Lula será confrontado por uma oposição antidemocrática bolsonarista. Lula e o PT não gostam de oposição democrática. Preferem engolir todas as forças democráticas da sociedade para praticar uma política bipolar, degenerando o modo de regulação de conflitos numa espécie de guerra civil fria entre progressistas e fascistas.

Para continuar travando essa guerra, dizem que toda oposição – mesmo a legítima oposição democrática – é antipetismo: uma posição caracterizada como doentia, supostamente alimentada pelo ressentimento. Os efeitos da incompreensão dessas realidades – sobretudo o não entendimento do papel da oposição democrática numa democracia – aprofundarão a divisão da sociedade brasileira em vez de tentar superá-la e pacificá-la.

Sim, para além da polarização, o que há é uma divisão na sociedade brasileira. Acrescente-se que essa divisão nunca vai se resolver com base na disputa bipolar governistas (progressistas) x fascistas (bolsonaristas). Por isso precisamos de pluralidade no campo da democracia. Mas a política pervertida como continuação da guerra por outros meios – ao aplastar a pluralidade democrática – será devastadora para a democracia.

É bom observar com atenção. Depois da vitória de Lula, o ódio nas mídias sociais não diminuiu. Pelo contrário, aumentou. Agora é ódio e ressentimento de militantes bolsonaristas versus ódio e espírito de vingança de militantes lulopetistas. Não há luz alguma no fim desse túnel.

A pacificação mínima de que precisamos só acontecerá se abrirmos mão de querer dar o troco aos bolsonaristas. É preciso, pelo menos em parte, esquecer muito do que passou para voltar a empolgar o país em torno de pautas positivas e de projetos para o futuro. A atuação de um CCF (Comando de Caça aos Fascistas, espelho do velho CCC – Comando de Caça aos Comunistas), que queira promover o cerco e aniquilamento dos bolsonaristas, só vai fazer a guerra recrudescer.

Ademais, não basta ser antifascista para ser democrata. Nicolás Maduro e Daniel Ortega, dois ditadores sanguinários, também são antifascistas. O ditador Putin fez uma guerra de conquista contra a Ucrânia para acabar com um suposto nazifascismo ucraniano. O ditador Xi Jinping – outro antifas – controla e reprime brutalmente sua população. Aliás, o muro de Berlim do lado soviético era chamado de Antifaschistischer Schutzwall (muro de proteção – ou barreira – antifascista).

Na base da vingança – olho por olho, dente por dente – nunca haverá pacificação. Além da justiça será necessária uma boa dose de misericórdia ou compaixão. Para tanto será preciso relevar algumas ofensas para tentar entender os desejos e as dores dos que entraram na onda bolsonarista de rejeitar e atacar a democracia. Não são todos fascistas. Ou é isso ou teremos pela frente uma guerra civil fria de longa duração.

Não é possível exterminar quase 60 milhões de pessoas que escolheram Bolsonaro. Não é possível exigir que essas pessoas abjurem em praça pública em troca de não ir para fogueira. Não é possível separar os líderes do rebanho, punir os chefes esperando contar com a desistência dos liderados pelo temor de serem também justiçados. Porque, ao contrário do que muitos pensam, não há mais somente comandantes e comandados.

O bolsonarismo é hoje um movimento descentralizado (ainda que não distribuído) e altamente capilarizado. Está profundamente enraizado em algumas categorias profissionais (como policiais, militares, caminhoneiros e até médicos) e em milhares de localidades pequenas e médias do interior do país. Não foi por acaso que Bolsonaro venceu em todas as regiões do Brasil, com exceção de uma (Nordeste).

Que fique claro, porém. Bolsonaro e vários integrantes de seu governo devem prestar contas à justiça pelos muitos crimes que cometeram, sobretudo contra a saúde pública – observando-se, sempre e rigorosamente, o devido processo legal. Mas condenar e prender Bolsonaro, sua mulher, seus filhos, seus influencers e seus generais golpistas, não vai acabar com o bolsonarismo. Dependendo de como isso for feito, da sumariedade dos processos e dos atropelos aos códigos penais, pode ter efeito contrário. Estamos falando de política, não de antipolítica. Uma nova cruzada de limpeza – uma espécie de lavajatismo com o sinal trocado – será antipolítica.

A necessária pacificação é política – não jurídica. Não significa que a justiça deva deixar de processar quem viola as leis. Mas significa que, em nome da justiça, não se conforme um movimento político baseado em vontade de vingança e desejo de revanche.

O companheiro Pedro Castillo não vem mais à posse de Lula

Augusto de Franco, O Antagonista (11/12/2022)

A aventura desastrada de Castillo é pedagógica porque revela que existe, sim, populismo de esquerda na América Latina e que ele não é democrático

Os lulopetistas fizeram campanha e apoiaram efusivamente a eleição do golpista Pedro Castillo em 2021 (sim, foi no ano passado), com direito à cartinha de Lula, vídeo de Gleisi e de Celso Amorim e nota oficial do partido.

No seu perfil no Twitter, o PT Brasil declarou (26/07/2021): “Saudamos a posse do Presidente eleito do Peru, companheiro Pedro Castillo. A chegada ao governo de um representante popular, de esquerda e progressista traz esperança ao povo latino-americano. Sucesso, Presidente”. Antes disso, Lula, também no Twitter (10/06/2021), escreveu que “o resultado das urnas peruanas é simbólico e representa mais um avanço na luta popular em nossa querida América Latina”.

Celso Amorim, antes ainda (no início de junho de 2021), durante a campanha eleitoral, gravou um vídeo apoiando a candidatura do “companheiro Pedro Castillo”, considerando sua vitória importante “na luta contra o capitalismo desenfreado, neoliberal”. Gleisi Hoffmann, presidente do PT, fez a mesma coisa empenhando o apoio do partido “à onda progressista que está no Peru… pela libertação total da América Latina”. Lula também entrou na campanha, assinando uma nota conclamando o voto em Castillo no segundo turno.

Já naquela época até as pedras de Machu Picchu sabiam que Pedro Castillo era um populista de esquerda sem qualquer compromisso com a democracia. Pois bem. Na tarde do dia 7 de dezembro de 2022, ele (Castillo) anunciou, ao vivo, um golpe de Estado no Peru. O seu governo de exceção começaria com as seguintes medidas (entre outras): 1 – Dissolver temporariamente o Congresso da República e instaurar um governo de emergência excepcional. 2 – Convocar eleições de um novo Congresso para elaborar uma nova Constituição em até nove meses. 3 – O Peru passa a ser governado por decretos-leis a partir de hoje até a nova Constituição. 4 – Toque de recolher passa a vigorar em todo o país das 22 horas até 4h do dia seguinte, a partir de hoje. 5 – Se declara em “reorganização”: o sistema de justiça, o judiciário, o Ministério Público, o Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal Constitucional. Os que vivem no Brasil falando em golpe deveriam aprender com Pedro Castillo o que é um golpe de Estado.

Essa história de dizer que o que Castillo tentou fazer em 7 de dezembro no Peru é o que Bolsonaro está tentando há quatro anos fazer no Brasil, é factualmente correta, mas interpretativamente tendenciosa. O que Castillo fez é o que Chávez e Maduro fizeram. É o que Ortega fez. Não é só o populismo de extrema-direita que quer dar golpe. Na América Latina deste século há muito mais golpes (e ditaduras) de esquerda do que de direita.

Vejamos. Existiam 6 autocracias na América Latina e Caribe no ano passado (2021) segundo o V-Dem (Universidade de Gotemburgo): Cuba, Venezuela, Nicarágua, Honduras, Haiti e El Salvador. Quase todas de esquerda (com exceção de uma ou, talvez, duas). Bolsonaro é um autocrata de extrema-direita, mas o Brasil continua sendo uma democracia eleitoral. Se o golpe do populista de esquerda Pedro Castillo tivesse vingado, teríamos 7 ditaduras (sendo 5 ou 6 de esquerda).

A aventura desastrada de Castillo é pedagógica porque revela, em primeiro lugar, que existe, sim, populismo de esquerda e que ele não é democrático (no caso é francamente iliberal – e pode ser golpista). Em segundo lugar a tentativa de golpe de mão de Castillo revela que as bases do novo populismo de esquerda da América Latina são marxistas.

Basta ver, a título de exemplo, alguns trechos do primeiro capítulo do programa do partido Peru Libre pelo qual concorreu Pedro Castillo à presidência do Peru e que já era público desde o início de 2020. Portanto, quem apoiou a sua eleição sabia o que estava fazendo. “PERÚ LIBRE é uma organização de esquerda socialista que reafirma sua corrente ideológica, política e programática. Para ser de esquerda é preciso abraçar a teoria marxista e, sob sua luz, interpretar todos os fenômenos que ocorrem na sociedade mundial, continental e nacional… Portanto, chamar-se de esquerda quando não nos reconhecemos como marxistas, leninistas ou mariateguistas, é simplesmente agir em favor da direita com a mais alta hipocrisia…” E mais: “A história nos mostra que, desde Túpac Amaru II, a revolução peruana iniciada por ele, ainda não terminou”. E aí aponta algumas medidas necessárias “para realizar as aspirações do Partido” e “para que a maquinaria revolucionária possa marchar”.

Bem… qualquer pessoa honesta verá que isso não tem nada a ver com democracia. É apenas um uso das eleições e do governo para implantar um projeto revolucionário da velha esquerda autocrática do século passado.

Certo jornalismo televisivo brasileiro, que virou chapa-branca, ao anunciar o golpe de Castillo, levantou a hipótese solerte de que ele, Pedro Castillo, por ser conservador em alguns costumes (o que ele é mesmo, por rudeza mental), se aproximava mais do bolsonarismo. Ora, isso não é nem defender o futuro governo Lula. É falsificação pura e simples. É inacreditável, mas temos agora um “Brasil Paralelo do B” instalado em grandes meios de comunicação.

A fake news, entretanto, não resiste aos fatos. Segundo o populista de esquerda Evo Morales (aliado do peito do PT), foi Pedro Castillo que sofreu um golpe da direita e do imperialismo norte-americano. Ele declarou no Twitter (08/12/2022):“O discurso de ódio e as ameaças de punição da direita peruana e de sua mídia contra o irmão Pedro Castillo colocam em risco a integridade dele e de sua família… O mundo verifica que sua declaração de vacância foi efeito de uma conspiração antidemocrática, política e midiática destinada a perseguir, assediar e atacar um governo popular legal e legitimamente eleito até que fosse deposto”. E algumas horas antes: “Como alertamos, a guerra híbrida da direita internacional perpetrou dois golpes contra os governos do povo nas últimas 48 horas. Começaram com o golpe judicial contra a irmã Cristina Kirchner e continuaram com a vacância congressual contra o irmão Pedro Castillo… Inimigos de direita do povo não aceitam governos antiimperialistas”.

López Obrador, o populista de esquerda que chefia o governo do México, logo ofereceu asilo diplomático a Castillo e declarou (La República, 08/12/2022): “Lamentamos muito o que aconteceu porque desde que ganhou, legalmente, legitimamente, Pedro Castillo foi vítima de assédio, de confronto; Seus adversários, principalmente as elites econômicas e políticas daquele país, não aceitavam o fato de ele governar”.

Gustavo Petro, outro populista de esquerda, recentemente eleito para presidir a Colômbia, também defendeu Castillo (08/12): “O direito de eleger e ser eleito e de ter um tribunal de julgamento independente foi violado”. E ainda: “Quando conheci Pedro Castillo… um golpe parlamentar já estava em andamento contra ele”.

No Brasil, Aloizio Mercadante, um dos coordenadores do governo de transição de Lula, durante coletiva de imprensa na própria tarde de quinta feira (07/12) classificou como “inaceitável” a destituição do presidente do Peru, Pedro Castillo. “Não sabemos se o primeiro movimento é só uma narrativa de golpe ou houve realmente uma tentativa [de golpe]. Qualquer que tenha sido a verdadeira história é inaceitável. É inaceitável mais uma vez quebrar a institucionalidade, a democracia, o Estado democrático de direito”.

Lula, depois, tentou consertar as coisas apoiando o governo da sucessora de Castillo baseado no fato de que o processo foi legal. Espera ter salvado formalmente as aparências, mas não poderá mais contar com a presença do campanheiro na sua posse.

O Ministério da Pesca de Lambaris

Augusto de Franco, O Antagonista (18/12/2022)

“O governo Lula não será um governo de frente ampla. Será um governo quase puro-sangue do PT”

Alguns bons analistas políticos querem acreditar que estão corretos quando pensam assim. “Olha, o PT é complicado mesmo, mas Lula provou que é um social-democrata de centro-esquerda convertido aos valores liberais. E, como ele é o presidente, vai dobrar os seus radicais”.

A intenção é boa. Eles querem que Lula acerte pelo bem das pessoas. No entanto, tal pensamento positivo (wishful thinking) tem várias falhas. A primeira delas é imaginar que Lula pode mudar a cultura petista, forjada ao longo de 40 anos, a partir da sua vontade, da sua popularidade e dos seus instrumentos de poder.

A segunda falha é avaliar que, sendo Lula maior do que o PT, ele pode fazer o que quiser com o partido. Ora, Lula é maior do que o PT eleitoralmente, não organicamente. Se fosse, não teria precisado da militância ideológica intolerante para se lançar como líder político.

Lula não teria chegado onde chegou apenas pelo seu carisma e pela sua alta gravitatem. Precisou do muque da militância, tanto sindical quanto partidária, para conquistar posições e praticar a política como uma continuação da guerra por outros meios contra “as elites”.

A terceira falha é imaginar que Lula seja uma versão cabocla de um Olaf Scholz ou de uma Sanna Marin. Não é. Nunca foi. Em toda a trajetória de construção do PT a social-democracia foi um dos inimigos principais, chamada de direita, neoliberal, quando não de fascista.

Basta ver quem são os aliados principais de Lula. Não são as democracias liberais e sim os regimes populistas dirigidos por socialistas (Chávez, Evo e Arce, Correa e Moreno, Lugo, Funes e Cerén, Zelaya e Xiomara, Cristina e Fernández, Obrador, Castillo, Petro). Além, é claro, dos populismos de esquerda que viraram ditaduras, como a Venezuela de Maduro e a Nicarágua de Ortega. Isso para não falar das velhas ditaduras do século passado, como Cuba e Angola.

Basta ver, ademais, a falta de proximidade do lulopetismo com as pouquíssimas democracias liberais das Américas, como Canadá, EUA, Barbados, Costa Rica, Uruguai e Chile.

A intenção é boa, convém repetir. Mas é uma ereção do desejo. Eles construiram um PT imaginário e um Lula imaginário. Eles realmente gostariam que fosse assim: um lulopetismo reformado por um Lula 3.0, que aposta numa frente ampla para fazer um governo de transição.

O mais curioso é que esses analistas não têm a menor noção do que é uma organização política de esquerda. Como, em geral, nunca pertenceram a uma, nunca organizaram alguma e foram dirigentes de nenhuma, acreditam que se trata de mais uma sigla, igual às demais.

Ora, uma organização política desse tipo não é o seu líder: são os seus quadros (dirigentes e militantes). Portanto, não é somente Lula. Não são apenas seus representantes eleitos e suas frentes e coalizões nos parlamentos e governos. O PT é – essencialmente – a organização de combate constituída por seus dirigentes e militantes, que almeja converter todas as pessoas em simpatizantes do partido. E esse objetivo orgânico está acima de qualquer outro alvo programático (Hannah Arendt, em 1951, percebeu isso pioneiramente no seu monumental estudo sobre o totalitarismo). Sim, é um organismo com vida própria e, por isso, dificilmente vai deixar de ser o que é: porque não pode mudar naquilo que o define. Não é por outra razão que, em relação ao PT, sempre se lembra do dito de Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord sobre os Bourbon: “eles não aprenderam nada e não esqueceram nada”.

Temos agora um exemplo concreto para examinar: o da falsa frente ampla. A mentira de que havia frente ampla foi divulgada com exemplos, igualmente mentirosos, de que economistas liberais de centro – como Armínio, Malan, Pérsio, Bacha e Meirelles – iam compor o governo. Era tão grande seu desejo de que assim fosse, para que se concretizasse o seu Brasil imaginário, que nossas pollyannas da análise política não conseguiram acreditar que isso não fosse verdade.

Mas, não! O governo Lula não será um governo de frente ampla. Será um governo quase puro-sangue do PT. Basta ver quem ocupa os ministérios realmente importantes. Ninguém imaginou que Lula não indicaria nomes do PT. O que estamos dizendo é que, até agora, para os aparatos fundamentais de governo, só indicou nomes do PT ou subordinados ao PT. Vejamos:

Fazenda – Fernando Haddad do PT

Casa Civil – Rui Costa do PT

Justiça e Segurança Pública – Flávio Dino, ex-PCdoB, atual PSB, satelizado pelo PT

Defesa – José Múcio, ex-ministro de Lula

Relações Exteriores – Mauro Vieira, ex-ministro de Dilma

Educação – Camilo Santana do PT

Saúde – Além da Nísia Trindade (simpatizante do PT), os demais cotados são todos do PT (Temporão, Padilha, Chioro, Humberto)

Planejamento – Wellington Dias do PT (cotado) ou Renan Filho (também cotado), neosatelizado pelo PT.

BNDES – Aloizio Mercadante do PT

Petrobras – Jean Paul Prates (cotado) do PT

Desenvolvimento Social – Se Simone Tebet for convidada e aceitar, será apenas uma cereja simbólica num bolo inchado, um enfeite em um ministério hegemonicamente petista.

Para os aliados sobrará, quem sabe, os ministérios que ainda serão inventados, como o poderoso Ministério da Pesca de Lambaris (ou, quem sabe, um Ministério dos Cuidados Paliativos).

E se está assim no tocante aos dez ministérios de verdade, imagine-se o que não acontecerá em cargos de segundo e terceiro escalões nesses e em outros trinta ministérios a ser inventados. Pode-se continuar acompanhando novas nomeações, mas não sem antes aplicar um infalível “Teste de Frente Ampla”. Quando forem anunciados os nomes dos ministros que não são petistas, nem da esquerda satelizada pelo PT, procurem saber o nomes dos secretários executivos e outros de segundo e terceiro escalões, para ver se são petistas ou da esquerda satelizada pelo PT.

Nada disso será divulgado com a necessária ênfase (o jornalismo chapa-branca, ao que parece hoje dominante, é mesmo insuportável). Mas a coisa que mais dói na gente não é nem isso. É ver nossos amigos analistas fingindo que não estão vendo o que está acontecendo ou passando pano:

Violar o teto fiscal? “Ah! Já foi mais do que perfurado por Bolsonaro”.

Gastar o triplo (ou, quem sabe, o quádruplo) do necessário para o Bolsa Família? “Ora, Lula precisa mesmo de dinheiro para outros projetos importantes”.

Rasgar a Lei das Estatais para fazer nomeações políticas? “Ah! Mas agora é para o bem”.

Interromper o programa de privatizações? “Sim, temos de parar de vender nossas empresas públicas e provar que elas são rentáveis. Afinal, nossa soberania depende disso”.

Nomear só petistas ou satelizados pelo PT para todos os cargos realmente importantes? “Ora, nada mais natural. Afinal foi Lula que ganhou a eleição”.

E a frente ampla? “Vai de vento em popa. Mas o papel da frente ampla agora é impedir que Bolsonaro volte”.

E uma oposição democrática, não é necessária? “Quem fará oposição é o bolsonarismo. Não podemos ficar juntos com os fascistas. Ser democrata agora exige ser governista. O destino da democracia no Brasil depende do governo Lula dar certo”.

Então tudo que o governo Lula fizer estará certo.

A estratégia oculta da falsa frente ampla

Augusto de Franco, O Antagonista (25/12/2022)

Precisando de votos de centro para vencer a disputa com Bolsonaro, Lula e o PT lançaram mão de um ardil: chamar sua costumeira frente de esquerda de “Frente Ampla”

Todos os cargos realmente importantes de governo já estão nas mãos de petistas (mais de 80%) ou de satelizados pelo PT (menos de 20%). O que vem agora é troca de cargos menores por apoio. Isso não é frente ampla, nem aqui, nem na China. No que tange ao chamado ‘centrão’ é um tipo (legal) de mensalão.

Para examinar esse problema é preciso fazer algumas distinções importantes. Frente ampla é uma coalização de forças políticas com base em um programa mínimo comum e com uma coordenação plural conjunta, que tem como objetivo implantar um projeto compartilhado para o país. Em geral as frentes amplas são recursos da política democrática para evitar que setores antidemocráticos ocupem os governos e os parlamentos ou ganhem grande importância na sociedade.

Frente ampla não é frente de esquerda. As frentes de esquerda são legítimas, mas são coalizões de forças políticas de um campo ideológico (que se diz ou é considerado de esquerda) que têm como objetivo alterar a correlação de forças a favor desse campo. Em geral as frentes de esquerda são hegemonizadas por uma organização política mais forte que sateliza as demais. Desde que disputa eleições no Brasil o PT faz frentes de esquerda, forçando siglas menores como o PCdoB, o PV, mais recentemente o PSOL e a Rede, às vezes o PDT, quase sempre o PSB, a orbitarem em torno do partido. A força gravitacional do PT acaba arrastando (pelo menos em torno de suas candidaturas majoritárias) siglas ainda mais à esquerda, como o PSTU, o PCB e a UP.

Precisando de votos de centro para vencer a disputa com Bolsonaro, Lula e o PT lançaram mão de um ardil: chamar sua costumeira frente de esquerda de “Frente Ampla”. Isso colou num primeiro momento porque, de fato, um amplo leque de forças democráticas se formou para impedir a reeleição de Bolsonaro. Mas foi uma convergência eleitoral, não uma frente ampla. Com exceção do Alckmin (que não é uma força política e sim uma pessoa que ficou sem espaço no PSDB e resolveu aderir individualmente à Lula por motivos fúteis, pegando, para tanto, o ônibus chamado PSB), a “frente ampla” petista é composta pelas forças que ficaram anos com Lula ou Dilma no governo. Zero novidade.

Fazer uma frente ampla não é capturar desgarrados dispostos a prestar vassalagem. É necessário fazer acordos políticos, ceder, construir consensos – sem eliminar dissensos – com os diferentes, não somente com os iguais. O PT não fez nada disso. Fez, sim, uma falsa frente ampla de esquerda, quer dizer, uma coalizão de forças políticas do seu campo ideológico que recrutou desavisados de outros campos para dar a impressão de que tem um programa comum (quando não tem) e uma coordenação conjunta (que também não existe).

Depois de conseguir plantar no jornalismo e no colunismo políticos a ideia de frente ampla, o PT partiu então para outra maquiagem. Chamar também de frente ampla (ampliada) o tradicional acordão de forças políticas que tem como objetivo assegurar maioria para o governo com base na troca de cargos (e verbas) por apoio. Essa falsa frente ampla fisiológica, na sua forma mais primitiva (e ilegal), foi chamada de mensalão.

A “frente ampla” petista nunca foi para governar. Foi para ganhar a eleição e ponto. Eleito Lula (por um triz) – o que não teria ocorrido sem a ajuda de setores de centro do espectro político nacional – cabe agora ressignificar sua “frente ampla” como uma frente contra o fascismo (bolsonarista). Sob o pretexto de que é preciso manter a “frente ampla” para evitar a volta de Bolsonaro, desenha-se aqui uma estratégia cujo objetivo real é impedir a formação de um centro democrático liberal no Brasil, assegurando uma hegemonia petista de longa duração. Sim, é preciso assegurar que o governo Lula seja efetivamente um governo de transição: uma transição para outro governo do PT. Por isso a preocupação de alocar Simone Tebet, a única representante acidental dos setores democrático liberais (ou seja, não-populistas) que sobrou, em um cargo de menor importância no governo.

Restou provado que Lula não queria Simone na Educação ou no Desenvolvimento Social. Tanto é assim que colocou petistas puro-sangue nas duas pastas. Ele também não queria Marina no Meio Ambiente e então promoveu um jogo sujo para passar a ideia de que as duas (Simone e Marina) estariam disputando a mesma pasta. É falso como uma nota de 13 reais. No final,Lula teve que engolir Marina (que era uma espécie de candidata natural), mas isso não altera a natureza da frente de esquerda travestida de frente ampla. Marina é (e sempre foi) do campo ideológico da esquerda: foi ministra do primeiro governo Lula e seu partido, a Rede, se dispôs a conestar toda a farsa da frente ampla.

A operação lulopetista visa impedir a formação de uma oposição democrática. Para manter a dinâmica bipolar (“nós contra eles”) da qual vivem os populismos, ou seja, para continuar praticando a política como continuação da guerra por outros meios, que alimenta o lulopetismo e retroalimenta o bolsonarismo, Lula e o PT vão dizer que toda oposição ao seu governo é, na verdade, uma oposição à democracia. Não é que eles não queiram oposição. Pelo contrário, desejam ardentemente uma oposição: bolsonarista. O que eles não querem, de jeito nenhum, é uma oposição democrática não-populista (quer dizer, liberal). Porque isso atrapalha a dominação total do lulopetismo, que deve ser identificado com a própria democracia (contra o fascismo). Esse é o objetivo oculto da transição, que começou com os Jogos Vorazes travados no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília e que vai continuar nos palácios do Planalto e da Alvorada: identificar o lulopetismo com a democracia, reduzindo a pluralidade democrática, sem a qual não pode haver democracia liberal, a um bloco único de forças políticas hegemonizado pelo PT.

Ora, nenhum regime político, em qualquer país do mundo ou época da história, chegou a ser uma democracia liberal sem pluralidade democrática e sem oposição democrática. Mas quem disse que Lula e o PT querem uma democracia liberal? Não querem. Querem, sim, uma democracia eleitoral: um regime que possam continuar parasitando para ganhar eleições sucessivamente e ficar no governo para sempre (ou enquanto der).

Claro que isso é diferente de Bolsonaro, que queria (e continua querendo) converter nossa democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral, um regime claramente iliberal. O PT, não. Quer manter indefinidamente nossa democracia eleitoral como uma democracia (apenas) eleitoral, quer dizer, como um regime democrático, sim, porém não-liberal.

Segundo dados do V-Dem Institute (Universidade de Gotemburgo) de 2022, no universo de quase 180 países do globo, os democratas liberais preferem os regimes vigentes nas 34 democracias liberais aos regimes vigentes nas 55 democracias (apenas) eleitorais e, é claro, aos regimes vigentes nas 60 autocracias eleitorais e nas 30 autocracias fechadas (não-eleitorais) que ainda remanescem no mundo. Não é tão difícil entender isso, se apelarmos para exemplos concretos (em ordem alfabética):

O que é preferível, o regime da Austrália (democracia liberal) ou os regimes vigentes na Argentina (democracia eleitoral), na Albânia (autocracia eleitoral) ou no Afeganistão (democracia fechada)? O que é preferível: o regime da Bélgica ou os regimes da Bolívia (e do Brasil), de Belarus ou do Bareim? O regime do Canadá (e do Chile) ou os regimes da Colômbia, do Congo ou de Cuba? Pulando logo, por amor à brevidade, para a letra ‘s’ do alfabeto: o que é preferível: o regime da Suécia, ou os do Senegal, da Somália ou da Síria?

Nas comparações acima, os democratas liberais preferem os primeiros tipos de regime (democracias liberais) – onde a pluralidade democrática e as oposições democráticas existem e são valorizadas – aos três tipos seguintes (democracias eleitorais, autocracias eleitorais e autocracias fechadas). Lula e o PT, não. Preferem, juntamente com seus aliados ideológicos tradicionais (socialistas), os segundos (democracias eleitorais, ditas “de esquerda”, como Bolívia, Honduras, Argentina, México, Colômbia e Peru (pelo menos antes do malfadado golpe e da prisão de Castillo). Muitos militantes petistas, silenciados por Lula para não atrapalhar a sua falsa frente ampla, preferem, in pectore, os terceiros (autocracias eleitorais também de esquerda, como Venezuela, Nicarágua e Angola), quando não os quartos (autocracias fechadas de esquerda, como Cuba ou China).

Se Simone aceitar um “regalito” para lavar a “frente ampla” petista (um cargo humilhante, porque incompatível com o seu decisivo papel na eleição de Lula), deverá dar logo o próximo passo: se filiar ao PT e entrar na tendência majoritária (a de Lula). Do contrário será fagocitada. Mas será cobrada por ter renunciado ao papel de ajudar a liderar uma legítima e necessária oposição democrática no Brasil.

Infelizmente, se isso vier a acontecer, a democracia brasileira continuará sendo uma democracia eleitoral, mas se distanciará cada vez mais de uma democracia liberal.

Anatomia de um governo hegemonista de esquerda

73% são frente de esquerda ampliada, 22% são frente fisiológica e 5% são enfeites de “frente ampla”

Augusto de Franco, O Antagonista (31/12/2022)

Como sabe qualquer pessoa com um mínimo de honestidade intelectual, não há frente ampla alguma. O governo Lula é o governo de uma frente de esquerda ampliada, aliada a velhos setores fisiológicos da política brasileira (para fazer maioria no parlamento), que capturou dois desavisados do centro democrático liberal para passar a falsa ideia de que é um governo de frente ampla.

Por que tantos erros dos analistas e jornalistas políticos em anunciar uma frente ampla para governar que nunca seria aceita pelo PT realmente existente? É fácil responder essa. Porque não era análise. Era torcida.

O PT realmente existente – não o PT imaginário dos intelectuais que não fazem a menor ideia do que se trata – é um partido hegemonista (que acha que é necessário fazer maioria em todo lugar para implementar o seu projeto, que acredita que quem tem maioria tem sempre legitimidade e que pensa que democracia é soberania popular). É um partido populista de esquerda e, portanto, não-liberal. Está tão longe de ser um partido social-democrata ou democrata-liberal, como a Bolívia da Finlândia, a Argentina da Nova Zelândia ou o Perú da Suécia.

Vamos à anatomia do novo governo. Na sua composição de primeiro escalão há representantes de uma frente de esquerda ampliada, de uma frente fisiológica e dois enfeites de “frente ampla”.

I – A FRENTE DE ESQUERDA AMPLIADA – 27 membros (73%)

I.1 – A frente petista dentro da frente de esquerda (o governo de fato) – 10 membros (27%)
Presidência – Lula do PT (não entra na soma)
Fazenda – Fernando Haddad do PT
Casa Civil – Rui Costa do PT
Secretária Geral da Presidência – Márcio Macedo do PT
Desenvolvimento Social – Wellington Dias do PT
Comunicação Social – Paulo Pimenta do PT
Educação – Camillo Santana do PT
Trabalho – Luiz Marinho do PT
Relações Institucionais – Alexandre Padilha do PT
Desenvolvimento Agrário – Paulo Teixeira do PT
Mulheres – Cida Gonçalves do PT

I.2 – Ex-integrantes dos governos petistas de Lula ou Dilma – 6 membros (16%)
Defesa – José Múcio, ex-governo Lula
Relações Exteriores – Mauro Vieira, ex-ministro de Dilma
GSI – Marco Dias, ex-ministro de Lula
Gestão – Esther Dweck, ex governo Dilma
AGU – Jorge Messias (o “Bessias” do governo Dilma)
CGU – Vinícius de Carvalho, ex-governo Dilma

I.3 – Partidos de esquerda satelizados pelo PT – 7 membros (19%)
Justiça e Segurança – Flávio Dino (ex-PCdoB) do PSB
Ciência e Tecnologia – Luciana Santos do PCdo B
Portos e Aeroportos – Marcio França do PSB
Meio Ambiente – Marina Silva da Rede
Previdência – Carlos Lupi do PDT
Povos Indígenas – Sonia Guajajara do PSOL
Igualdade Racial – Anielle Franco, area de influência do PSOL

Nota – O PV e o Cidadania hoje também são satelizados pelo PT, mas apesar de todo esforço que fizeram para aderir ao governo, ficaram sem ministérios.

I.4 – Área de influência do PT ou da esquerda – 4 membros (11%)
Saúde – Nísia Trindade
Esportes – Ana Moser
Cultura – Margareth Menezes
Direitos Humanos – Silvio Almeida

II – A FRENTE FISIOLÓGICA – 8 membros (22%)
Transportes – Renan Filho, do MDB (filho de Renan Calheiros)
Cidades – Jader Filho, do MDB (filho de Jader Barbalho e irmão de Helder Barbalho)
Minas e Energia – Alexandre Silveira, do PSD
Agricultura – Carlos Fávaro, do PSD
Pesca – André de Paula, do PSD
Comunicações – Juscelino Filho, do União Brasil
Turismo – Daniela do Waguinho, do União Brasil (esposa do Waguinho, prefeito de Belford Roxo, cabo eleitoral de Lula na Baixada)
Integração Regional – Waldez Góes do PDT

III – OS ENFEITES DE “FRENTE AMPLA” – 2 membros (5%)
Indústria e Comércio – Geraldo Alckmin, vice-presidente, ex-PSDB, atualmente no PSB (conta na soma)
Planejamento – Simone Tebet, do MDB

A falsa “frente ampla” – contemplando setores do centro democrático liberal – tem apenas 5% das cadeiras, enquanto que a esquerda ampliada tem 73% e os setores fisiológicos 22%.

A anatomia só não está completa porque não estamos considerando cargos importantíssimos que ficarão com petistas puro-sangue, como o BNDES (Aloizio Mercadante) e a Petrobrás (Jean Paul Prates)

É este o artigo.

Agora vamos à festa da posse. Para comemorar tão incrível anatomia, o ditador Maduro pode até se fazer presente (pelo que dizem). O proto-ditador Castillo só não virá porque está preso a outros compromissos.

Maddox: a democracia militante, Loewenstein e Lerner

A torcida para o novo governo dar certo