Supremacistas e antifascistas não são dois lados equivalentes. E “anarquistas” (mesmo quando degenerados pela contaminação marxista) não instalam ditaduras.
Os que se dizem de direita, no Brasil, insistem em defender Trump (vamos ver até onde aguentarão) no episódio de Charlottesville. Como o grupo Antifas (uma espécie de Black Bloc americano) também é violento, então deu empate: condena-se igualmente os “dois lados”. Ocorre que não existem dois lados equivalentes nessa história.
Toda violência deve ser condenada e punida pelo Estado democrático de direito. Mas do que se trata aqui não é bem da violência KKK contra a violência BB. São projetos políticos distintos do ponto de vista da democracia, que não se igualam quando ambos praticam ações contra as leis.
Os intolerantes Black Blocs americanos e os grupos dispostos a marchar com estandartes nazistas constituem ameaças diferentes à democracia, não em razão de qualquer crime eventual que ambos igualmente cometam (como matar ou ferir pessoas, dolosa ou culposamente), nem em razão do que pensam e das opiniões que proferem (o que deve ser admitido numa democracia, desde que não viole as leis). Eles são ameaças diferentes porque seus projetos políticos têm impactos diferentes sobre a liberdade.
O comportamento KKK e de grupos assemelhados está voltado à desconstituição dos fundamentos da democracia como regime político e como modo-de-vida. O comportamento dos grupos tipo BB (como o Antifas, reeditando a velha ação direta dos anarquistas, em geral dos “anarquistas” degenerados, já contaminados pelo marxismo) é uma reação injustificada à convivência democrática, mas não aos princípios da igualdade política (base do regime americano e de qualquer democracia). Seria como dizer que os Black Blocs brasileiros são tão prejudiciais à democracia como o PT. Não são. Eles são reações infantis, intolerantes, ilegais, mas não projetos para alterar a natureza do nosso regime. Nenhum grupo desse tipo levou à autocratização da democracia: “anarquistas” (mesmo falsos, como o BB ou Antifas) não instalam ditaduras.
Nossos Black Blocs afastaram as pessoas comuns das ruas em 2013, mas quando fizeram isso estavam prestando (voluntaria ou involuntariamente) um serviço ao PT, não a si mesmos. Eles não são projetos concretos de poder, seja por falta de visão e estratégia, seja por falta de enraizamento social e base política, seja por falta de narrativas ideológicas consistentes, seja por falta de meios humanos e materiais para tanto.
Entenda-se bem: todos devem ser, quando praticam atos ilegais, coibidos e punidos pelo Estado de direito, mas não podem ser igualados pelos representantes do regime democrático. Do contrário, a condenação dos grupos disruptivos (como Antifas nos USA e Black Blocs no Brasil) e dos projetos autocratizantes (como KKK e assemelhados nos USA e PT e suas correias de transmissão, como CUT, MST, MTST, no Brasil), como se fossem dois lados equivalentes, acaba servindo para validar, pelo avesso, a existência de ambos.
Os Anonymous (ou uma vertente de ativistas que assim se denominou) e outros grupos sublevados da Venezuela, que constroem barricadas (guarimbas) nas ruas contra o governo chavista, não são a mesma coisa que os colectivos chavistas (que têm um comportamento fascista) ou como o PSUV de Maduro e Cabello. Ainda que a ação dos guarimberos seja violenta (mesmo quando o governo venezuelano não era uma autocracia, essa ação já era violenta), não há um projeto político desses grupos para transformar a Venezuela numa ditadura (como havia – e agora estamos comprovando – por parte das organizações bolivarianas).
Demétrio Magnoli, no artigo de sábado (19/08/2017) na Folha de S. Paulo, abordou o problema.
Quando fala em simetria na Virgínia, Trump dilacera valor da democracia
Demétrio Magnoli, Folha de São Paulo, 19/08/2017
Robert Lee, o comandante das forças confederadas, viveu apenas cinco anos após o término da Guerra Civil, o suficiente para criticar o erguimento dos primeiros monumentos à fracassada insurreição.
“Penso ser mais sábio seguir o exemplo das nações que se esforçaram para apagar as marcas do conflito civil e consignar ao esquecimento os sentimentos por ele gerados”, escreveu em 1869. As elites sulistas preferiram a memória ao esquecimento, ignorando o aviso de Lee.
Um século e meio depois, a disputa sobre monumentos não é mais uma contenda sobre o passado. Por isso, ao dizer que a remoção de estátuas “dilacera a história e a cultura” nacionais, Trump enuncia uma verdade irrelevante. Já quando estabelece uma simetria entre “os dois lados” em confronto na Virginia, ele dilacera um valor fundamental da democracia.
A equação trumpiana equilibra-se sobre os métodos violentos compartilhados por supremacistas brancos, de um lado, e pelos Antifa (“antifascistas”), de outro. Os Antifa americanos inspiram-se nos militantes esquerdistas que, no entre-guerras, enfrentaram os fascistas nas ruas das cidades alemãs, italianas e espanholas.
Na Europa daqueles tempos, os bandos fascistas funcionavam como pontas-de-lança de partidos ou exércitos em vias de conquistar o poder, algo que não ocorre nos EUA. Faz sentido, portanto, repudiar as violências promovidas pelos Antifa.
Os Antifa pertencem à linhagem dos grupos de “ação direta” oriundos da dissolução dos protestos de 1968 na Europa. Avessos à política institucional, eles não almejam modificar as orientações de governo. Irrompem armados de tacos de beisebol em assembleias da extrema direita, causam desordens em seminários com a participação de supremacistas, deflagram campanhas de perseguição pessoal a ativistas das hostes inimigas.
Imaginando-se anarquistas, exercitam suas tendências autoritárias definindo quem pode, ou não pode, expressar opiniões na arena pública.
“Dois lados” simétricos, então? Nem de longe. Uma diferença secundária encontra-se na escala. Os Antifa são grupos diminutos, que operam nas franjas da política americana. Os supremacistas, pelo contrário, formam poderosa corrente histórica, com ramificações em governos estaduais, que até esta sexta (18) contavam com Steve Bannon, um “arauto da causa”, no posto de estrategista-chefe da Casa Branca.
Mas a distinção crucial é ideológica: os supremacistas atacam a igualdade política dos cidadãos, fonte filosófica das democracias, enquanto os Antifa operam (como baderneiros) em nome precisamente deste princípio.
A proclamada equivalência entre os “dois lados” é só um álibi: a armadilha de linguagem engendrada para naturalizar a presença de suásticas em manifestações nas cidades americanas.
A persistente recusa trumpiana de separar um lado do outro, chamando o mal pelo nome, deita raízes numa camada de solo profundo, sedimentado bem abaixo dos traços sórdidos da sua personalidade ou da concorrência política circunstancial. Trump enxerga os EUA como uma nação de colonos cristãos brancos sitiada por hordas de “estrangeiros”, que são negros, imigrantes latinos ou muçulmanos.
O presidente não é um neonazista, um entusiasta da Ku Klux Klan ou um adepto da alt-right, a “direita alternativa” de Bannon – mas partilha com eles um núcleo virulento de valores nativistas.
Trump inventa uma falsa simetria com a finalidade tática de proteger os seus. Ele esquiva-se de condenar os manifestantes de extrema direita de Charlottesville porque, no cálculo final, concorda com eles.
Por motivos paralelos, mesmo agora, o PT, o PSOL e os “intelectuais orgânicos” da esquerda brasileira rejeitam denunciar o regime chavista na Venezuela.
Eis uma simetria genuína: nossa anacrônica esquerda atribui às liberdades públicas o mesmo valor que Trump atribui à igualdade entre os cidadãos.
Deixe seu comentário