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Não se impressione com a quantidade

Agora que um dos populismos em disputa venceu as eleições no Brasil, os que valorizam a democracia – como regime político liberal e como modo de vida em rede voltado à inovação social – estão diante de um problema.

O problema é que serão poucos, pelo menos nos próximos anos. Isso desanima quem acha que quantidade de pessoas atraídas ou de seguidores arrebanhados é um (ou ‘o’) indicador de sucesso.

Como nos habituamos a pensar em termos de maioria aritmética, costumamos desvalorizar as minorias. Mesmo os que agora querem valorizar as minorias sociais (na onda do identitarismo), não adotam a mesma postura em relação às minorias políticas (1).

Mas o problema vai além disso. Qual a chance de uma minoria, sobretudo acentuada, fazer qualquer diferença?

Jiddu Krishnamurti se defrontou com esse problema na década de 20 do século passado, quando resolveu dissolver a Ordem da Estrela no Oriente, que foi fundada em 1911 para proclamá-lo como Instrutor do Mundo. Em 3 de agosto de 1929, dia da abertura do Acampamento Anual da Estrela, em Ommen, Holanda, Krishnamurti dissolveu a Ordem diante de 3.000 membros. No seu discurso ele disse:

Organizações não podem torná-los livres. Nenhum homem de fora pode torná-los livres; nem o pode o culto organizado, nem a imolação de vocês mesmos por uma causa os torna livres; nem enfileirando-se em uma organização, nem lançando-se em trabalhos, os torna livres. Vocês usam uma máquina de escrever para escrever cartas, mas vocês não a colocam em um altar e a adoram. Mas é isto que vocês estão fazendo quando as organizações tornam-se seu principal interesse.

“Quantos membros ela tem?” Esta é a primeira pergunta que me fazem os jornalistas. “Quantos seguidores você tem? Pelo número deles julgaremos se o que você diz é verdadeiro ou falso”. Não sei quantos eles são. Não estou preocupado com isso. Como disse, se houvesse mesmo um que se tenha tornado livre, isso seria suficiente.

Difícil aí é compreender por que (e como) “isso seria suficiente”.

Na experiência de mais de uma década que cerca de 13 mil pessoas tiveram na Escola de Redes, uma rede iniciada em dezembro de 2008 e cuja plataforma interativa foi encerrada em 2021 (e, portanto, não pode ser linkada aqui), esse aprendizado se concretizou. Parte dele foi abordado num post do final de 2013 no Facebook que vai reproduzido abaixo. Vamos ler para voltar depois.

NÃO SE IMPRESSIONE COM A QUANTIDADE

Reciclando um post no Facebook de 4 de dezembro de 2013

Se você começa pelo meio não chega ao fim. O fim é o começo.

“Em mundos em rede devemos nos preocupar com a interatividade, não com a quantidade. E interatividade não é mais quantidade de interação e sim mais abertura à interação fortuita, quer dizer, não planejada como ação instrumental, urdida para obter um resultado esperado. Não é acordar uma hora mais cedo para interagir mais e sim estar mais aberto à interação com o outro-imprevisível. E não é como um plano de negócio.

Agora (o post é de 2013) que a plataforma da Escola-de-Redes completou cinco anos (na verdade a E=R surgiu antes, em junho de 2008) e alguns de nós comemoramos e coisa e tal, sou novamente assaltado por uma antiga preocupação. E daí? O que significa isso?

É uma preocupação antiga. Tanto assim que, bem antes de ser divulgada a plataforma, em 24 de novembro de 2008, publiquei o texto Articule você também uma Escola-de-Redes. A ideia era expandir a ideia (de escolas-não-escolas de redes, pois a escola é a rede) e não fazer crescer uma organização específica. De qualquer modo, depois de divulgada a plataforma em dezembro de 2008, ela cresceu em número de registrados e tem hoje 9.608 pessoas conectadas [isso no final de 2013: esse número chegou a ultrapassar 13 mil em 2021] (que se registraram por sua própria decisão e vontade, não foram incluídas por ninguém por mecanismos ad hoc de “convite” como os que existem no Facebook, em que terceiros podem incluir um novo membro). No entanto, mesmo assim, isso significa muito pouco.

Não importa muito se são 900, 9.000 ou 90.000! Esses números podem não significar quase nada se essas pessoas não usarem a plataforma (que é uma mídia social, uma ferramenta interativa, não uma rede social) para interagir. Para ver se está havendo interação em uma plataforma observamos o número de tréplicas (não basta verificar réplicas e curtidas), a velocidade com que roda a timeline (registro de atividades de pessoas diferentes), a responsividade de um post compartilhado (porcentagem dos que leem e dos que recompartilham), para citar alguns indicadores mais banais. Mas mesmo esses indicadores são bastante inadequados. Eles ainda estão na pré-história das redes. Vou citar apenas um exemplo desconcertante: não é necessário que todas as pessoas ou que maioria das pessoas ou que uma porcentagem significativa das pessoas usem a plataforma. É apenas necessário que, quando usem, as que usem o façam de modo interativo.

Outro exemplo: a responsividade, mesmo que não seja um indicador suficiente de interatividade, às vezes seus resultados são significativos e às vezes nem tanto. Por exemplo, a apresentação chamada “Um roteiro para quem está entrando na Escola-de-Redes” ultrapassou 100 mil views só no Slideshare. É um número expressivo, mas não diz muito, a não ser pelo que revela em termos do interesse crescente das pessoas por um assunto relativamente abstruso (sim, pois não é um viral, não é um vídeo de 3 minutos: é uma bibliografia acompanhada de sentenças não-triviais, relativamente árduas em termos teóricos, sobre a nova ciência das redes). Mesmo assim…

Interação não é adesão e nem participação. Número dos que aderiram a uma plataforma não significa muita coisa a não ser para quem está pensando com a cabeça de marketing. Se estamos querendo fazer netweaving (ou seja, articular e animar redes) – e não capturar redes para pescar em aquário – adesões numerosas significam muito pouco.

Isso é o óbvio, mas agora vem o que não é tão óbvio: número dos que participam, intensidade dessa participação, profissão de fé declarada de participantes, coraçõeszinhos postados pelos que estão cheios de amor para dar… e outros sinais de quem quer se inserir num grupo ou patota, além de não significar grande coisa em termos de interação, podem ser obstáculos à livre interação.

Como assim? Isso não parece um absurdo? Pois é… Parece mesmo um absurdo para quem não entendeu a diferença entre participação e interação. Livre interação significa resistir à tentação de pertencer a um grupo. Na medida em que você se identifica com um grupo, a interação não é mais livre: ela fica aprisionada pelo campo social desse grupo, pela demarcação identitária que o define ou delimita, pelas fronteiras reais ou imaginárias (dá no mesmo, desde que você se comporte como se tal fronteira existisse) entre esse grupo (o seu grupo) e os demais grupos (os dos outros). Essas separações entre nós (um inner circle) e os outros é um atributo da participação, não da interação.

Sei que é difícil entender isso, mas é fundamental. Não que você não possa interagir em um grupo. É claro que pode e isso é mesmo inevitável na medida em que tudo que interage clusteriza. O que você não pode é ser o cara daquele grupo específico e, ao interagir, não interagir mais como pessoa (concreta) e sim como uma entidade configurada como representação (abstrata) daquele grupo (um grupo específico). A melhor solução interativa para isso é não interagir apenas em um grupo, mas em vários grupos. Com isso você corre menos riscos de ser o representante de um grupo e passa a ser conhecido e aceito por todos como um interagente em vários grupos (o que netweavers devem ser mesmo: navegantes de interworlds). O interagente é o ser humano propriamente dito que você é: a sua pessoa.

Com três pessoas já podemos fazer uma rede. Três pessoas pode ser mais significativo, em termos de interatividade, do que trezentas arrebanhadas participativamente ou três mil contadas (como cabeças) adesivamente.

Não tenho bem certeza de se estou conseguindo me fazer entender. O emaranhado é a pessoa. Em termos humanos – quer dizer: sociais – a pessoa é tudo!

Portanto, não se preocupe com a quantidade. Simplesmente comece a se comportar em rede com as pessoas. O que virá (depois) você não pode saber (antes). Não planeje para os outros e, sobretudo, não planeje os outros. Não queira envolver as pessoas e conduzi-las ou induzi-las para obter algum resultado (que só você pensou aí na sua cabecinha genial) a partir delas. E, sobretudo, não confunda os meios – as estruturas, os prédios, os equipamentos, as tecnologias – com a rede. Se você começa pelo meio não chega ao fim. O fim é o começo. O fim e o começo é a rede. E redes acontecem quando as pessoas interagem. Ponto”.

Bem. Este foi o post original de 2013. Ele pode servir de inspiração para um novo começo em 2023.

Há cerca de dois anos tivemos a ideia de propor uma rede de pessoas dedicadas à aprendizagem (teórica e prática) da democracia. Essa ideia foi apresentada no site Casas da Democracia. Mais recentemente, nos últimos dias de 2022, lançamos uma plataforma interativa das Casas da Democracia (mais ou menos nos moldes da antiga Escola de Redes).

Entenda-se bem. Este artigo não é uma propaganda da rede chamada Casas da Democracia, nem um convite para alguém entrar na sua plataforma interativa – que nem será linkada aqui, para evitar desentendimentos (2). É apenas uma enérgica sugestão para que os que valorizam a democracia como regime político liberal ou como modo de vida em rede voltado à inovação social articulem suas próprias redes para conversar com seus sensates (de preferência fora do ambiente tóxico e adversarial das mídias sociais que foi completamente degenerado pelos populismos em guerra) sem se desanimarem com o fato de que serão poucas pessoas inicialmente.

Notas

(1) Os identitaristas, em geral, admitem a diversidade e a pluralidade social, mas não a diversidade e a pluralidade política. Em qualquer lugar defendem a presença de representantes de mulheres e da chamada comunidade LGBTQIA+, de negros, de indígenas ou de povos originários e de portadores de deficiências, mas desde que estejam alinhados ao mesmo campo ideológico. Se estiverem no campo ideológico oposto (considerado inimigo pelos populistas), não – é melhor que não pontifiquem. A dita esquerda não quer negros de direita e, vice-versa, a dita direita (na verdade, a direita realmente existente hoje é a extrema-direita) não quer saber de “negros comunistas” (que é como encaram os de esquerda).

(2) Quem quiser conhecer a plataforma interativa das Casas da Democracia, por favor, deixe um comentário.

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